segunda-feira, 4 de novembro de 2013

São Paulo e Rio – quem aposta na violência


Assassinatos de garotos e ataques midiáticos a manifestações confirmam: há interessados em generalizar repressão. Black-bloc é complexo, mas pode estar sendo usado.

Antonio Martins
I.
Uma espiral de fatos graves e estranhos está se sucedendo em São Paulo desde sexta-feira (25/10), quando mascarados agrediram, num ato de violência gratuita, um coronel da Polícia Militar. Comandantes da PM emitiram declarações como se fossem o governo do Estado. Quase duzentas pessoas foram presas de maneira arbitrária e, ao que tudo indica, a esmo. Um jovem de 17 anos foi assassinado domingo pela polícia em ação torpe, provavelmente com intuito de provocar reações de revolta. Ontem (28/10), caminhões e ônibus apareceram em chamas na rodovia Fernão Dias, em horário propício a exposição nos noticiários de maior audiência – sem que apareçam indícios de quem os incendiou.
Episódios anteriores sugerem: pode estar em gestação uma crise fabricada, em que a população, insegura e temerosa, clama pela ação das “forças da ordem” – seja quais forem a truculência e os desdobramentos. Por isso, é importante soar o sinal de alarme e convidar a um exame mais amplo do cenário. Talvez ele revele que certas formas de radicalização artificial têm efeito contrário ao que imagina quem nelas se envolve. Na aparência, elas desafiam o Estado; na realidade, libertam seus mecanismos mais brutais de controle social, repressão e destruição da democracia.
Vale a pena recompor a sequência dos fatos, para tentar interpretá-los e identificar seu sentido comum.
1. Talvez a agressão black bloc ao coronel Reynaldo Rossi, no terminal de ônibus D. Pedro II, sexta-feira, tenha sido mais que um ato grotesco e covarde. Na mídia, as imagens do espancamento estão sendo repetidas à exaustão. Mas qual o contexto em que se produziram? Presente à cena, o repórter Piero Locatelli, de Carta Capital, fez um relato perturbador (1 2), do qual se destacam os seguintes trechos-chaves: “A Polícia havia acompanhado a manifestação com um efetivo de 800 policiais [...] No terminal, mais cedo, manifestantes utilizando a tática black bloc haviam queimado um ônibus e destruído catracas. [...] A polícia pouco agiu para conter a depredação – uma fila de policiais assistia ao que acontecia no local”.
Foram quebrados bilheterias, banheiros, quiosques, orelhões, extintores e 15 caixas eletrônicos. Só mais tarde a repressão e as prisões começaram: na Praça da Sé, a quase um quilômetro dali, tendo por alvo não os “vândalos”, mas manifestantes pacíficos.
Locatelli prossegue: “Os 800 policias que acompanhavam o ato [no Terminal D. Pedro II] esperaram o fim dele para agir com contundência. Instantes depois de um jogral na praça da Sé, os militantes cantavam em clima de festa ‘violência é a tarifa, fascista é a policia’. Foi quando ocorreu uma chuva de gás lacrimogêneo, vinda de todos os lados da praça. Milhares de pessoas tentavam correr dela, sob disparos de balas de borracha, muitas delas sozinhas. A depredação na região se intensificou, e o medo era a regra pelas estreitas ruas do centro. A partir dali, ocorreu uma série de ‘detenções para averiguação’”.
2. Quem fala em nome do Estado, num regime democrático: as autoridades eleitas? Em São Paulo, o governador Geraldo Alckmin calou-se no sábado (27/10), um dia depois da agressão ao coronel Rossi. Mas o chefe do Centro de Comunicação Social da Polícia Militar, major Mauro Lopes, convocou entrevista coletiva em que assumiu ares de chefe de governo. “O Estado vai dar uma resposta muito forte a este bando de criminosos”, disse. O jornalista Luís Nassif captou a mensagem percebeu o risco: “Essa história da PM anunciar que vai até as últimas consequências – respaldada por uma condenação generalizada contra os vândalos – provoca calafrios maiores do que assistir a um quebra-quebra de black blocs. Na última vez que a PM se comportou assim, em maio de 2006, foram assassinadas mais de 500 pessoas”. Agora, a polícia começou a barbarizar menos de 24 horas após a fala do major Mauro Lopes.
3. As circunstâncias em que se deu o assassinato do garoto Douglas Rodrigues, na tarde de domingo, em Jaçanã (zona norte) são espantosas – mesmo para quem está acostumado com a banalidade do mal, nas periferias brasileiras. A impressão nítida é de incitação à revolta. A polícia foi chamada para uma ocorrência vulgar: uma caixa de som em volume alto demais (“perturbação do sossego”). Mas o PM Luciano Pinheiro Bispo “desceu do carro e pá”, no peito de Douglas, segundo testemunhas (1 2), que negam com veemência a hipótese de disparo acidental. O garoto – estudante, trabalhador e querido dos moradores – chegou a indagar ao algoz, segundo a mãe: “Senhor, por que o senhor atirou em mim”?
4. A previsível reação começou de imediato. Os moradores queimaram três carros e enfrentaram a pedradas a tropa de choque, enviada pra reprimi-los. Houve saques de lojas. Algo menos claro – porém, muito mais visível – deu-se ontem, na região. Cerca de 500 pessoas participaram, em protesto, do velório de Douglas, próximo ao local onde morreu. A manifestação pelo garoto quase não foi noticiada pela mídia. Nos jornais da noite, as telas de milhões de telespectadores, em todo o país, foram ocupadas por outras imagens. Na rodovia Fernão Dias (SP-Belo Horizonte), a centenas de metros de distância da multidão, três grandes caminhões e seis ônibus arderam. As fotos de quem os incendiou são escassas; e a polícia não parece ter sido capaz de identificá-los (embora tenha prendido mais 90 pessoas…). Mas hoje, os três jornais mais vendidos do país apontam, em manchete (1 2 3), os “responsáveis”. Em todos eles, as palavras “manifestantes” e “protesto” estão repetidamente associadas a “quebra-quebra”, “violência” e “saques”…

