segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Alimentando a desumanidade


Condenados à prisão em regime semiaberto, José Genoino e José Dirceu enfrentam tratamento inadequado. (...) O abuso e a falta de respeito não apontam para o progresso. Ajudam a estimular e saciar o ressentimento.


Paulo Moreira Leite
A prisão de 11 condenados do mensalão foi acompanhada de momentos preocupantes. Procurando as raízes do que está acontecendo, é possível chegar a articulações conservadoras que se mobilizavam contra os direitos humanos e garantias individuais – quando a democratização do país sequer completara seu curso. Vamos contar a história pelo começo, porém.
Os prisioneiros foram conduzidos ao presídio da Papuda, em Brasília, sem documentos que formalizem seu direito ao regime semiaberto, como definiu o STF.
A medida já provocou protestos formais dos advogados.
Em condições normais, me diz um dos advogados dos réus, uma atitude desse tipo se resolveria com um habeas-corpus, capaz de levar a libertação imediata dos prisioneiros.
Mas é difícil pensar que vivemos tempos normais quando o presidente do Supremo afirma que “quando as instituições se degradam, o País se degrada”, não é mesmo?
Outro drama envolve a saúde de Genoíno. Ele sofre de cardiopatia grave. Recentemente ficou no limite entre a vida e a morte, da qual escapou, segundo médicos, por uma questão de minutos, a bordo de uma ambulância que o conduziu a um hospital. Com base na avaliação médica, Genoíno já entrou com pedido de aposentadoria na Câmara de Deputados.
Transportado de São Paulo para Brasília, o deputado enfrentou situações complicadas, descreve uma reportagem do UOL:
“Ainda no aeroporto de Congonhas (SP), minutos antes de entrar na aeronave, o ex-presidente do PT foi examinado por um médico da PF que emitiu um laudo informando que ele tinha plenas condições de fazer a viagem.
No entanto, antes de chegar a Belo Horizonte, onde embarcaram mais sete presos, entre eles o empresário Marcos Valério, Genoíno se sentiu mal devido à pressão alta. Quando a aeronave pousou em BH, às 15h17, uma ambulância ficou estacionada na pista e Genoíno foi medicado. Por essa razão, o voo decolou para Brasília com um pequeno atraso.
Procurado para comentar o ocorrido, Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do setorial jurídico do PT e um dos advogados que acompanhou Genoíno desde ontem, afirmou que o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Joaquim Barbosa, "assumiu o risco de conduzir José Genoíno a Brasília, mesmo em virtude do estado clínico que o acomete, o que comprova os excessos na condução do mandado de prisão".
Temos, então, dois absurdos acumulados.
Para levar Genoíno a Brasília, assegurando uma nova sessão de fotos e imagens para a TV, ele foi conduzido a uma viagem em situação de risco e teve de ser medicado.
Qual a necessidade? 
Do ponto de vista do cumprimento correto das penas, nenhuma. A razão é política.
O grave é que o tratamento inadequado, estimula cenas agressivas de  cidadãos contra condenados, como aconteceu no momento em que eram conduzidos em São Paulo ou Belo Horizonte, repetindo situações que já haviam ocorrido nas eleições  de 2010 e 2012, atingindo até mesmo o ministro Ricardo Lewandovski.
Não vamos entrar no mérito das conclusões do julgamento. Nem no conteúdo das denuncias que levaram a produção de penas altíssimas. Já discuti isso várias vezes.
Mas eu acho óbvio que este comportamento agressivo recebe estímulos de cima.
Num recurso de marketing primário, as prisões foram realizadas no dia da proclamação da República.
Mesmo que os condenados fossem culpados de todos os crimes que lhes são atribuídos – hipótese com a qual estou em desacordo absoluto – eles têm direito a um tratamento respeitoso. 
Não é difícil associar essa situação com o ambiente criado no STF pelo presidente/relator Joaquim Barbosa. Seu comportamento agressivo e truculento em relação a colegas é um fato amplamente conhecido.
O problema é que essas reações agressivas não envolvem, apenas, uma questão de comportamento e boas maneiras. Implicam, também, num gestual pouco civilizado, de alto grau de violência – ainda que simbólica – que intimida e até silencia seus interlocutores.
