terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Os números nunca mentem?


A falta de um padrão nacional na classificação das causas de morte dos corpos encontrados abala a confiança nas estatísticas criminais.

Rodrigo Martins
Na segunda-feira 13, o Instituto de Segurança Pública (ISP) festejou mais uma queda na taxa de homicídios do Rio de Janeiro. De acordo com a entidade, responsável por produzir as estatísticas criminais do estado, ocorreram 403 assassinatos em abril, uma redução de 6,7% em relação ao mesmo período do ano passado. Por outro lado, o número de cadáveres encontrados pela polícia subiu de 45, em abril de 2010, para 60 no mesmo mês deste ano, um aumento de 33%. Esses corpos, ao menos oficialmente, não tiveram a circunstância da morte determinada e, por isso, não foram incluídos no somatório de assassinatos.
Não é possível dizer que esse acréscimo no número de cadáveres sem a causa da morte especificada possa interferir na tendência de redução dos homicídios no estado. Mas o fenômeno preocupa organizações de direitos humanos. “Há muitas formas de se maquiar dados criminais, uma delas é classificar uma morte como ‘indeterminada’. Há alguns anos pesquisamos os laudos necroscópicos de alguns desses corpos e descobrimos que muitos tinham sinais de execução”, afirma Sandra Carvalho, diretora da ONG Justiça Global.
A desconfiança com as estatísticas de criminalidade do Rio de Janeiro ganhou destaque nos últimos meses após o diagnóstico de uma distorção nos dados estaduais incluídos no Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde. Apesar da expressiva redução das taxas de homicídio, o número de mortes violentas com “intenção indeterminada” triplicou nos últimos anos. São mortes decorrentes de causas externas (e não doenças), mas não esclarecidas. Isto é, quando não se sabe se o indivíduo foi vítima de assassinato, acidente ou suicídio.
De acordo com o banco de dados do Ministério da Saúde, alimentado pelas secretarias municipais de Saúde, o estado teve 1.673 mortes violentas sem causa especificada em 2006. No ano seguinte, o primeiro do governo Sérgio Cabral (PMDB), elas subiram 90% (3.174 ocorrências). Em 2009, esse tipo de registro chegou a 5.637 casos. Isso significa que, neste ano, pelas estatísticas oficiais, houve o registro de mais mortes “indeterminadas” que homicídios confirmados (4.189).
Por meio de nota, a subsecretária de Vigilância em Saúde do Rio, Hellen Miyamoto, informou que a secretaria assinou, há dois meses, convênio com o ISP “justamente para esclarecer a causa dessas mortes”. Segundo ela, os casos relacionados aos anos de 2009 e 2010 serão reavaliados.

Há três anos, a antropóloga Ana Paula Miranda foi exonerada da direção do ISP após a entidade ter registrado um número recorde de mortos pela polícia. Em seu lugar foi nomeado o ex-comandante do Bope- (Batalhão de Operações Especiais) e atual comandante da Polícia Militar, Mário Sérgio Duarte. A CartaCapital a antropóloga afirmou desconhecer qualquer indício de manipulação dos dados após a sua saída. Mas descreveu algumas das situações que vivenciou nos quatro anos em que esteve à frente do instituto.
“O número de mortes indeterminadas deveria ser residual, e não era. Ao investigar os laudos periciais desses cadáveres, descobríamos que muitas pessoas foram vítimas de tortura, de disparos de arma de fogo ou esfaqueadas: eu encaminhava os casos à Corregedoria da Polícia e pedia a reclassificação da morte para homicídio”. Segundo a especialista, dezenas de casos foram reclassificados graças à intervenção de pesquisadores do ISP anualmente.

Hoje, sob a chefia de outro coronel da PM, Paulo Teixeira, o ISP garante que todos os seus dados são auditados, não apenas pela Corregedoria da Polícia, mas também por especialistas do instituto. “É natural o questionamento dos critérios que usamos para definir o que é homicídio, mas não podem nos acusar de manipulação. Muitos nos contestam por separar o número de mortes causadas pela polícia, mas este é um indicador importante para aferir a letalidade das forças de segurança. Quem quiser considerar homicídio e incluir na soma, pode fazer isso”, afirma Renato Dirk, analista criminal do ISP.
A situação do Rio não é um caso isolado. Na realidade, não existe uma norma que defina parâmetros nacionais para o registro e a compilação das estatísticas de criminalidade. Por isso, cada instituto ou órgão público segue a sua própria metodologia. “Isso torna inviável a comparação de dados estatísticos entre os estados. O que está sendo avaliado como homicídio em São Paulo pode estar sendo desconsiderado no Acre ou na Bahia”, afirma Renato Lima, secretário-geral do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que publica anualmente um balanço estatístico com os principais indicadores de criminalidade. Para montar as tabelas comparativas, os pesquisadores do Fórum separam os dados em dois grupos: aqueles com sistemas de informação mais confiáveis, sobretudo os estados do Sul, Sudeste e Centro Oeste, e aqueles com base estatística mais precária, em sua maioria os estados do Norte e Nordeste. “Essa diferenciação é necessária porque muitas regiões produzem dados defasados e de qualidade duvidosa. É preciso reconhecer os esforços de muitos governos, mas a situação ainda é crítica.”
Mesmo em estados com bancos de dados considerados confiáveis, um leigo pode se perder diante de tantas estatísticas diferentes sobre um mesmo fenômeno. Em Minas Gerais, há três indicadores oficiais de homicídios, um da Secretaria de Defesa Social, outro da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) e mais um do Ministério da Saúde. Nas três bases de dados, o número de assassinatos pode variar entre 2.812 e 4.108 (tabela à pág. 48).

Apesar da discrepância entre os indicadores, as diferenças se devem a questões metodológicas. Para contabilizar as mortes violentas, a Senasp trabalha com as informações dos boletins de ocorrência da Polícia Civil. Apenas quando o delegado registra o crime como “homicídio doloso ou roubo seguido de morte (latrocínio)”, conforme as especificações do Código Penal, o dado é considerado. Além disso, a estatística não costuma levar em conta o número de vítimas, e sim de ocorrências. A chacina na escola de Realengo resultou na morte de 12 crianças em abril. Mas, nos registros do Ministério da Justiça, pode ser contabilizada como um único homicídio.
A secretária nacional de Segurança Pública, Regina Miki, reconhece a precariedade dos dados. “Nosso sistema depende das informações dos estados, que usam critérios diferentes, normalmente aqueles que mais interessam aos respectivos governos”, afirma, sem citar exemplos.

