A busca pela verdade do passado
é antes uma ação de rejeição à mentira e à omissão, um valor ético de
elaboração da memória, mas também uma ação política.
Edson Teles
O consenso, elemento essencial da transição brasileira, negou
caráter público à memória dos atos violentos do Estado – publicidade que se viu
reduzida à memória privada, à memória de indivíduos ou de grupos identitários,
não incluídos entre os protagonistas do pacto. Sobretudo, o consenso oficial
limitou o repertório social sobre a memória, necessário para a realização do
processo de compreensão do passado. O trato institucional da memória, de modo
geral, tem sido capaz de evocá-la como tema ou, no máximo, processá-la como
informação, mas não de praticá-la em seus aspectos transformadores e criadores.
Se, por um lado, a ausência, a perda, a nostalgia, a melancolia, o
desaparecimento evocam a dimensão mais brutal da violência, por outro, possuem
a conotação de morbidez simbólica do momento de mobilização social e histórica,
criando um silêncio sobre a relação entre o passado originário e o presente,
uma lacuna na memória sobre os anos de catástrofe social e política.
Cabe-nos perguntar: qual o papel desempenhado pelo passado no
tempo presente e, em especial, o papel da memória dos anos autoritários na ação
política atual? É possível esquecer os horrores e nos voltarmos para um futuro
sem violência? Ou o inesquecível da tortura continua a habitar as cenas públicas
e privadas da democracia?
A transição começou a ser pensada e formulada pelos militares,
desde o começo do governo Geisel (1974-1978), procurando construir uma abertura lenta,
gradual e segura, na qual o estatuto político da nova democracia
pudesse ser acordado de antemão e, principalmente, se mantivesse o controle
militar do processo. Ainda em 1977, o governo impõe o Pacote de Abril,
fechando o Congresso Nacional por 15 dias (entre 1º e 15 de abril) e outorgando
uma série de medidas limitando as possibilidades de ruptura na abertura:
eleição indireta para governadores incorporada à Constituição; seis anos de
mandato presidencial; senadores biônicos, eleitos indiretamente; entre outras.
O governo mantém as medidas de abertura gradual nas ações de outubro de 1978,
quando extingue a capacidade do presidente de fechar o Congresso Nacional e de
cassar direitos políticos, devolve o habeas
corpus, suspende a censura prévia e abole a pena de morte. Logo em
seguida, no mês de dezembro, é tornado extinto o AI-5. A abertura militar fundamentava-se na lógica do
consenso e a anistia ainda não era considerada como parte das ações possíveis
no processo lento e gradual. Quando nos anos de 1977-78 foram montados os
primeiros pacotes de reformas da abertura,
falava-se no máximo em revisões de algumas penas, como a dos banidos.
A violência originária de determinado contexto político, que no
caso da democracia seriam os traumas vividos na ditadura, mantém-se seja nos
atos ignóbeis de tortura ainda praticados nas delegacias, seja na suspensão dos
atos de justiça contida no simbolismo da anistia, lei aceita pelas instituições
como recíproca – agindo em favor das vítimas e da resistência armada, bem como
dos torturadores. Tais atos, por terem sido silenciados nos debates da
transição política, delimitam um lugar inaugural de determinada política e
criam valores herdados na cultura, tanto objetivamente, quanto subjetivamente –
nas narrativas, nos testemunhos, nos sentimentos e paixões do sujeito,
subtraídos da razão política.
Nos aspectos sociais e nacionais, as marcas de esferas políticas
originárias, como a sala de tortura e a transição consensual, se constituem
como partes fundantes da democracia nascida após o fim da ditadura. O caráter
maldito da tortura e o aspecto de impunidade da democracia incluem na atual
memória coletiva brasileira o medo da violência e da fabricação do corpo nu dos
torturados e desaparecidos, pela ausência do acesso às leis. A aceitação
simbólica da anistia aos torturadores como uma lei de anulação das
possibilidades de justiça, se configurou, seguindo à sala de tortura, como a
exceção política originária na qual a vida exposta ao terrorismo de Estado vem
a ser incluída no ordenamento social e político.
Fatos da democracia, como a impunidade gerada na lei de anistia, a
insuficiência das posteriores leis de reparação ou indenização em fazer
justiça, a não abertura dos arquivos militares surgem como paradigmas
silenciosos do espaço político e da memória, dos quais nos é profícuo aprender
a reconhecer os limites e alcances.
Controlar a memória ou anular suas tensões é um ato da política.
Memória é política e a memória dos anos de violência é, no presente, uma
questão política. O maior paradoxo da democracia encontra-se na convivência da
recordação, um movimento em direção ao passado, com o compromisso de criação de
uma nova história no presente, um olhar para o futuro.
Quando, no presente, a busca pela verdade sobre o passado é
evocada, procura-se uma transformação do presente. A busca pela verdade do
passado é antes uma ação de rejeição à mentira e à omissão, um valor ético de
elaboração da memória, mas também uma ação política. Com a Comissão da Verdade
e a luta por justiça, condições foram criadas para pensarmos em uma convivência
democrática na qual a publicidade dos traumas e ressentimentos, por meio das
narrativas dos eventos passados, promova a política como dissenso e livre
partilha das memórias.
Edson Teles
– Professor de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) – 26.09.2012
IN “Blog da Boitempo” – http://boitempoeditorial.wordpress.com/2012/09/26/a-busca-da-verdade-e-uma-acao-de-transformacao-do-presente/