II.
O comportamento da PM nos últimos dias, em São Paulo, não é exceção. Uma vasta reportagem da jornalista Tânia Caliari revela que, desde as manifestações de junho, as polícias militares têm mantido um comportamento apenas aparentemente ambíguo. Elas alternam dois tipos de desvios complementares. Em certos momentos (como em 13/6, em São Paulo), agem com selvageria cega. Em outros (como em 7/10, no Rio), desaparecem ou assistem, impassíveis, a cenas de enorme gravidade – como a tentativa de atear fogo à Câmara Municipal.
As duas atitudes policiais retroalimentam-se uma à outra, em espiral. A brutalidade da tropa exalta os ânimos dos manifestantes e leva pequenos grupos a reagir de modo violento. As depredações promovidas por estes, nos momentos em que a polícia se omite, amedrontam a população e sugerem que a saída, diante dos protestos, é mais repressão.
Este esforço para instigar apoio à violência do Estado é reforçado pela mídia. Os jornais e TVs já não pedem abertamente repressão aos protestos, como ensaiaram sem sucesso em junho. Agora, agem por sugestão e omissão. Cenas como a do espancamento do coronel Reynaldo Rossi, ou da depredação de bens públicos, são repetidas exaustivamente na TV e decoram as capas dos jornais. Mas procure encontrar, após cada episódio, uma única matéria examinando criticamente o comportamento da polícia. As manifestações repetem-se há cinco meses; os abusos policiais de ambos os tipos, também. Os jornais e TVs fecham os olhos…