 

Segundo Miki, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, visitou 15 estados brasileiros e pretende percorrer todos os demais até o fim de julho para discutir um plano de redução dos homicídios no País, hoje na casa dos 50 mil por ano. Esse plano inclui a formação de um Sistema Único de Segurança Pública, com uma base de dados alimentada em tempo real pelos estados. “O maior esforço é o de pactuar com os governadores uma metodologia única de registro e tratamento das estatísticas, fazer com que todos os estados adotem os mesmos critérios. Esse projeto poderá vincular a destinação de recursos federais à alimentação do banco de dados nacional, a exemplo do que ocorre no SUS.”
Apesar de seguir uma lógica epidemiológica, os dados de violência coletados pelo Ministério da Saúde são referências importantes para os analistas criminais. Todas as mortes provocadas por causas externas e com sinais de violência, como disparos de arma de fogo e ferimentos causados por arma branca, são contabilizados como “mortes por agressão”. O registro é feito com base nas certidões de óbito e nos laudos do Instituto Médico Legal. Dessa forma, a estatística consegue captar com mais precisão o número de brasileiros assassinados, sobretudo porque também contabiliza as vítimas que faleceram algum tempo depois da ocorrência policial.
Mas esse indicador possui as suas limitações. Uma delas é a inclusão, numa mesma categoria, de tipos penais diferentes, como homicídios dolosos e lesões corporais seguidas de morte. Além disso, quando a certidão de óbito não especifica a circunstância da morte (homicídio, suicídio ou acidente), o caso é cadastrado pelas secretarias municipais de Saúde como morte de “intenção indeterminada”. Nesses casos, a cartilha oficial recomenda reavaliação dos casos, ao menos uma consulta mais criteriosa ao laudo necroscópico para verificar se, de fato, não se trata de homicídio.
O elevado número de mortes sem causa especificada indica, porém, que nem sempre a norma é cumprida. Entre 2006 e 2008, a taxa anual de homicídios passou de 49.145 para 50.133 no Sistema de Informações sobre Mortalidade. Já as mortes indeterminadas passaram de 9.147 para 12.056 no mesmo período. Em 2009, o indicador chegou a alarmantes 15.603 casos, embora os técnicos do Ministério da Saúde destaquem que os dados desse ano são preliminares e podem ser revisados. “Trata-se de uma base de dados em constante atualização”, enfatiza Otaliba Libânio, diretor do Departamento de Análise.
Na avaliação de Claudio Beato, coordenador do Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública da UFMG (Crisp), os problemas em registros de crimes sexuais e contra o patrimônio são ainda mais graves. “A subnotificação de furtos e assaltos pode chegar a 80% no Brasil. Muitas vítimas desistem de denunciar, seja por não confiar na polícia, seja porque o atendimento nas delegacias é precário.” O Crisp e o Instituto Datafolha estão em campo para fazer a primeira pesquisa nacional de vitimização da população brasileira. Cerca de 75 mil entrevistas foram realizadas e os pesquisadores esperam preencher 90 mil questionários até o fim do ano. “Ao ouvir a população, será possível contrapor as informações das vítimas com os dados oficiais apresentados pelo governo e identificar eventuais contradições.”


Rodrigo Martins – Jornalista – 05.07.2011





Crimes invisíveis: boletins distorcem

estatística de homicídio



Casos de assassinato são registrados pela polícia paulista como "morte a esclarecer" ou "encontro de cadáver"


Gilmar Penteado & Alexandre Hisayasu (17.01.2005)
Em um espancamento com morte, nomes e apelidos de suspeitos de praticar o crime são relacionados. Em outro caso, depois de uma denúncia anônima de assassinato, um corpo é encontrado enterrado com uma lesão na cabeça. Em um terceiro local, onde outro jovem é encontrado morto, é descrita uma cena montada para simular um suicídio.
Todas os dados acima estão em boletins de ocorrência registrados por policiais civis de São Paulo, com a assinatura de um delegado. Apesar das evidências existentes no momento da elaboração do boletim, nenhum desses casos foi registrado como homicídio doloso (com intenção). Com isso, ficaram de fora das estatísticas oficiais sobre esse tipo de crime na gestão do governador Geraldo Alckmin (PSDB).
No cabeçalho dos boletins, no item "natureza" da ocorrência, aparecem "encontro de cadáver" e "morte a esclarecer". Essas classificações -destinadas a casos em que não há sinal externo de violência e a vítima poderia ter sofrido morte natural- fazem com que esses registros entrem na categoria estatística das "ocorrências não-criminais".
A Folha identificou 14 boletins de 2004 nos quais, segundo especialistas e a Ouvidoria Geral da Polícia de São Paulo, o registro de encontro de cadáver ou morte a esclarecer é contraditório com as evidências de assassinato listadas pelos próprios policiais no mesmo documento (veja quadros na página C3). A imprensa não tem acesso ao sistema informatizado de boletins, o que permitiria uma pesquisa mais ampla.
A reportagem também entrevistou familiares de vítimas e testemunhas citadas nos boletins, que afirmaram ter visto lesões ou outros indícios de homicídio doloso, o que garantiria a inclusão dos crimes nas estatísticas.


Distorção

Integrantes do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo), além do ouvidor-geral da polícia paulista, Itajiba Farias Ferreira Cravo, dizem que não há dúvidas de que os documentos foram preenchidos incorretamente, de propósito ou não.
O resultado disso, segundo eles, é o mascaramento das estatísticas de homicídios dolosos no Estado. A Secretaria Estadual da Segurança Pública nega que tenha havido erro no preenchimento dos BOs.
Os boletins de ocorrência são a base para a elaboração das estatísticas criminais. Oficialmente, os homicídios dolosos estão queda. Os primeiros nove meses de 2004 apontaram 6.855 casos no Estado -é o menor índice em pelo menos dez anos.
A estatística é mencionada pela Secretaria da Segurança Pública como um sinal da diminuição da criminalidade e do aumento da eficácia da sua polícia.
"Existe uma incoerência clara entre a natureza definida e o histórico registrado", afirma o presidente do IBCCrim, Maurício Zanóide de Moraes.
Para ele, existem três explicações possíveis para essa incoerência: má-fé (com o objetivo de maquiar estatísticas), negligência ou incompetência.
No primeiro caso, Moraes lembra que, nos últimos anos, aumentou a importância das estatísticas sobre o trabalho policial. De um lado, o governo quer baixar os índices para mostrar controle da criminalidade. De outro, policiais também passaram a ser mais cobrados para cumprir metas de redução de crimes.