Na última sessão do STF, o ministro Teori Zavaski só precisou questionar uma proposição de Joaquim Barbosa para ser acusado de cometer uma “chicana”, expressão que, conforme  Houaiss, pode ser equivalente a “tramoia”, enquanto “chicaneiro” é definido como “trapaceiro.”
No mesmo dia, numa reação típica de quem sentia-se intimidada depois de expressar uma diferença em relação às opiniões de Barbosa, uma das ministras fez questão de esclarecer  que eram divergências ínfimas. 
Sendo quem é – representante de um dos poderes da República – esse comportamento se transmite, naturalmente, a várias camadas da sociedade.
Outros fatores contribuem na mesma direção. Envolvidos diretamente na produção das denuncias que alimentaram o escândalo, a maioria dos meios de comunicação tornou-se parte interessada no caso.
A dificuldade é que oito anos depois das primeiras notícias, continua apresentando os fatos da ação penal 470 como se toda a verdade se encontrasse nas manchetes de 2005. A realidade é que de lá para cá surgiram fatos novos e descobertas consistentes, que podem colocar em dúvida a versão inicial.
Para um esquema que teria desviado R$ 73,8 milhões do Banco do Brasil, uma auditoria da própria instituição assegura que não houve desvio de dinheiro público.
Contra a visão de que o esquema se baseava em empréstimos fraudados, a Polícia Federal apurou que os empréstimos do Banco Rural para o PT envolviam recursos verdadeiros, que foram usados para pagar despesas do partido e, mais tarde, quitados.
Um levantamento simples nos gastos de publicidade mostra que os próprios meios de comunicação receberam grande parte das verbas que teriam sido desviadas. Grupos como Globo, Folha, Estado, Abril e quem mais você lembrar das empresas de comunicação do país  estão entre os principais destinatários. O departamento comercial dessas empresas jamais negou o recebimento destes recursos, especialmente volumosos.
Foi assim que, enquanto as  denúncias ficaram magras, as penas permaneceram fortes. Sua base deixou de ser a prova, mas a denúncia de caráter moral.
Nesta situação, para tentar entender e avaliar o que se passou no julgamento, a maioria dos brasileiros só pode interpretar a coreografia do tribunal.
Não faz ideia de que juristas de valor reconhecido têm críticas a seus resultados e questionam boa parte das condenações. Não compreende que existem argumentos sólidos, que permitem acreditar na inocência absoluta dos condenados em relação aos crimes pelos quais foram condenados.
A truculência ajuda a criar uma novilíngua, onde o direito é visto como privilégio e toda tentativa de resistir a decisões que podem ser classificadas como  abusivas e arbitrárias não passa de um esforço para garantir uma posição superior na vida social.
Argumentos sensatos, bem fundamentados, são desqualificados e descartados como se não envolvessem um direito fundamental da existência humana, a liberdade.
Essa visão ajuda a formar a convicção popular, assinalada por Hanna Arendt ao estudar a emergência de processos totalitários na Europa dos anos 20 e 30, de que “os atos de violência podiam ser perversos, mas eram sinal de esperteza.” 
Falando sobre o universo mental daquele tempo, ela assinala que “o mal, em nosso tempo, tem uma atração mórbida.”
Não é um problema novo para os brasileiros, na verdade.
Em 1987, professor Antônio Flávio Pierucci (1945-2012) fez uma pesquisa antropológica nos bairros de classe média de São Paulo, que deixou ensinamentos úteis para o Brasil de 2013. 
Num texto chamado As Bases da Nova Direita, o professor assinalava que esta parcela influente de cidadãos já olhava com desconfiança para os primeiros avanços da democratização.
O país sequer havia votado em eleições diretas para presidente, a violência da tortura e das execuções de presos políticos fazia parte da memória muito recente, mas era possível registrar sinais de inconformismo com a nova situação. O motivo era uma política de direitos humanos lançada em São Paulo pelo governador Franco Montoro, um dos patronos do PSDB, num esforço para enfrentar e controlar atos da violência policial contra a população pobre e contra presos comuns.