III.
O surgimento, no Brasil, dos black-blocs, que praticam atos destrutivos nas manifestações de rua, não pode ser analisado apenas à luz da ciência política clássica. Militantes de quase todos os partidos de esquerda (do PT ao PSTU), além de inúmeros ativistas autônomos, produziram, nos últimos meses, dezenas de textos críticos ao bloco negro. Lembram, com base em fartos exemplos históricos, que a ação violenta de pequenos grupos, sem apoio popular maciço, foi sempre manipulada pelas classes dominantes para legitimar a repressão. Muitos dos autores ressaltam que não propõem atitude pacifista incondicional. Defendem as rupturas, quando as maiorias, convictas de que é preciso estabelecer novas relações sociais, são impedidas de fazê-lo por leis e instituições retrógradas. Mas se opõem a atos narcísicos, cujos praticantes tentam assumir condição de libertadores da multidão.
Se todos estes argumentos têm sido insuficientes para aquietar os black-blocs; se o apoio a eles, embora ínfimo entre a sociedade, mantém-se expressivo entre os que se reconhecem como parte das “Jornadas de Junho”, é preciso sondar as razões. Duas hipóteses, em especial, parecem promissoras.
A primeira é o descolamento nítido entre duas gerações da ativistas anti-capitalistas. Uma militou ou milita no amplo arco de organizações políticas de esquerda, amplamente predominantes até a queda do “socialismo real”. Outra começou a se formar na virada do século, sob influência dos protestos de Seattle (1999), dos Fóruns Sociais Mundiais (2001-2009, no Brasil) ou dos ecos do levante zapatista (1994). Entre ambas, há um intervalo de dez anos. Mas, muito mais importantes, um abismo teórico e de inserção política e social.
A geração histórica teve influência reduzida nas Jornadas de Junho. PT e PCdoB tornaram-se partidos de atuação principalmente institucional. Os sindicatos tiveram sua força devastada pela reorganização produtiva do capital pós-moderno. PSTU e PSOL, por ora, parecem tão incapazes de dialogar com a nova geração quanto a esquerda radical europeia. Os movimentos sociais clássicos, muito atuantes na primeira década do século (do MST às grandes redes, como a que lutou contra a ALCA), ainda não conseguiram situar-se na segunda.
A nova geração anticapitalista é extremamente ativa. Mas com raras exceções (como o Movimento Passe Livre – MPL) não fazem parte de sua cultura e preocupações conceitos como correlação de forças; estratégias e táticas; momentos de avanços ou recuo. Mais: ela sente o esvaziamento da democracia e a impermeabilidade das instituições. Não viveu o suficiente para enxergar as mudanças tímidas, mas inéditas, vividas pelo país na última década. Para quem tem 25 anos, por exemplo, o Bolsa-Família e a redução da miséria não são uma conquista – mas um dado da paisagem política, que precisa ser transformada. Por isso, a nova geração tende a ver a geração histórica como mais um grupo acomodado e participante do condomínio das elites no poder.
Esta hipótese – a do choque de gerações anticapitalistas – articula-se com outra. A ação truculenta da polícia é indispensável para explicar a relevância do black-bloc brasileiro. Ele está muito longe de ser majoritário, entre as novas gerações. Reúne, no máximo, algumas centenas de ativistas, em cada uma das maiores capitais. As críticas que recebem são constantes, nas redes sociais: por legitimarem a violência; por se julgarem heróis e superiores; por não dialogarem. Mas cada novo ato de violência policial parece ressuscitar sua legitimidade.
Há aqui algo que deveria alegrar a velha geração: consciência de classe. A agressão ao coronel Reynaldo Rossi devastou a popularidade do black-bloc por alguns dias, nas redes sociais. Era comum ver mensagens de ira contra eles, mesmo nos comentários das comunidades dos Facebook que os apoiam. Mas isso se desfez após o assassinato do garoto Douglas. Nos últimos meses, em meio ao debate, um poema do marxista Bertolt Brecht foi citado inúmeras vezes, por quem se julga anarquista: “Diz-se violento o rio, que tudo arrasta; mas não as margens, que o oprimem…”.