Dupla informação

Segundo Moraes, isso pode explicar a incoerência entre a natureza da ocorrência e as informações do histórico. "[O boletim] engana a estatística, mas conta a verdade para a equipe que vai investigar o caso", afirma o presidente do IBCCrim.
Ele também acredita que a negligência e até a incompetência de alguns policiais podem explicar esses erros. "Mas só um levantamento estatístico completo, com tendências anteriores, poderá esclarecer isso", afirma.
Para Wânia Pasinato Izumino, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo) e doutora em sociologia, o erro nos boletins é indiscutível e é mais um fator que coloca em xeque a credibilidade das estatísticas criminais em São Paulo. "A polícia não tem padronização para nada."
Dos 14 boletins de ocorrência identificados pela reportagem, seis se referem a mortes ocorridas na capital paulista, sete na Grande São Paulo e um no interior paulista -todas as divisões territoriais adotadas pela secretaria para a elaboração das estatísticas.



Exceção

"O que se pode dizer é que, no mínimo, está se trabalhando de maneira equivocada e utilizando uma exceção [morte a esclarecer e encontro de cadáver] onde claramente há um tipo penal", afirma o ouvidor-geral da polícia de São Paulo. Para ele, só uma investigação caso a caso vai mostrar se houve dolo -intenção de burlar as estatísticas.
"Isso pode ser só a ponta do iceberg", alerta o delegado aposentado Roberto Maurício Genofre, ex-corregedor da Polícia Civil e professor da Academia de Polícia, também integrante da diretoria do IBCCrim.
"As estatísticas criminais são uma caixa preta, o que permite que eles [o governo] vivam sem controle", afirma Genofre, que também é professor de direito na PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo. Segundo ele, a falta de acesso impede que as estatísticas sejam contestadas.

Gilmar Penteado & Alexandre Hisayasu – “Folha de São Paulo” – 17.01.2005




Secretaria barrou pesquisa sobre BOs


Núcleo de Estudos da Violência pretendia analisar, entre outros pontos, eventuais distorções nas estatísticas


Gilmar Penteado & Alexandre Hisayasu (17.01.2005)
Casos de encontro de cadáver e morte a esclarecer eram um dos alvos de uma pesquisa do Núcleo de Estudo da Violência da USP (Universidade de São Paulo). Mas a coleta de dados pelos pesquisadores em distritos policiais de São Paulo está suspensa desde 2003.
Segundo a pesquisadora Wânia Pasinato Izumino, doutora em sociologia, policiais dos distritos informaram que receberam determinação da Secretaria da Segurança Pública de não permitir mais o acesso aos dados de boletins e inquéritos.
Com a supervisão de Sérgio Adorno, coordenador do núcleo, a pesquisa pretendia medir a taxa de impunidade penal. Para isso, seriam acompanhados crimes violentos ocorridos entre 1991 e 1999, dos primeiros registros policiais até as sentenças judicias.
Segundo Wânia Izumino, os registros de encontro de cadáver e morte a esclarecer foram incluídos na pesquisa depois de denúncias de suposta maquiagem de boletins. "Poderia ser um desvio. Por isso, incluímos esses casos."
A coleta de dados em 14 distritos e duas delegacias de defesa da mulher da Seccional Oeste de São Paulo começou em dezembro de 2001, com autorização do então secretário da Segurança Pública, Marco Vinicio Petrelluzzi - Saulo de Castro Abreu Filho assumiu o cargo em janeiro de 2002. A primeira fase incluía a pesquisa dos livros de registros -listagens das ocorrências de inquéritos.
Em junho de 2003, porém, os pesquisadores foram informados pelos policiais que o acesso aos dados havia sido suspenso, segundo a pesquisadora. Ela diz que a secretaria exigia todos os resultados da primeira fase da pesquisa. Essa solicitação significava, na opinião dela, uma tentativa de controle do trabalho científico.
"Isso é uma afronta. Já tínhamos passado a metodologia, os pesquisadores responsáveis e os objetivos. Temos de prestar os dados brutos para a fundação financiadora. Não temos de prestar contas para a secretaria do que é feito com dados públicos", afirma a pesquisadora.
Segundo ela, o NEV encaminhou, em meados de 2004, novo ofício reforçando as informações sobre objeto e metodologia, mas até agora não houve resposta.
A pesquisadora diz que não houve tempo para analisar os casos de morte a esclarecer e encontro de cadáver. Mas foi possível tomar algumas conclusões no trabalho. "O preenchimento [do boletim] não tem padrão nenhum. É feito a partir da cabeça do escrivão", afirma. A proibição do acesso prejudicou a pesquisa, que já deveria estar na fase de conclusão, mas apresenta hoje várias lacunas, segundo Wânia Izumino.
A Secretaria da Segurança Pública afirma que a pesquisa está paralisada porque o NEV não encaminhou informações solicitadas, como metodologia, objetivos e dados sobre a primeira fase. O órgão diz que avisou o núcleo sobre isso, mas não teve retorno. A secretaria diz ainda que tem interesse na realização da pesquisa.
De acordo com o coordenador da CAP, Túlio Kahn, que já foi pesquisador do NEV, o governo estaria abrindo uma exceção se não exigisse as informações dos pesquisadores. Segundo ele, as mesmas exigências são feitas a outras instituições de pesquisa do país e do exterior.



Gilmar Penteado & Alexandre Hisayasu – Jornalistas – 17.01.2005

sábado, 28 de janeiro de 2012

Pinheirinho, Cracolândia e USP: em vez de política, polícia!

Os três eventos envolvem conflitos na gestão e ocupação do território. Os três são situações complexas, que demandariam um conjunto de políticas de curto, médio e longo prazo para serem enfrentados. Os três requerem um esforço enorme de mediação e negociação. Entretanto, qual é a resposta para esta complexidade conflituosa? A violência, a supressão do diálogo, o acirramento do conflito.