Pierucci apontava para desvios de comportamento típicos:  um gosto especial por autoridades capazes de tomar medidas violentas e abusivas; a dificuldade de compreender que os direitos à dignidade e o respeito a lei precisam valer para todos – inclusive para pessoas condenadas pela Justiça – sob o risco de, aí sim, ser razoável falar em “degradação das instituições.”
Pesquisando a visão de mundo dessas pessoas, Pierucci anota: “Querer vê-los tendo arrepios, é pronunciar as palavras direitos humanos. Diante de uma pergunta dessas, eles e elas se inflamam, se enfurecem,” escreve.
“É interessante e decepcionante que a associação primeira do sintagma direitos humanos seja com a ideia de ‘mordomia’ para os presos.‘’
Sempre citando palavras recolhidas junto a homens e mulheres daquela época, o professor relata que, na visão dessas pessoas, o país assistia a uma “inversão de valores.”
Elas dizem que, enquanto o bandido é “endeusado, embora seja assassino, seja estuprador, seja o diabo”, e precisa de um “banhozinho de sol, precisa de champanhe francês, precisa de mulher”, o “policial é massacrado. Se ele dá um tiro por acaso, ele é massacrado e o bandido não, é exaltado.
Já em 1987, o professor antecipava: “a nova direita prima por diagnosticar a crise do presente como uma crise primeiramente cultural, uma crise de valores e de maneiras. Crise moral.”
Afirma Pierucci, ainda: “No Brasil metropolitano, há um acúmulo de tensões de toda ordem extremamente propício à arregimentação de cruzadas moralistas.”
É curioso observar porém que, um quarto de século depois, assistimos a um lamentável nivelamento por baixo.
O país e todos os seus governos não apenas fracassaram no esforço necessário para enfrentar  abusos inaceitáveis contra a população pobre, resistindo a toda proposição capaz de democratizar o aparato policial em atividade.
Através da criminalização da atividade política a partir de uma visão moralista,  um dos traços fundamentais da ação penal 470, convive-se agora com abusos contra homens públicos, com biografia respeitável e um histórico de valor.
Mesmo que Dirceu e Genoíno fossem culpados de todos crimes que lhe são atribuídos – o que está longe de demonstrado para além de toda dúvida razoável, como define a tradição do Direito – não há motivo para justificar qualquer  falta de respeito.
Mas é isso o que acontece. Temos comentaristas pródigos na produção de frases marotas de lamento diante das oportunidades perdidas para humilhar, envergonhar e machucar – até fisicamente – os condenados. Mesmo regras, criadas pelo próprio STF, que limitam bastante o uso de algemas no momento da prisão, são criticadas, nem sempre com a sutileza que se poderia imaginar.
Os condenados não se “apresentaram” a polícia, dizem. Se “entregaram,” expressão que procura esconder toda tentativa de preservar a própria dignidade numa hora tão difícil para toda pessoa que tem a força do Estado contra si.
Como bons “chicaneiros,” apenas “querem ganhar tempo” e “protelar”.
Sempre lembrando que se vive num país onde os direitos humanos são uma meta que nunca esteve ao alcance maioria da população, o que se assiste é uma regressão histórica. Num país que não avançou o suficiente, anda-se para trás.
O abuso e a falta de respeito não apontam para o progresso. Ajudam  estimular e saciar o ressentimento.
Explicando o sentido das execuções públicas nas sociedades europeias do século XVII e XVIII, quando pessoas eram torturadas em praça pública antes de perder a vida, a historiadora Lynn Hunt explica na obra A Invenção dos Direitos Humanos que aquele  espetáculo mórbido tinha objetivos políticos claros: “as dores do corpo não pertenciam inteiramente à pessoa condenada individual. Essas dores tinham propósitos mais elevados de redenção e reparação da comunidade.”
Falando do comportamento da população, observadores  mencionados por Hunt observam que havia no rosto da plateia uma “espécie de Alegria como se o espetáculo que tinham presenciado lhes proporcionasse Prazer em vez de Dor.”
Ela também cita o jornal Morning Post que critica a “indecência extremamente desumana” de uma “multidão impiedosa”, que gritava, ria e agredia aqueles  “poucos que manifestavam uma compaixão apropriada pelas desgraças de seus semelhantes.”