IV.
Não há problema algum em que as culturas políticas anticapitalistas sejam muito distintas entre si: a longo prazo, esta diversidade pode ser uma riqueza. Mas, numa época de crises e instabilidades um pré-requisito para a sobrevivência e o futuro é saber identificar ameaças comuns. Estamos todos, neste momento preciso, sob uma delas.
Armou-se uma cilada. As grandes mobilizações de junho refluíram e não parece possível retomá-las, ao menos no momento. O ataque aos símbolos do capitalismo, promovido pelos black-blocs, não é eficaz contra o sistema, ao menos por enquanto. Não há razões para duvidar das pesquisas de opinião, segundo as quais 95% da população opõem-se a estes atos. Recua rapidamente, além disso, o apoio ao próprio sentido das manifestações. Em junho, em São Paulo, 89% eram a favor delas; em poucos meses, este índice caiu para 66%.
A polícia e a mídia perceberam a oportunidade. Na madrugada desta terça-feira (29/10), mais um garoto foi morto por PMs em São Paulo, em circunstâncias muito semelhantes às de Douglas. Pouco mais tarde, mais uma manifestação de protesto ocorreu. Nas próximas horas, os meios de comunicação que (ainda) dominam, voltarão a associar “manifestantes” e “protesto” a “vandalismo”, “saques” e “quebra-quebras”.
Está se consumando, rapidamente, o cenário desastroso previsto por Luís Nassif. Ele pode dar-se tanto como tragédia (na forma de um novo morticínio “corretivo” contra a periferia, semelhante ao de 2006) quanto como drama arrastado (um longo sangramento dos movimentos sociais de todos os tipos, até que percam legitimidade junto à maioria e tornem-se impotentes para influir em 2014, que será decisivo para o futuro do país).
Ser incapaz de mudar de tática revelaria inteligência reduzida – como a das moscas que se batem contra o vidro, recuando a cada choque mas insistindo no mesmo trajeto, condenado de antemão. É preciso buscar outros caminhos, e esta responsabilidade cabe a todos, solidariamente.
Para que todos sejamos capazes de escapar à cilada, ninguém pode ser humilhado. Haverá muito tempo para os debates político-ideológicos entre as várias culturas anticapitalistas e suas nuances – mas insistir neles agora seria desastroso para todos.
A violência simbólica nas manifestações precisa refluir, rapidamente. Como os black-blocs não estão inseridos nos debates que outros coletivos travam costumeiramente entre si, será decisiva para isso a ação de grupos que souberam manter diálogo com eles – em especial o Movimento Passe Livre (MPL), um caso notável, por ligar-se simultaneamente às duas culturas políticas de esquerda. Mas este silêncio da tática do bloco negro não pode (inclusive para que funcione) significar que foram derrotados. Ao contrário, deve abrir espaço para incorporá-los ao debate.
São Paulo e Rio estão em sintonia, desde junho: as mesmas lutas, repressão, esperanças e angústias. A grande manifestação preparada pelos cariocas para a próxima quinta-feira (31/10), contra a violência policial e prisões arbitrárias das últimas semanas pode ser um ponto de virada. Uma resposta semelhante às de 17/6, quando milhares demonstraram que as ruas, geridas autonomamente, podem ser um espaço “sem polícia e sem violência”.

Antonio Martins – 29.10.2013


'Black bloc' visa chamar atenção de um 
Estado ausente



"BLACK BLOC" VIROU UM FETICHE, UMA CONSTRUÇÃO MIDIÁTICA. NOTAMOS ISSO AO PERCEBER O QUANTO OS ÓRGÃOS DE IMPRENSA ESTÃO FALANDO E ESCREVENDO SOBRE O "BLACK BLOC".
ENQUANTO ISSO, POUCO SE FALA A RESPEITO DAS TAXA DE HOMICÍDIOS NAS PERIFERIAS OU O NÚMERO DE MORTES NO TRÂNSITO. TAIS VIOLÊNCIAS SE NATURALIZARAM NO COTIDIANO BRASILEIRO. O "BLACK BLOC" DESMASCAROU ESTA LÓGICA DUAL DE TRATAR A VIOLÊNCIA.