Raquel Rolnik
Domingo, 22 de janeiro de 2012, 6h da manhã, São José dos Campos (SP).
Milhares de homens, mulheres, crianças e idosos moradores da ocupação Pinheirinho são surpreendidos por um cerco formado por helicópteros, carros blindados e mais de 1.800 homens armados da Polícia Militar. Além de terem sido interditadas as saídas da ocupação, foram cortados água, luz e telefone, e a ordem era que famílias se recolhessem para dar início ao processo de retirada. Determinados a resistir — já que a reintegração de posse havia sido suspensa na sexta feira – os moradores não aceitaram o comando, dando início a uma situação dramaticamente violenta que se prolongou durante todo o dia e que teve como resultado famílias desabrigadas, pessoas feridas, detenções e rumores, inclusive, sobre a existência de mortos.
Nos últimos 08 anos, os moradores da ocupação lutam pela sua permanência na área. Ao longo desse tempo, eles buscaram firmar acordos com instâncias governamentais para que fosse promovida a regularização fundiária da comunidade, contando para isto com o fato de que o terreno tem uma dívida milionária de IPTU com a prefeitura. O terreno pertence à massa falida da empresa Selecta, cujo proprietário é o especulador financeiro Naji Nahas, já investigado e temporariamente preso pela Polícia Federal na operação Satiagraha. No fim da semana, várias foram as idas e vindas judiciais favoráveis e contrárias à reintegração, assim como as tratativas entre governo federal, prefeitura, governo de Estado e parlamentares para encontrar uma saída pacífica para o conflito.Com o processo de negociação em curso e com posicionamentos contraditórios da Justiça, o governo do Estado decide armar uma operação de guerra para encerrar o assunto.

03 de janeiro de 2012, região da Luz, centro de São Paulo.
A Polícia da Militar inicia uma ação de “limpeza” na região denominada pela prefeitura como Cracolândia. Em 14 dias de ação, mais de 103 usuários de drogas e frequentadores da região foram presos pela polícia com uso da cavalaria, spray de pimenta e muita truculência. Em seguida, mais de trinta prédios foram lacrados e alguns demolidos. Esta região é objeto de um projeto de “revitalização” por parte da prefeitura de São Paulo, que pretende concedê-la “limpinha” para a iniciativa privada construir torres de escritório e moradia e um teatro de ópera e dança no local. Moradores dos imóveis lacrados foram intimados a deixar a área mesmo sem ter para onde ir. Comerciantes que atuam no maior polo de eletroeletrônicos da América Latina, a Santa Efigênia , assim como os moradores que há décadas vivem ali, vêm tentando, desde 2010, bloquear a implantação deste projeto, já que este desconsidera absolutamente suas demandas.

08 de novembro de 2011, 05h10 da manhã, Cidade Universitária, São Paulo.
Um policial aponta a arma para uma estudante de braços levantados, a tropa de choque entra no prédio e arromba portas (mesmo depois de a polícia já estar lá dentro), sem deixar ninguém mais entrar (nem a imprensa, diga-se de passagem), nem sair, tudo com muita truculência. Este foi o início do processo de desocupação da Reitoria da Universidade de São Paulo, ocupada por estudantes em protesto à presença da PM no Campus. Os estudantes são surpreendidos por um cerco formado pela tropa de choque e cavalaria, totalizando mais de 300 integrantes da Polícia Militar. Depois de horas de ação violenta, são retirados do prédio e levados presos mais de 73 estudantes. Camburão e helicópteros acompanham a ação.


O que estes três episódios recentes e lamentáveis têm em comum?
Os três eventos envolvem conflitos na gestão e ocupação do território. Os três são situações complexas, que demandariam um conjunto de políticas de curto, médio e longo prazo para serem enfrentados. Os três requerem um esforço enorme de mediação e negociação.
Entretanto, qual é a resposta para esta complexidade conflituosa? A violência, a supressão do diálogo, o acirramento do conflito.
Alguém poderia dizer — mas por quê os ocupantes do Pinheirinho resistiram? Por que não saíram imediatamente, evitando os feridos e as feridas da confrontação?
Porque sabem que, para quem foi “desocupado” ou” lacrado” nestas e outras reintegrações e “limpezas”, sobra a condição de sem-teto. Ou seja, para quem promoveu a reintegração ou a limpeza, o fundamental é ter o local vazio, e não o destino de quem estava lá, muitos menos as razões que levaram aquelas pessoas a estar lá naquela condição e seu enfrentamento e resolução. “Resolver” a questão é simplesmente fazer desaparecer o “problema” da paisagem.
Mais grave ainda, nestas situações a suposta “ilegalidade” ( ocupação de terra/uso de drogas) é motivo suficiente para promover todo e qualquer tipo de violação de leis e direitos em nome da ordem, em um retrocesso vergonhoso dos avanços da democracia no país.



Raquel Rolnik – arquiteta urbanista e professora da USP – 23.01.2012
Texto publicado originalmente no Yahoo! Colunistas.
IN “Blog da Raquel Rolnik” – http://raquelrolnik.wordpress.com/2012/01/23/pinheirinho-cracolandia-e-usp-em-vez-de-politica-policia/

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Ataque à raiz da corrupção



O financiamento público de campanha torna mais fácil a fiscalização e, se não acaba com legendas de aluguel, complica sua existência.