Paulo Moreira Leite – Jornalista – 17.11.2013





Ação Penal 470: uma exceção para a história


Não enxergo qualquer efeito pedagógico nesse julgamento e não desejo em hipótese alguma que se repita em outros processos futuros.


Wanderley Guilherme dos Santos
Ao bem afamado Péricles, o ateniense, é atribuída a opinião de que, embora sendo certo que nem todos têm sabedoria para governar, a capacidade de julgar um governo em particular é universal. A observação parece valer com razoável generalidade. Por exemplo: nem por faltar um diploma em medicina está um adoentado impedido de avaliar a competência do profissional que o assiste. Assim, ainda que não portador de títulos ou conhecimentos para ocupar assento no Supremo Tribunal Federal, tenho como direito constitucional e recomendação de um clássico grego inteira liberdade para opinar sobre a Ação Penal 470.
Posso dispensar a cautela de não me indispor com aquele colegiado, pois não tenho licença para advogar oficialmente ou não a causa de quem quer que seja. E contrariando desde logo o juízo de algumas pessoas de bem, não enxergo qualquer efeito pedagógico nesse julgamento e não desejo em hipótese alguma que se repita em outros processos. Falacioso em seu início, enredou os ministros em pencas de distingos argumentativos e notória fabricação de aleijados fundamentos jurídicos. Não menciono escandalosos equívocos de análise com que a vaidade de alguns e a impunidade de todos sacramentaram, pelo silêncio, o falso transformado em verdadeiro por conluio majoritário. Vou ao que me parece essencial.
A premissa maior da denúncia postulava a existência de um plano para a perpetuação no poder arquitetado por três ou quatro importantes personagens do Partido dos Trabalhadores. Até aí nada, pois é aspiração  absolutamente legítima de qualquer partido em uma ordem democrática. Não obstante, é também mais do que conhecido que o realismo político recomenda, antes de tudo, a busca da vitória na próxima eleição. Não existe a possibilidade logicamente legítima de extrair de uma competição singular, exceto por confissão dos envolvidos, a meta de perpetuação no poder de forma ilegal ou criminosa. Pois o procurador-geral da República pressupôs que havia um plano transcendente à próxima eleição, a ser executado mediante meios ilícitos.
A normal aspiração de continuidade foi denunciada como criminosa, denúncia a ser comprovada no decorrer do julgamento. E aí ocorreu essencial subversão na ordem das provas. Ao contrário de cada conjunto parcial de evidências apontar para a solidez da premissa era esta que atribuía a frágeis indícios e bisbilhotices levianas uma contundência e cristalinidade que não possuíam. Todos os ministros engoliram a pílula da premissa e passaram a discutir, às vezes pateticamente, a extensão de seus efeitos. Dizer que a mídia reacionária ajudou a criar a confusão, que, sim, o fez, não isenta nenhum dos ministros da facilidade com que caíram na armadilha arquitetada pelo procurador geral e pelo ministro relator Joaquim Barbosa.
