Os países que
preservaram instituições estatais conseguiram resistir às pressões neoliberais
e priorizar desenvolvimento, geração de emprego e combate à pobreza. A maior
parte está na Ásia e América Latina e é menos afetada pelas desregulamentação
financeira. Nestes países, entre eles o Brasil, o Poder Político não está
submetido ao Poder Econômico. No Primeiro Mundo, os sacrifícios impostos à
classe trabalhadora suscitam o surgimento de uma nova esquerda.
Paul Singer
A decisão do [então] primeiro ministro da Grécia de submeter o próximo
pacote de “ajuda” da Europa ao seu país a uma consulta popular desencadeou uma
queda espetacular das cotações nas bolsas de valores no mundo inteiro,
colocando em foco a profunda contradição entre o Poder Político e o Poder
Econômico nos países capitalistas democráticos, que hoje são a grande maioria
das nações. Uma decisão que deveria ser normal em qualquer democracia – a de
consultar o povo, do qual o governo, isto é, o Poder Político, é o
representante – acaba de provocar pânico entre os donos do capital financeiro,
que hoje detém a hegemonia do poder.
A mesma contradição é a fonte da motivação essencial do movimento hoje
mundial dos Indignados, que desde 15 de outubro promove a ocupação das praças
centrais dos distritos financeiros de 951 cidades em 82 países. O que os
Indignados demandam, acima de tudo, é que a democracia formal, vigente nestes
países, se torne real, ou seja, que o Poder Político eleito pelo povo de fato o
represente, em vez de executar políticas que beneficiam exclusivamente a classe
que exerce o Poder. O que evidencia a contradição de interesses entre a maioria
do povo – os 99% que os ocupantes de Wall Street almejam representar – e o 1%
que constitui a elite do Poder.
A contradição entre Poder Político e Poder Econômico se explica pela
origem de um e outro Poder. Em democracias, o Poder Político é exercido pelos
eleitos pela maioria dos cidadãos, que é necessariamente constituída por
trabalhadores não proprietários de meios de produção social, boa parte dos
quais ganha a vida como assalariados de empresas capitalistas; ao passo que, no
capitalismo, o Poder é exercido pelos capitalistas, mas não por todos por
igual.
Os empresários da economia real, isto é, cujas empresas produzem bens e
serviços que atendem necessidades humanas, dependem de crédito tanto para
financiar vendas a prazo quanto para investir em matérias primas, maquinário,
instalações etc., na medida em que a demanda por sua produção se expande; o
crédito é concedido por bancos, fundos de investimento e outros intermediários
financeiros. A renda não gasta pelas famílias, empresas e governos é depositada
nestes intermediários, que a redistribuem na forma de empréstimos aos governos,
empresas e famílias cujos gastos superam sua renda.
Os bancos, fundos etc., que são empresas capitalistas, visam maximizar
seus próprios lucros, emprestando a juros maiores do que pagam aos depositantes
e aplicando parte dos depósitos que lhes são confiados em títulos de
propriedade de firmas (ações) ou de débito emitidos por governos e empresas. Commodities,
ações de novas empresas e cotas de fundos de investimento são transacionados em
leilões diários nas bolsas de valores e suas cotações flutuam ao sabor das
oscilações de oferta e demanda pelos mesmos.
A maior parte dos participantes nestes leilões são especuladores, que
procuram adivinhar em que ativos irão se concentrar as preferências da maioria
para adquiri-los antes que se valorizem e quais ativos serão vendidos, para
vendê-los antes que se desvalorizem. Obviamente, uma parte dos especuladores
faz antecipações erradas e, por isso, perde dinheiro para os seus felizes
competidores, cujas apostas anteciparam o futuro corretamente.
Trata-se de um jogo de apostas, mas que afeta o andamento da economia
real. Se o otimismo prevalecer nas bolsas de valores, os especuladores
comprarão ações e títulos de crédito, cujas cotações subirão, o que permitirá
aos empresários obter mais facilmente dinheiro para expandir suas atividades; o
crescimento da produção da economia real confirmará as expectativas otimistas
dos detentores do dinheiro depositado neles pelos poupadores, levando-os a
reiterar as compras de títulos e assim por diante. O resultado será a formação
de uma típica bolha de valorização de ativos, cujo efeito será acelerar a
expansão das atividades econômicas, até que elas esbarrem em pontos de
estrangulamento, que impedirão a continuação do crescimento.