Esther Solano e Rafael Alcadipani
O "black bloc" acontece nas ruas. Esta afirmação aparentemente elementar nos motivou a sair de nossos cômodos ambientes universitários e ir para a rua buscar compreender este complexo fenômeno social que tantos desafios institucionais e tanta estupefação têm ocasionado na sociedade.
Nossa rotina de pesquisa consiste em acompanhar muito de perto as manifestações, observar, perguntar, conversar com pessoas que utilizam a tática "black bloc", policiais e membros da imprensa.
Das conversas que tivemos, e das observações que realizamos, ficou claro que para estes jovens a violência simbólica funciona como uma forma de se expressar socialmente, um elemento provocador que tem o intuito de captar a atenção de um Estado percebido como totalmente ausente.
O uso da violência simbólica também serve, na versão deles, para induzir a sociedade a refletir sobre a necessidade de uma mudança sistêmica: "protesto pacifico não adianta nada, só com violência que o governo enxerga nossa revolta", "a intenção é transgredir, incomodar, deixar visibilidade, chamar para um debate".
A ação direita se faz contra símbolos de um sistema político-corporativo que eles reconhecem como perverso.
Os jovens que utilizam a tática "black bloc" dizem usar uma violência teatral que chama a atenção para o que eles caracterizam como o verdadeiro vandalismo. Tal vandalismo seria uma ordem das coisas que engole o cidadão numa tirania continua.
Exemplos de frases que retratam isso são: "a causa do 'black bloc' agir é o descaso público. As pessoas estão sendo torturadas psicologicamente pelo cotidiano", "não somos vândalos, vândalo é o Estado que deixa as pessoas horas esperando na fila do SUS".

Sujeitos políticos
Estes jovens com os quais viemos conversando em São Paulo estão na faixa etária entre 17 e 25 anos.
São de classe média baixa, a maioria trabalha, alguns formados ou se formando em universidades particulares, embora já dialogamos também com alguns alunos da USP.
Alguns acumulam leituras teóricas sobre anarquismo. A maioria deles consegue formular, refletir e dialogar fluidamente sobre a precariedade do Estado e da situação atual do Brasil. Pensam-se como sujeitos políticos com uma mensagem de melhoria do país.
Todavia, eles não formam uma organização homogênea. Já presenciamos discussões, durante as manifestações, entre aqueles que são a favor de uma violência mais focada, estritamente simbólica, e aqueles que defendem uma ação mais pesada.
Notamos divergências entre aqueles que são contra agredir policiais porque, na sua reflexão, o inimigo central é o Estado, e aqueles de cujas falas destila-se uma raiva profunda contra a corporação policial. Uma frase que explica isso foi dita uma vez por um jovem para quem "nem todo o mundo pensa igual embora se vista igual".

Fetiche midiático
Um dos aspectos que surge como central na nossa pesquisa é o papel da mídia neste fenômeno. É muito simbólico ver a enorme quantidade de jornalistas que aparecem nas ruas sempre que a tática é utilizada.
"Black bloc" virou um fetiche, uma construção midiática. Notamos isso ao perceber o quanto os órgãos de imprensa estão falando e escrevendo sobre o "black bloc".
Enquanto isso, pouco se fala a respeito das taxa de homicídios nas periferias ou o número de mortes no trânsito. Tais violências se naturalizaram no cotidiano brasileiro. O "black bloc" desmascarou esta lógica dual de tratar a violência.
Talvez o fenômeno mais preocupante até agora seja a polarização entre a Polícia Militar e os defensores da tática.
O Estado, guardião da propriedade pública e privada, guardião da ordem, emprega uma ação policial cada vez mais dura e um aparato legal cada vez mais criminalizador.
A consequência pode ser o aumento da presença da tática "black bloc" nas ruas, num efeito de reação. Como eles nos dizem: "Quanto mais repressão, mais revolta".
Uma parte dos jovens com quem conversamos já foi detida durante as manifestações. Cabe agora saber se eles continuarão saindo às ruas mesmo com a ameaça de voltar para a delegacia, desta vez como reincidentes. E mesmo com a ameaça da lei de associação criminosa.
A pergunta essencial que cabe, como sociedade, é por que estes jovens, que desprezam a rigidez hierárquica partidária, que não se sentem representados pelo atual modelo político e econômico, enxergam a violência como única possibilidade de expressão?