Era patético, repito, o espetáculo em que cada ministro procurava nos textos legais quer a inocência, quer a culpabilidade dos acusados. Em momentos, fatos que eram apresentados por um ministro como tendo certa significação, derivada da premissa, e por isso condenava o acusado pelo crime supostamente cometido, os mesmos fatos eram apresentados como significando o oposto e, todavia, servindo de comprovação da culpabilidade do acusado. Exemplo: a ministra Carmem Lucia entendeu que o fato de a mulher de João Paulo Cunha ter ido descontar ou receber um cheque em gerência bancária no centro de Brasília comprovava a tranqüilidade com que os acusados cumpriam atos criminosos à luz do dia, desafiadoramente. Já a ministra Rosa Weber interpretou o mesmo fato como uma tentativa de esconder uma ação ilegal e, portanto, João Paulo Cunha, seu marido, era culpado. Uma ação perfeitamente legal, note-se, o desconto de um  cheque, sofreu dupla operação plástica: uma transformou-o em deboche à opinião pública, outra o encapotou como um pioneiro ato blackbloc. Dessas interpretações contraditórias, seguiu-se a mesma conclusão condenatória, pela intermediação da premissa maior, segundo a qual qualquer ato dos indiciados estava associado àquele desígnio criminoso.
Estando os acusados condenados conforme tal rito subversivo, o julgamento de outras acusações (sendo o julgamento “fatiado” como bem arquitetou o relator Joaquim Barbosa, enfiando-o aos gritos pela goela de nove dos 11 ministros) se iniciava assim: tendo ficado provado que o réu cometeu tal e tal crime, lá se ia nova acusação como se se tratasse de um reincidente no mundo do crime em momentos diferentes no tempo. E mais, como se a condenação já estabelecida houvesse confirmado a veracidade da premissa maior sobre a existência de um plano político maligno. Pois assim foi até o fim: a premissa caucionando indícios frágeis – e até mesmo a total ausência de indícios como na fala da ministra Rosa Weber explicando que aceitava a culpabilidade de José Dirceu justamente pela inexistência de provas – e os indícios frágeis, convertidos em condenações, emprestando solidez a uma estapafúrdia premissa.
Foi igualmente lamentável o espetáculo da dosimetria. Como calcular penas segundo a extensão e intensidade do agravo, se a existência do agravo pendia de farrapos de indícios? E como calcular se o que sustentava os indícios era uma conjetura dialeticamente tornada plausível por esses farrapos e para a qual não há pena explícita consignada?
Todos os ilícitos comprovados, e vários o foram, se esclarecem e adquirem sentido terreno quando se aceita o crime confesso de criação e utilização de caixa dois.
Esta outra acusação foi desvirtuada pela mídia e pelos ressentidos de derrotas eleitorais, apresentando-a como tentativa de inocentar militantes políticos.
Notoriamente, buscou-se punir de qualquer modo os principais nomes do Partido dos Trabalhadores. A seguir, sucederam-se os contorcionismos para a montagem de um roteiro em que se busca provar o inexistente.