 
Idelber Avelar
Pesquisa recente da agência APPM dá a medida de como se realiza a discussão sobre campanhas eleitorais no Brasil. Oitenta e quatro por cento dos consultados dizem que as doações de empresas aumentam as chances de corrupção, mas 81% são contra o financiamento público.
O eleitor sabe que o conluio entre dinheiro privado e Estado é fonte de corrupção, mas se opõe ao financiamento público, pois não lhe é visível o fato de que ele também paga a conta do financiamento privado.
As empresas, com frequência, recolhem via corrupção o que investiram no candidato. O prejuízo ao Estado só aparece se estoura um escândalo, caso em que o agente público será execrado, enquanto pouco se dirá sobre o agente privado corruptor. Nada mais brasileiro do que esquecer que corrupção é via de mão dupla.
Ouvem-se três argumentos principais contra o financiamento público: ele não elimina a corrupção, coloca dinheiro do contribuinte nas mãos de corruptos e favorece os partidos mais organizados ou "instala uma ditadura financeira dos partidos" (conforme Elio Gaspari observou em sua coluna de 24/8).
O primeiro é um patente sofisma.
Se observamos que a troca de favores com o dinheiro de campanha é fonte de corrupção, recusar o financiamento público porque ele não a elimina equivale a recusar a Lei Maria da Penha porque ela não acaba com a violência contra a mulher.
Que se estabeleçam os mecanismos de cumprimento da lei, mesmo sabendo que eles não serão perfeitos. O financiamento público não elimina a corrupção, mas ataca sua raiz e facilita a fiscalização.
O segundo se nutre da péssima imagem dos políticos e da premissa de que o cidadão comum seria moralmente superior a eles. Ora, não há indício de que as relações cotidianas não estejam tão perpassadas pela corrupção quanto as políticas. É a colocação do Estado a serviço de interesses privados que corrompe -e essa tem sido uma constante em nossa história, desde as capitanias hereditárias.
O terceiro é, na verdade, uma defesa do financiamento público. Se ele fortalece os partidos mais organizados, eis aí outra razão para adotá-lo. Ele não acabará com as legendas de aluguel, mas tornará sua vida mais difícil. A expressão "ditadura dos partidos" não faz sentido se esses são compostos de cida- dãos livres e entram e saem do poder pelo voto. Oxalá o Brasil escape da situação dos Estados Unidos. Apesar de proibidas as doações de empresas a campanhas, o dinheiro doado a partidos e organizações propagandísticas (as 527s) determina todo o rumo da política. Hoje, 86% dos estadunidenses vê democratas e republicanos do Congresso negativamente, mas uma terceira opção tornou-se inviável, já que o dinheiro corrompeu o sistema político até a medula.
Cuidemos da nossa democracia: o primeiro passo é uma contabilidade equânime, à qual todos tenham acesso. Sai mais barato, inclusive.


Idelber Avelar – Professor titular na Universidade Tulane e colunista da revista "Fórum", co-organizador de "Brazilian Popular Music and Citizenship" e autor de "Alegorias da Derrota" e "The Letter of Violence" – 18.09.2011
IN “Folha de São Paulo” – http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1809201108.htm

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Ocupando as redes e as ruas


A convicção ainda incipiente de construir algo novo e o orgulho de não se prender a bandeiras precisas estão expressos na fórmula usada por vários ativistas em diferentes grupos brasileiros que participam das ocupações na Cinelândia carioca e no Anhangabaú paulistano. "Escola de militância" é o termo com que descrevem o que ocorre debaixo do Viaduto do Chá e diante do cinema Odeon. De acordo com os manifestantes, o princípio da "Ocupação" expressa o desejo de "retomar o que é público", seja o espaço urbano, o campo da política ou o debate de idéias.