Esther Solano – Professora de relações internacionais da Unifesp. Rafael Alcadipani – Professor de estudos organizacionais da FGV-EASP – 17.10.2013




Alerta preto

os mascarados são expressão de profundas contradições brasileiras, as quais, por sua vez, incorporam de maneira singular problemas mais gerais da época. O preço de fechar os olhos a tal realidade será o de ver surgirem repetidas vagas de barbárie, o que, em uma sociedade fortemente desintegrada como a brasileira, é a senha para soluções regressivas.

André Singer
Após 20 anos, os acontecimentos de junho deflagraram novo ciclo de lutas sociais no Brasil. A partir das grandes demonstrações daquele mês, os mais diversos movimentos têm ido para as ruas, numa busca ativa de avançar pautas específicas. De moradores sem-teto a protetores dos animais, passando por grupos ligados a temas de comportamento e inúmeras corporações profissionais, uma corrente elétrica parece ter acendido até os mais inesperados círculos da sociedade.
Do ponto de vista democrático, a mobilização é positiva, pois significa maior participação, o que tende a aumentar a qualidade da política. Porém, diferentemente do que ocorreu nos anos 1980, a onda reivindicativa veio acompanhada de formas violentas. É preciso enfrentar o fenômeno de maneira realista, sob pena de fechar espaços de progresso em lugar de abri-los.
Por isso, foi correta e corajosa a declaração do ministro Gilberto Carvalho, para quem é preciso dialogar com os "black blocs". Não se trata de postura ingênua, no sentido de conversar com quem não quer conversa, pois deseja mesmo quebrar. É óbvio que atitudes violentas precisam ser coibidas de acordo com a lei, venham de onde vierem. Mas o Estado não pode ficar refém de uma visão simplificada do problema, sob pena de contribuir para uma espiral confrontacionista, que é fácil perceber como começa e impossível dizer como termina. É prioritário buscar uma ação inteligente antes que o caldo entorne.
Certo diagnóstico simplista enxerga uma horda de jovens vândalos, oriunda de algum planeta distante, à qual se poderia conter e eliminar usando a força bruta. A ciência social, porém, mostra que os mascarados são expressão de profundas contradições brasileiras, as quais, por sua vez, incorporam de maneira singular problemas mais gerais da época. O preço de fechar os olhos a tal realidade será o de ver surgirem repetidas vagas de barbárie, o que, em uma sociedade fortemente desintegrada como a brasileira, é a senha para soluções regressivas.
Também não se trata de responsabilidade apenas do Estado. As correntes políticas que apostam na democracia precisam ajudar a entender o solo de onde estão saindo os "black blocs" e dialogar com o público em volta deles, bem como suscitar programas que respondam às demandas que lá estão. Sabe-se, por exemplo, que há uma revolta juvenil contra os excessos dos órgãos de repressão, sobretudo na periferia das cidades. Acentuar tal disputa só vai piorar o quadro.
Apesar de inúmeras dificuldades, a democracia aqui construída nos últimos 25 anos é avançada e permite avanços. Não vejo risco de regressão autoritária, mas temo que a violência enrijeça os canais ascendentes de participação, em lugar de abri-los ainda mais.

André Singer – Cientista Político, professor da FFLCH/USP – 02.11.2013