O Chile
nos traz um precioso exemplo de como perpetuar a memória produzida sobre esses
tempos autoritários. No governo de Michelle Bachelet, em janeiro de 2010, foi
inaugurado um imenso museu para expor, entre outros materiais, os resultados
das investigações de Comissões de Verdade realizadas naquele país: o
"Museo de la Memoria y los Derechos Humanos”.
Otávio Dias de
Souza Ferreira
A instalação da Comissão da Verdade no Brasil em
maio de 2012, apesar de grande atraso em relação às de outros países que
atravessaram períodos autoritários recentes, merece comemoração e constitui um
inegável avanço para a consolidação de nossa democracia. As investigações estão
sendo conduzidas com certa confidencialidade, a exemplo de muitas outras dessas
comissões, e há grande expectativa sobre os resultados a serem futuramente
apresentados. A forma de divulgação desses trabalhos é uma questão fundamental
que deve ser pensada desde já.
Sabe-se que será apresentado um grande relatório em
ato oficial. Trará provavelmente milhares de páginas reunindo documentos,
depoimentos, fotografias, notícias e registros distintos. A imprensa fará
várias reportagens no calor desse acontecimento, mas provavelmente seus
holofotes brevemente serão voltados para algum outro evento de grande
repercussão. E se assim ocorrer, há um risco grande de todo o trabalho ser
relegado ao esquecimento.
Não
basta somente um relatório!
O Chile nos traz um precioso exemplo de como
perpetuar a memória produzida sobre esses tempos autoritários. No governo de
Michelle Bachelet, em janeiro de 2010, foi inaugurado um imenso museu para
expor, entre outros materiais, os resultados das investigações de Comissões de
Verdade realizadas naquele país(1): o "Museo de la Memoria y los Derechos
Humanos”.
Organizou-se uma grande licitação que contou com 407
inscritos de todo o mundo. Cinquenta e seis projetos foram enviados, um mais
impressionante do que o outro. O vencedor foi um escritório de São Paulo,
Brasil, do arquiteto Mario Figueroa e o projeto de outro escritório paulistano
–de Victor Paixão– recebeu menção honrosa.
Em um terreno imenso, ocupando todo um quarteirão
próximo ao centro de Santiago, exatamente ao lado de uma estação do metrô e de
uma bela praça, foi erguido em apenas um ano um enorme edifício moderno que
compreende um cubo retangular na horizontal disposto sobre colunas em duas de
suas extremidades, formando um amplo vão livre sobre um terreno escavado na
profundidade de doze metros. O complexo construído do museu ocupa 5.300m2 distribuídos
em três andares mais o piso térreo e um subterrâneo onde funciona uma
biblioteca e um centro de documentações.
Logo na entrada há dezenas de placas com breves
narrativas sobre experiências de Comissões da Verdade em países de Ásia,
África, Europa e América. A do Brasil ainda não está exposta. Há por todo lado
uma farta utilização de recursos tecnológicos e interativos. Uma grande parte é
dedicada à ditadura e outra à transição. Traz uma infinidade de vídeos curtos
com imagens de televisão, depoimentos e documentários em diversos recintos,
cada qual focado em determinado assunto ou período. Tocando nas telas, o
visitante pode selecionar o que pretende assistir. É preciso horas, talvez
dias, para ver tudo. Há também sequências de impressionantes notícias de
jornais e fotografias de diversos períodos. Vários livros sobre temáticas
específicas estão expostos. Merecem destaque um sobre a deturpação de fatos pela
mídia que apoiava o regime e outro que destaca a atuação de diversos militares
que combateram a ditadura, defendendo a ordem democrática rompida pelo golpe
militar. Há um mapa enorme indicando dezenas de locais de tortura espalhados
por todo o país. É particularmente curiosa a parte dedicada ao plebiscito de
1988, o qual versava sobre a permanência ou não de Pinochet por mais oito anos.
Diante de assentos confortáveis, uma grande tela alterna seguidamente inúmeras
propagandas das campanhas pelo "si” e pelo "no”, algumas divertidas,
outras assustadoras.
Sobretudo por se tratar de um museu que se ocupa de
assuntos tão trágicos, espinhosos e indigestos, o cuidado com a forma de
transmissão dos registros, com a estética e com o conforto do visitante é ainda
mais imperativo.