Diego Viana
As barracas que tomaram as ruas de várias cidades a partir de setembro foram recebidas com um olhar de desconfiança que em mais de uma ocasião escorregou para o desdém: aos manifestantes, com suas marchas, assembléias e o bordão dos "99%", falta uma bandeira clara, uma lista de exigências, uma vinculação ideológica. É um movimento fragmentário e desorganizado, o que, para quem está acostumado a acompanhar o embate de forças políticas, o torna incapaz de produzir mudanças.
As mesmas características, para os participantes, são qualidades. Inspirados nos acampamentos que tomaram a Praça do Sol de Madri em março, os manifestantes se pautam pela denúncia de um sistema político em que não se sentem representados. Apontam, por um lado, o extremo poder do sistema financeiro sobre o político e, por outro, o vínculo precário entre governantes e governados.
Segundo o ativista Ricken Patel, diretor executivo da organização Avaaz, uma catalizadora de movimentos sociais via internet, o que acontece nas cidades ocupadas é o começo do surgimento de um novo tipo de ativismo político, capaz de fundar uma "política 3.0". Patel define a política 3.0 como "uma democracia de muita energia, em que as eleições são mais participativas e vibrantes e as instituições serão sistemas mais participativos e responsáveis". O ponto de partida são forças descentralizadoras e democratizantes, que canalizam o poder dos indivíduos.
A convicção ainda incipiente de construir algo novo e o orgulho de não se prender a bandeiras precisas estão expressos na fórmula usada por vários ativistas em diferentes grupos brasileiros que participam das ocupações na Cinelândia carioca e no Anhangabaú paulistano. "Escola de militância" é o termo com que descrevem o que ocorre debaixo do Viaduto do Chá e diante do cinema Odeon. De acordo com os manifestantes que falaram ao Valor, o princípio da "Ocupação" expressa o desejo de "retomar o que é público", seja o espaço urbano, o campo da política ou o debate de ideias. "Gente que nunca se envolveu com nada está percebendo que muita coisa está errada. A questão é como canalizar isso", diz o vestibulando Vitório Valenzuela.
Nas dezenas de barracas alinhadas entre as avenidas e os arranha-céus do centro de São Paulo, algumas centenas de pessoas assistem a aulas abertas, participam de debates e tentam organizar a convivência, em comissões de programação, comunicação, alimentação e assim por diante. Alguns dos participantes vêm de dia, outros de noite. De passagem, um homem conta que tem uma loja de artigos para festas na região da rua 25 de Março. Sua luta é pela reciclagem. "O lixo é a maior riqueza do mundo hoje", afirma. "Só de promover a reciclagem, já consegui o suficiente para sortear um tablet entre crianças de um projeto social de Goiás."
Outro participante, o rapper Kuka d'Sabre, carrega um megafone e distribui narizes de palhaço para uma passeata no dia seguinte. O comerciante contempla a esfera vermelha que recebeu do músico. "Recortando garrafas pet, eu poderia fabricar milhares dessas", diz. O rapper fica maravilhado com a ideia e aproveita para promover sua apresentação no fim de semana. "Vale a pena ficar de olho no movimento hip-hop, é um dos mais fortes", recomenda.
Cada acampado que faz comentários acrescenta o pedido de que não sejam escritos comentários estereotipados e preconceituosos contra a manifestação. "A mídia está predisposta contra a gente", diz um rapaz a distância. Um sociólogo de 25 anos, que se apresenta como Pedro Punk e exerce uma certa liderança extra-oficial, arremata: "As pessoas que estão começando a militar agora não sabem que é importante conversar com a mídia, apesar dos preconceitos que ela demonstra".
Pedro Punk desdobra-se para resolver os problemas que surgem: cartazes que se descolam da grade do viaduto, moradores de rua que pedem ferramentas para construir seus abrigos, manifestantes indisciplinados que esbanjam o gerador elétrico. Ele explica que, embora a horizontalidade (processos decisórios que rejeitam hierarquias) seja um parâmetro, ela não pode se realizar completamente. "Quem milita desde a adolescência acaba tendo uma participação mais ativa, porque transmite sua experiência."
Quando era estudante do ensino médio, Pedro participou das manifestações contra a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) e a globalização. Esse período, cujos pontos-chave foram os confrontos em Seattle (1999) e Gênova (2001), marca um ponto de inflexão na história do ativismo político. Quando o socialismo real deixou de ser o horizonte viável, os eventos da virada do século deram início a um processo de reformulação das bandeiras e dos métodos. O sociólogo Ricardo Musse, da Universidade de São Paulo, cita como frutos os Fóruns Sociais Mundiais, cuja primeira edição ocorreu em Porto Alegre em 2001, e o conceito de "altermundialismo", que congrega, sem rigidez programática, diversas correntes de oposição ao capitalismo globalizado.
O sociólogo aponta, porém, uma dificuldade desses movimentos em propor mudanças estruturais da sociedade globalizada. A pluralidade de bandeiras e movimentos não consegue compor um corpo coerente e seus ganhos são marginais. A desilusão com a atuação política, segundo Musse, resulta do fato de que o poder político está subordinado ao poder econômico e parece impotente, empurrando as formas de resistência para outros caminhos.
A fluidez das reivindicações e das formas de manifestação reflete aquilo que o sociólogo francês François Dubet denominou "declínio das instituições" - como observa a educadora Ana Karina Brenner em sua tese "Militância de Jovens em Partidos Políticos" -, que se insere no "cenário de mudanças nos modos de agir e de viver a política" para compreender o espaço que resta à política de instituições bem estruturadas, como partidos e sindicatos. Nessa interpretação, o declínio das instituições é fruto de um momento histórico em que as experiências de socialização e de atividade cultural mudam muito rapidamente. O resultado é, por um lado, a aparição de uma multiplicidade fragmentada de iniciativas cuja articulação é frouxa e, por outro lado, uma "busca por novas respostas necessárias a esta desagregação", nas palavras da educadora.
Entre coletivos pela legalização das drogas, associações de artistas de rua e grupos de outras formas, um sem-número de formas surgem e se desagregam constantemente. Uma característica apontada por diversos ativistas que falaram ao Valor é a concentração em temas particulares - da conservação de uma floresta à campanha pelo voto distrital. Alguns grupos assumem formas mais complexas e organizam manifestações. O ponto comum é o funcionamento em rede: compartilhando membros, estruturas e meios de comunicação eletrôncias, as iniciativas galvanizam participantes de diversas origens.
A ambição de transformar essa estrutura flexível em paradigma de ação social é visível em entidades como a Avaaz de Ricken Patel. No Brasil, a plataforma Cidade Democrática tem um projeto parecido. Segundo o estudante Henrique Parra, que participa do desenvolvimento da plataforma, as lutas sociais, antes da era digital, precisavam institucionalizar seus processos, para ganhar agilidade e escala e reduzir os custos de operação. Hoje, isso não é necessário. Em vez disso, pode-se institucionalizar as causas. "É possível influenciar a política pública sem entrar no sistema", diz o estudante. O raciocínio por trás dessas plataformas parte da transformação dos cidadãos em produtores de conteúdo. "Chega uma hora em que é impossível ignorar o que está sendo dito", diz Parra. A novidade do século XXI é a possibilidade de usar o tempo livre para militar, em vez de só descansar depois do trabalho. Esse tempo livre tem sido chamado de "excedente cognitivo" e está na base de fenômenos como a Wikipédia, atualizada por seus usuários.
Um movimento ilustrativo da fluidez com que as iniciativas se agregam e desagregam é o Movimento Passe Livre (MPL), local e nacional ao mesmo tempo. Dependendo das circunstâncias, o grupo luta pela gratuidade do transporte público (quando possível) ou por reduções maiores para estudantes, contra aumentos de tarifas ou pela inscrição do transporte como um direito social na constituição. Surgido em 2003, após protestos que duraram dez dias contra um aumento de tarifas em Salvador, o MPL tornou-se uma rede de pequenos grupos em várias cidades. Alguns deixam de existir, outros voltam à vida. Quando um cresce, outro encolhe. Em São Paulo, pequenos grupos colhem assinaturas em universidades, bares e praças. Quando o preço da tarifa de ônibus subiu, no fim do ano passado, novas pessoas se uniram, mas muitas se afastaram quando o choque foi absorvido.
"O movimento cresceu muito durante a luta contra o aumento", diz o pedagogo André Ciola. "Aquela mobilização deu um novo capital político para o movimento." Os militantes, no período, conseguiram recolher mais alguns milhares de assinaturas, mas reconhecem estar longe de conseguir as 500 mil necessárias para propor um projeto de lei na Câmara Municipal. Enquanto isso, seus membros mantêm alianças com grupos de sem-teto, trabalhadores da cultura, associações de bairro e outras bandeiras, para organizar manifestações ou participar daquelas que os outros organizam.
Um traço comum aos diversos movimentos é sua desconfiança dos partidos políticos, sejam os majoritários, sejam os radicais, que costumavam tomar a frente nas mobilizações. No Anhangabaú, os membros da "escola de militância" contam que a instalação debaixo do Viaduto do Chá não foi uma escolha consciente, mas uma tentativa de driblar partidos radicais de esquerda que se esforçavam para comandar a manifestação nascente.
Ainda assim, não é uma relação inteiramente hostil. Entre as alianças eventuais do MPL, figuram correntes do PSOL e do PSTU. Para Henrique Parra, "os partidos têm de se acostumar a ser coadjuvantes também". Segundo a socióloga Mary Garcia Castro, um processo parecido com esse já está em marcha. Muitos dos jovens ativistas estão conseguindo introduzir suas pautas no debate interno de certos partidos. "No meu tempo, se fôssemos falar de ecologia ou mobilidade urbana no PCB, ninguém daria ouvidos", diz. Para ela, as preocupações dos partidos costumavam ser mais ideológicas e econômicas.
Para o cientista político Bruno Caetano, ex-secretário de Comunicação do Estado de São Paulo no governo Serra, os partidos não se prepararam para a época da comunicação fácil. Estão prontos para lidar com movimentos de massa, mas não pequenas mobilizações. "Os partidos são especialistas em pescar com rede, mas não com vara. Sabem representar categorias profissionais, mas quem vai representar os movimentos de ciclistas, por exemplo?"
O vereador Edinho Silva, presidente estadual do PT de São Paulo, iniciou sua carreira política nas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica no início dos anos 1980. Hoje, demonstra preocupação com a aparente rejeição da via partidária pelos jovens movimentos sociais. Segundo o deputado, os partidos, no Estado moderno, são os formuladores de projetos de sociedade em formulação coletiva. A rejeição da política e dos partidos abre a porta para lideranças carismáticas e autoritarismo. "Com a diluição dos projeto coletivo, o que assoma são concepções pessoais de liderança carismática, hegemonizando a sociedade."