Os pontos de estrangulamento são constituídos por recursos
indispensáveis à produção e à distribuição, que exigem tempo para serem
multiplicados, como, por exemplo, a produção e distribuição de energia
elétrica, os meios de comunicação e de transporte, a mão de obra com
escolaridade acima da fundamental etc.. Os pontos de estrangulamento elevam o
custo de produção e distribuição de bens e serviços, suscitando círculos
viciosos de elevação de preços e salários, que resultam em inflação cada vez
maior, contra a qual o Poder Político é forçado a agir, reduzindo a
disponibilidade de crédito e o gasto público.
O mero anúncio destas medidas de “austeridade” basta para que as
expectativas dos especuladores financeiros se invertam, passando de otimistas a
pessimistas, pois eles sabem que elas reduzirão a demanda por títulos nas
bolsas, fazendo com que suas cotações desabem.
Inflação e renda
Em suma, o Poder Político é induzido a conter a inflação atendendo ao
interesse dos capitais financeiros, que temem a desvalorização da moeda,
ocasionada pela subida dos preços. A inflação exige a ampliação da oferta de
moeda, que é a “mercadoria” que os intermediários financeiros transacionam. Sua
desvalorização prejudica diretamente bancos e fundos, cujos capitais são
constituídos, em sua maior parte, por tesouros em forma da moeda corrente do
país.
Na verdade, a inflação prejudica também todos que dependem de rendas
fixas, entre os quais estão também os trabalhadores informais, que estão
excluídos de normas contratuais ou legais que reajustam rendas ou depósitos
automaticamente por índices periódicos de inflação. Esta circunstância permite
aos porta-vozes dos interesses financeiros proclamarem que é necessário
paralisar o crescimento econômico tão logo pressões inflacionárias se fazem
sentir, porque a inflação é o mais cruel dos impostos, pois pune os mais
pobres. Na realidade, pune os mais pobres e os mais ricos, sendo óbvio que os
últimos podem suportar perdas muito melhor que os primeiros.
A experiência histórica do final do século passado mostra que realmente
inflação elevada e persistente pode prejudicar seriamente o funcionamento dos
mercados e, quando atinge o limite da hiperinflação, tornar impossível o
prosseguimento do desenvolvimento econômico; uma vez atingido este estágio, a
estabilização dos preços exige o encolhimento da demanda efetiva total por bens
e serviços, com efeitos negativos para a economia real, prejudicada pela
dificuldade de vender com lucro suas mercadorias.
Como governo algum se arrisca a lançar a economia em hiperinflação, as
fases de crescimento rápido são abortadas pelo Poder Político mediante
políticas de estabilização que se caracterizam pela elevação das taxas reais de
juros, proporcionando grandes lucros aos capitais financeiros.
Isso comprova mais uma vez que, no capitalismo contemporâneo, o Poder
Político não pode deixar de praticar políticas, que em nome do interesse geral,
de fato priorizam o capital financeiro, reforçando a hegemonia deste sobre o
Poder Econômico. Convém observar que, se a intermediação financeira fosse
atribuição exclusiva de bancos públicos, a estabilização dos preços em vez de
concentrar a renda, como acontece hoje, reforçaria a participação do Poder
Político na renda nacional, possibilitando-lhe ampliar políticas
redistributivas e deste modo tornar a distribuição da renda mais justa.
Aqui reside o caráter contraditório do relacionamento entre Poder
Político e Poder Econômico. Os governos desejam em geral que haja prosperidade;
embora esta possa beneficiar todas as classes, o excedente econômico assim
gerado sempre é apropriado pelos capitalistas. Os trabalhadores só se
beneficiam pelo aumento do emprego, que viabiliza em alguma medida as campanhas
sindicais por melhoras salariais. Só que estas somente são obtidas após muita
luta contra a resistência patronal, ao passo que a apropriação do excedente pelos
donos e administradores dos capitais é imediata: sendo as mercadorias
produzidas pelos trabalhadores propriedade dos capitalistas, o lucro a mais
decorrente do maior volume de vendas é deles. O que os trabalhadores podem
receber a mais será pelas horas extras eventualmente trabalhadas, o que explica
a forte concentração da renda que ocorre sempre quando o crescimento econômico
perdura.
