sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Guerra obscurantista contra Caetano Veloso deve envergonhar o país




Há nisso uma questão decisiva para todos nós: o casamento perverso do moralismo com a política deprecia a moral e degrada a política. O ataque insano à referência cultural canônica não se reduz ao campo estritamente pessoal –o que já bastaria para exigir nosso repúdio. O alvo é a história cultural do Brasil, como hoje a narramos (narrativa que é chave, porque produz auto-imagens, viabilizando auto-reflexão). O alvo é nossa memória comum, ancorada nas referências estéticas que a constróem e sintetizam. O alvo dos ataques inomináveis é a auto-reflexão, aquilo que dá sentido à palavra consciência. É a arte, essa combinação explosiva de amor e rebeldia.

Luís Eduardo Soares
Os cavaleiros da cruzada em curso na internet não têm limites. Sua guerra covarde e obscurantista contra Caetano Veloso deve envergonhar o país. É inaceitável naturalizar o que está acontecendo. Caetano somos todos os que amamos a liberdade. O que mais vamos esperar para agir? Convido os leitores a refletir sobre o que está em jogo.
O Tropicalismo faz 50 anos e seus efeitos não cessaram. A despeito da sombra que caiu sobre o país, o Brasil é hoje, em parte graças à força tectônica daquela ousadia radical, menos provinciano e racista do que era há meio século, menos preconceituoso e mais livre para amar canções, pessoas e poemas. A sociedade brasileira está hoje mais madura, crítica e aberta para amar-se a si mesma, sem auto-indulgência, na diversidade que a constitui, apesar da avalanche regressiva, da conjuntura conflagrada e do ódio que envenena as relações.
Ao longo dessas décadas, Caetano e Gil alcançaram um patamar raríssimo de consagração e reconhecimento, da altura de seus méritos e talentos. Já foram ídolos pop. Hoje, sem perder o carisma, são protagonistas centrais das culturas brasileiras. Esse lugar independe de opiniões eventuais e do gosto idiossincrático, é parte da história. Quando contemplamos nosso pedaço de continente devastado pela crise, não cedemos às tentações do ceticismo e do isolamento imobilista porque, à nossa volta, não há só ruínas. Há trajetórias e realizações que nos comovem e encantam. São motivo de orgulho e confiança no gênio humano, essa potência criadora que aqui fala português.
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Luís Eduardo Soares – Antropólogo – 28.10.2017.
IN Justificando.