Não há nada a copiar neste julgamento de exceção – a Ação Penal 470.


Wanderley Guilherme dos Santos – Cientista político – 15.11.2013



O vinho amargo que será tomado para
 festejar a prisão de Dirceu



A DIREITA BRASILEIRA, NA FALTA DE VOTOS, PROCURA INCANSAVELMENTE OUTRAS MANEIRAS DE TOMAR POSSE DO ESTADO – E DOS COFRES DO BNDES, E DAS MAMATAS PROPORCIONADAS POR PRESIDENTES SERVIÇAIS ETC ETC. A PALAVRA MÁGICA É, SEMPRE, “CORRUPÇÃO”. (...)
FOI ASSIM COMO O “MAR DE LAMA” INVENTADO CONTRA GETÚLIO, EM 1954. FOI ASSIM COM JANGO, DEZ ANOS DEPOIS, ALVO DO MESMO TIPO DE ACUSAÇÃO SÓRDIDA E MENTIROSA.

Paulo Nogueira
Colunistas da mídia estão festejando com sua habitual hipocrisia estridente a decisão do Supremo de ontem de mandar prender boa parte dos réus.
Dirceu preso era o sonho menos deles do que de seus patrões.
Num momento particularmente abjeto da história da imprensa brasileira, dois colunistas chegaram a apostar um vinho em torno da prisão, ou não, de Dirceu.
Você vai ler na mídia intermináveis elogios aos heróis togados, aspas, comandados pelo já folclórico Joaquim Barbosa.
Mas um olhar mais profundo, e menos viciado, mostra que o Mensalão representou, na verdade, uma derrota para a elite predadora que luta ferozmente para conservar seus privilégios e manter o Brasil como um dos campeões de desigualdade social.
Por que derrota, se a foto de Dirceu na cadeia vai estar nas manchetes?
Porque o que se desejava era muito mais que isso. O Mensalão foi a maneira que o chamado 1% encontrou para repetir o que fizera em 1954 com Getúlio e 1964 com João Goulart.
Numa palavra, retomar o poder por outra via que não a das urnas. A direita brasileira, na falta de votos, procura incansavelmente outras maneiras de tomar posse do Estado – e dos cofres do BNDES, e das mamatas proporcionadas por presidentes serviçais etc etc.
A palavra mágica é, sempre, “corrupção” – embora nada mais corrupto e mais corruptor que a direita brasileira. Sua voz, a Globo, sonegou apenas num caso 1 bilhão de reais numa trapaça em que tratou a compra dos direitos de transmissão de uma Copa como se fosse um investimento no exterior.
Foi assim como o “Mar de Lama” inventado contra Getúlio, em 1954. Foi assim com Jango, dez anos depois, alvo do mesmo tipo de acusação sórdida e mentirosa.
E foi assim agora.
Por que o uso repetido da “corrupção” como forma de dar um golpe? Porque, ao longo da história, funcionou.
O extrato mais reacionário da classe média sempre foi extraordinariamente suscetível a ser engabelado em campanhas em nome do combate – cínico, descarado, oportunista – à corrupção.
A mídia – em 54, 64 e agora – faz o seguinte. Ignora a real corrupção a seu redor. Ao mesmo tempo, manipula e amplia, ou simplesmente inventa, corrupção em seus adversários.
Agora mesmo: no calor da roubalheira de um grupo nascido e crescido nas gestões de Serra e Kassab na prefeitura, o foco vai se desviando para Haddad. Serra é poupado, assim como em outro escândalo monumental, o do metrô de São Paulo.
Voltemos um pouco.
A emenda que permitiu a reeleição de FHC passou porque foi comprado apoio para ela, como é amplamente sabido. Congressistas receberam 200 000 reais em dinheiro da época – multiplique isso por algumas vezes para saber o valor de hoje — para aprová-la.
Mas isso não é notícia. Isso não é corrupção, segundo a lógica da mídia.
O caso do Mensalão emergiu para que terminasse como ocorreu em 1954 e 1964: com a derrubada de quem foi eleito democraticamente sob o verniz da “luta contra a corrupção”.
Mas a meta não foi alcançada – e isso é uma extraordinária vitória para a sociedade brasileira. No conjunto, ela não se deixou enganar mais uma vez.
O sonho de impeachment da direita fracassou. Ruiu também a esperança de que nas urnas, sob a influência do noticiário massacrante, os eleitores votassem nos amigos do 1%: Serra conseguiu perder São Paulo para Haddad, um desconhecido.
O que a voz rouca das ruas disse foi: estão tentando bater minha carteira com esse noticiário.
O brasileiro acordou. Ele sabe que o que a Globo — ou a Veja, ou a Folha – quer é bom para ela, ou elas, como mostram as listas de bilionários brasileiros, dominadas pelas famílias da mídia. Mas não é bom para a sociedade.
E por estar acordado o brasileiro impediu que o Mensalão desse no que o 1% queria – num golpe.
Por isso, o vinho que será tomado pela prisão de Dirceu será extremamente amargo.


Paulo Nogueira – Fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo – 14.11.2013