Diego Viana– 18.11.2011
IN “Valor Econômico” – http://www.valor.com.br/cultura/1099470/ocupando-redes-e-ruas

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Os direitos humanos hoje sob uma perspectiva crítica


como é possível que todas as diferentes perspectivas políticas, religiosas e culturais estejam de acordo sobre os direitos humanos? O conflito que cessou no mundo é a luta de classes e o conflito ideológico aberto? Pois todos nós aceitamos a mesma visão de mundo? Obviamente que não. Isso significa que tanto os direitos humanos não têm nenhum significado comum ou determinado (eles são um estreito conceito indeterminado) ou que são usados ​​para descrever diversos fenômenos, instituições e ideologias.

Costas Douzinas
Os direitos humanos parecem ter triunfado no mundo. Eles unem inimigos tradicionais, a esquerda e a direita, o norte e o sul, a igreja e o estado, o ministro de governo e o rebelde. De acordo com os defensores da nova ordem mundial, com a derrota do comunismo, o capitalismo e a democracia de baixo nível são os únicos jogos disponíveis e os direitos humanos são sua nobre idéia.
A celebrada nova ordem mundial tem trazido a ramificação global do agressivo capitalismo global. Sua ascensão coincidiu com a emergência de duas importantes tendências: cosmopolismo e o momento pós-político. O cosmopolitismo, uma antiga e nobre filosofia foi ressuscitado para dar um rosto humano, para humanizar a propagação catastrófica do neoliberalismo. Isso aconteceu no momento em que a conclusão do processo de descolonização e do aumento do poder do mundo em desenvolvimento criou a perspectiva de uma defesa bem sucedida de seus interesses. A reação ocidental foi a imposição de políticas econômicas, culturais, jurídicas e militares que tentam reafirmar a sua hegemonia.
Economicamente, a OMC, o FMI e o consenso de Washington exportaram o capitalismo neoliberal global: estados em desenvolvimento tiveram de abrir o seu setor financeiro, privatizar e desregulamentar e abaixar os níveis de gastos sociais. Estas elites políticas criaram os super-ricos, mas prejudicaram o desenvolvimento.
Se o capitalismo globalizado uniu o mundo econômico e político, estratégias jurídicas e militares vêm construindo um quadro comum simbólica, ideológica e institucionalmente. Seus sinais estão por toda parte. Nas guerras humanitárias, sanções econômicas foram impostas várias vezes para proteger os países e as pessoas de seus maus governos. Direitos humanos e cláusulas de boa governança são rotineiramente impostas pelo Ocidente sobre os países em desenvolvimento como condição para acordos comerciais e de ajuda. Os direitos humanos são a ideologia após o final muito alardeado de ideologias, a utopia “última” após o final da história.
É por isso que precisamos pensar de forma crítica os direitos humanos. Seu triunfo é cheio de paradoxos e contradições. Em nenhum outro momento na história humana recente, fora da Segunda Guerra Mundial, tantas pessoas foram mortas, houve tanta fome, tantos foram torturados, submetidos a dominação e exploração. O fosso entre o Norte e o Sul e entre ricos e pobres nunca foi tão grande. As Nações Unidas informaram em 16 de outubro de 2010 que bem mais de um bilhão de pessoas não têm comida suficiente. A expectativa de vida é superior a 80 anos no norte da Europa, enquanto na África sub-saariana é de 33 anos. A renda per capita anual de um palestino é de $680,00 dólares e de $26,000 dos israelenses. Se os direitos humanos triunfaram, este é um triunfo afogado em desastre.
O segundo paradoxo é este: como é possível que todas as diferentes perspectivas políticas, religiosas e culturais estejam de acordo sobre os direitos humanos? O conflito que cessou no mundo é a luta de classes e o conflito ideológico aberto? Pois todos nós aceitamos a mesma visão de mundo? Obviamente que não. Isso significa que tanto os direitos humanos não têm nenhum significado comum ou determinado (eles são um estreito conceito indeterminado) ou que são usados ​​para descrever diversos fenômenos, instituições e ideologias. De qualquer maneira, falar de direitos não é o começo do fim do confronto e do conflito. Direitos Humanos é um discurso contestado e uma prática, a forma ideológica na qual algumas das principais clivagens e antagonismos da nova ordem será expressa e travada.
O terceiro paradoxo aproxima-nos das preocupações da filosofia política. Direitos e direitos humanos são, talvez, a mais importante instituição política liberal e que a lei criou. No entanto, a filosofia jurídica e política liberal foi totalmente inadequada para a tarefa de compreendê-lo. A teoria mais avançada liberal recria os conceitos do século 17 como o contrato social (Rawls e a posição original), o estado de natureza (Rawls e o véu de ignorância), o homem natural (auto-reflexivos indivíduos, totalmente no controle de si mesmos) os imperativos categóricos ( Habermas e o discurso ideal e o princípio fundamental do discurso), a paz perpétua (Habermas, Rawls, etc, Giddens e o cosmopolitismo).
Duzentos anos da teoria social e três grandes "continentes" de pensamento não incomodaram os anais do liberalismo: Hegel, Marx, a dialética da luta, Nietzsche, Heidegger e Foucault, a ontologia do poder, Freud e os pós-freudianos, com a sua análise detalhada da psiquê e da subjetividade não existem para os nossos grandes heróis liberais.
É por isso que precisamos de teorias críticas para entender a ação dos direitos humanos. Não pode haver uma teoria dos direitos humanos, a menos que examinemos a genealogia desta idéia (a derivação do cosmopolitismo da lei natural cristã, assim como a secularização da teodicéia), a sua relação com o poder, como expressão do amálgama entre o poder e a normatividade no capitalismo tardio, a menos que nós exploremos a contribuição fundamental que os direitos humanos fazem para a construção da subjetividade, através da legalização e de divulgação do desejo individual.
Meu argumento é que existe uma ligação clara entre o moralismo recente e humanitarismo agressivo, gananciosas políticas econômicas e governabilidade biopolítica. Nacionalmente, a condição póspolítica e a forma bio-política do poder têm aumentado a vigilância, disciplina e controle da vida. A moral (e direitos) sempre fez parte da ordem dominante, em estreito contato com formas do poder em cada época da história. Recentemente, no entanto, os direitos mudaram, de uma relativa defesa contra o poder para uma modalidade de suas operações. Se os direitos expressam, promovem e legalizam o desejo individual, eles também têm sido influenciados pelo niilismo do desejo. Internacionalmente, o edifício moderno foi prejudicado no momento em que a conclusão do processo de descolonização e do aumento relativo do poder do mundo em desenvolvimento criou a perspectiva de uma defesa bem sucedida de seus interesses.
A crise do modelo econômico nos dá uma oportunidade única de analisar a totalidade do acordo pós-1989. O melhor momento para desmistificar a ideologia é quando ela entra em crise. Neste momento, é garantido, natural, que premissas invisíveis venham à tona e tornem-se objetivadas e possam ser entendidas pela primeira vez apenas como construções ideológicas. Cada tema importante na filosofia política precisa ser revisitado.