O Brasil também tem plenas capacidades de construir
tamanha estrutura e de organizar nela exposições espetaculares. Museus como o
do futebol e o da língua portuguesa, ambos em São Paulo, são referências
internacionais de tecnologia interativa.
Um museu dessa natureza deverá atrair pessoas de
todas as classes sociais, categorias profissionais e idades – principalmente os
mais jovens que não viveram aqueles anos obscuros. Assim como a entrada no
museu chileno é gratuita, será de bom tom que a do nosso também o seja. O local
deve ser muito bem localizado e propiciar facilidade de acesso.
Algumas das instalações poderiam ser voltadas
exclusivamente para os movimentos culturais de resistência – com destaque para
a música popular de protesto.
É interessante que também seja frequentado por
militares e para tanto seria recomendável formular um espaço com referências
positivas para eles, ressaltando figuras que resistiram ao grupo que subtraiu
–e conservou por décadas– criminosamente para si o poder. Porque uma parte de
quem agora está no topo dessas hierarquias –e que por isso tem um potencial de
servir de referência aos mais novos–, envolveu-se diretamente com delitos
cometidos na ditadura, gozando de completa impunidade e alguns deles até ousam
comemorar anualmente o dia 31 de março –data do Golpe– dentro de clubes
militares Brasil afora. Tal exposição seria também uma forma de resgatar a
legitimidade da instituição, tão abalada naquele período. Talvez visitas
periódicas de oficiais pudessem ser atreladas a estágios de formação e promoção
na carreira militar.
Embora haja diversas formas de se difundir o
conteúdo das investigações da nossa Comissão da Verdade, um empreendimento da
natureza e do porte de um magnífico museu provavelmente seja aquele mais
apropriado para a ambiciosa pretensão de influenciar na consolidação de nossas
instituições democráticas e na redução de numerosas sequelas legadas por um
período autoritário desfeito de forma tão difícil e excessivamente lenta.
Alguém poderá dizer que os números de vítimas fatais
da ditadura chilena foram piores que os da nossa. Mas atrocidades são
atrocidades. O período de terror por aqui foi enorme e há muito para contar. Só
as mentiras produzidas pelo regime com a cumplicidade da mídia e os relatos de
torturas cometidas seriam capazes de preencher intermináveis instalações.
Quanto maior o espaço e os recursos disponíveis, maior será a possibilidade de
se resgatar as múltiplas histórias de angústia e dor, corrigindo inverdades e
atenuando injustiças. A consciência e a reflexão sobre esses conteúdos é
fundamental para o amadurecimento da vida democrática.
E uma vez que as violações de direitos humanos não
se esgotaram em um passado remoto, deve ser reservado um espaço para exposições
temporárias que contemplem o presente, mostrando a crua realidade de execuções
sumárias em conflitos no campo e nas periferias das grandes cidades, a
utilização da tortura contra suspeitos como método rotineiro de investigação
policial e a situação de perseguição sistemática a alguns movimentos sociais na
sua luta por direitos.
Assim como Michelle Bachelet, Dilma Rousseff sofreu
na pele as agruras da ditadura de seu país. Assim como a ex-presidenta chilena
se imortalizou com a criação e fundação desse importante museu em seu mandato,
quando proferiu com entusiasmo em um discurso a expressão "nunca más”, a
atual presidenta brasileira tem nas mãos a oportunidade histórica de realizar
semelhante empreendimento, consagrando em sua biografia uma contribuição
notável para a defesa e promoção de direitos humanos em seu país.
Nota:
(1) Em 1990, logo
que foi restaurada a democracia no Chile, foi constituída a "Comisión
Nacional de Verdade y Reconciliación”, também conhecida como "Comisión
Rettig” e, entre 2003 e 2005, funcionou a "Comisión sobre Prisión Política
y Tortura”, também conhecida como "Comisión Valech”, cujos trabalhos foram
posteriormente retomados para a produção de um segundo informe acerca de novas
investigações realizadas entre 2010 e 2011 (in http://www.museodelamemoria.cl/el-museo/sobre-el-museo/comisiones-de-verdad/).
Otávio Dias de
Souza Ferreira – Mestrando em Ciências
Sociais pela Universidade Federal de São Paulo e Advogado – 04.02.2013
IN ADITAL (Agência de
Informação Frei Tito para a América Latina) – http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&langref=PT&cod=73389