Costas Douzinas – Professor de Direito e ex-Reitor da Faculdade de Arte e Humanidades do Birkbeck College – março de 2011 
O texto corresponde à transcrição da resposta dada pelo autor em entrevista para o “Projeto Revoluções” à seguinte pergunta:  “Por que é necessário pensar os direitos humanos hoje a partir de um ponto de vista crítico?”

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Brasil tem uma pobreza infantil de 38,8%, mostra mapa da pobreza infantil da América Latina


A Cepal e a Unicef divulgaram nesta sexta-feira um relatório que reflete a situação da pobreza infantil na América Latina. 
O indicador de maior peso na medição da pobreza no Brasil tem a ver com o saneamento (34,7%), seguido das dificuldades de acesso à água (8,6%) e à moradia (2,7%).

 Sebatián Premici
A pobreza na América Latina chega a 45% do total de menores que vivem na região. Isto quer dizer que existem 80,9 milhões de menores que têm uma ou várias necessidades básicas insatisfeitas. A informação consta de um relatório elaborado conjuntamente pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e a Unicef, que foi apresentado ontem [sexta-feira] no marco dos Diálogos de Proteção Social. A pesquisa utilizou uma metodologia de medição que aponta não apenas para os níveis de ingressos das populações mais vulneráveis, mas contempla um conjunto de direitos estabelecidos pela Convenção Internacional da Criança, como o acesso à moradia, à educação, à água potável e à alimentação. Dos 18 países da região, a Argentina ocupa o quarto lugar quanto à qualidade de vida das crianças pobres, atrás da Costa Rica, do Chile e do Uruguai. Mais abaixo aparecem Venezuela, Brasil, México, Peru e Colômbia, entre outros.
A Unicef estabeleceu em 2005 uma definição de pobreza: “As crianças pobres são aquelas que sofrem uma privação dos recursos materiais, espirituais e emocionais necessários para sobreviver, desenvolver-se e prosperar”. Esta aproximação pretende produzir uma metodologia diferente para medir as situações de vulnerabilidade na região.
“A pobreza não é apenas uma questão de ingressos; há múltiplos fatores que definem uma pessoa nestas circunstâncias. A ideia de criar uma nova metodologia de medição aponta no sentido de identificar as diferentes áreas de ação para que os Estados possam desenvolver políticas públicas”, explicou a este jornal María Nieves Rico, especialista da Divisão de Desenvolvimento Social da Cepal. A pesquisadora foi uma das especialistas que apresentaram o relatório no auditório da Universidade San Andrés, junto como Cippec e a Fundação Tzedaká.
O relatório intitulado Pobreza infantil na América Latina e Caribe toma os dados dos institutos de estatísticas de cada um dos países. No caso da Argentina, foram recolhidos da Pesquisa Permanente de Domicílios, elaborada pela Indec. A pobreza infantil no país se situa em 28,7%. O melhor situado é a Costa Rica (20,5%), seguido pelo Chile (23,2%) e pelo Uruguai (23,9%).
Em contraposição, os países com maior pobreza infantil são El Salvador (86,8%), Guatemala (79,7%), Bolívia (77,2%) e Peru (73,4%), entre outros. O Brasil, uma das potências econômicas da região, tem uma pobreza infantil de 38,8%.
A pesquisa da Cepal e da Unicef determinou que 53% dos 80,9 milhões de crianças pobres são prejudicadas por uma privação moderada ou severa e apenas uma de cada cinco crianças nesta situação é privada em três ou mais dimensões. “Isto sugere que é possível reduzir de maneira substancial a pobreza infantil com ações que, embora não necessariamente sejam de baixo custo, podem localizar-se em uma área específica de intervenção”, assinala a pesquisa.
Por exemplo, no caso da Argentina, o indicador de maior peso nos níveis de pobreza é a de moradia (24,8%). Depois vem saneamento básico (3,7%), educação (2,7%) e água potável (2,6%). Estes são dados de 2006, data de corte utilizada para realizar o relatório. No entanto, tanto a Cepal como a Unicef asseguram que a pobreza seguiu baixando. Segundo indicou a este jornal a pesquisadora Rico, em 2009 a pobreza infantil na Argentina havia diminuído de 28,7% para 25,7%. O resto dos indicadores também teve uma melhoria: saneamento (2,3%), água (1,6%) e moradia (21,7%). O único indicador que sofreu um agravamento foi a educação (3,2%). Estes dados não foram publicados no relatório.
“O que podemos notar no caso argentino é o peso que tem o acesso à moradia e a aglomeração na definição da pobreza infantil. Por isso, queremos elaborar um guia metodológico para que os governos possam adotá-lo e ter um enfoque mais global para encarar esta problemática”, acrescentou a especialista da Cepal.
No caso do Brasil, a composição da pobreza infantil é diferente. Em 2007, estava em 38,8%, ao passo que em 2009 foi de 38,7%. O indicador de maior peso na medição da pobreza tem a ver com o saneamento (34,7%), seguido das dificuldades ao acesso à água (8,6%) e à moradia (2,7%).
“A informação analisada permite identificar áreas de política pública nas quais é preciso agir com decisão e de maneira urgente e integral”, explica o relatório.


Sebatián Premici –  12.11.2011
Tradução para o “Instituto Humanitas Unisinos” – Cepat.