Para se contrapor à concentração da renda, governos comprometidos com os
interesses e aspirações das classes trabalhadoras podem tributar os ganhos
extraordinários dos capitalistas e aplicar a receita pública adicional em
políticas redistributivas. Políticas como estas, no entanto, provocam a
desconfiança dos operadores financeiros, que reduzirão suas aplicações na economia
nacional, lançando-a em crise. Sabedores disso, governos de esquerda evitam
ferir a confiança do capital financeiro, o que explica sua frequente conversão
ao neoliberalismo.
No capitalismo contemporâneo, o Poder Econômico, ao contrário do Poder
Político, deixou de ser nacional para se tornar global, sendo dominado por um
limitado número de gigantescas transnacionais financeiras. Estes capitais tomam
em geral a forma de bancos demasiado grandes para que os governos possam correr
o risco de deixá-los quebrar. Eles estão interligados por interesses
financeiros, o que lhes permite atropelar o Poder Político de países que não se
submetem aos seus desejos.
O Poder Econômico privado conseguiu monopolizar a distribuição do
dinheiro internacionalmente aceito, a moeda “forte”, representada
principalmente pelo dólar, graças à influência que exerce sobre instituições
multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial
(Bird) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), o que lhe permite impor sua
vontade ao Poder Político de nações que não têm o status de superpotências,
como está claro no caso da Grécia e de mais uma série de outros países que
simplesmente perderam a confiança do Poder Econômico global, de que sejam
capazes de honrar suas dívidas externas. Para reconquistar esta confiança,
estão sendo obrigados a aplicar políticas econômicas de austeridade que lançam
suas economias nacionais em longas e profundas crises.
Bancos públicos
A voga do neoliberalismo que assolou o mundo nos últimos 32 anos fez com
que muitos países vendessem seus bancos públicos a capitais privados, o que
tornou seus governos inteiramente dependentes dos intermediários financeiros
privados. Estes governos, para reter a confiança das finanças capitalistas,
foram obrigados a equilibrar seus orçamentos, procurando reduzir seus déficits
e conter o crescimento da dívida pública. Além disso, tiveram de priorizar o
combate à inflação, reduzindo a despesa pública e o ritmo do crescimento
econômico.
O efeito destas políticas foi reduzir a demanda por mão de obra das
empresas, ampliando o desemprego, enfraquecendo os sindicatos e suas lutas por
melhores salários e condições de trabalho. A contenção da despesa pública
debilitou as políticas redistributivas e os sistemas públicos de saúde,
educação e previdência, que estão sendo em parte privatizados.
Os países que preservaram seus bancos públicos e os ampliaram de acordo
com as necessidades puderam resistir às pressões neoliberais e continuar
priorizando o desenvolvimento e o combate à pobreza, ampliando e aperfeiçoando
suas políticas sociais e mantendo a expansão do emprego, de modo a evitar o
desemprego em massa, sobretudo o de longa duração.
Atualmente, os países que optaram por esta alternativa se encontram em
sua maior parte na Ásia e na América Latina e constituem as economias
emergentes que mais crescem no mundo e menos são afetadas pelas crises
produzidas pela especulação financeira desregulamentada. Nestes países, entre
os quais se encontra felizmente o nosso, o Poder Político não está submetido ao
Poder Econômico.
Na América do Norte e na Europa o peso do legado neoliberal subordina o
Poder Político à ideologia e aos interesses do Poder Econômico. Daí resulta o
marasmo econômico, a persistência do desemprego em massa e da pobreza, com o
aumento inegável da desigualdade socioeconômica. Nos países do Primeiro Mundo,
os sacrifícios impostos à classe trabalhadora e, em especial, à juventude estão
suscitando o surgimento de uma nova esquerda, que diferentemente da velha esquerda
não pauta a conquista do poder como ponto de partida para a reversão de uma
situação insuportável.
A rebelião dos Indignados tem por alvo a restauração da autenticidade
democrática por meio da indispensável subordinação dos interesses da minoria
privilegiada à vontade da maioria. Para tanto, ela terá de revelar os liames
políticos e econômicos que amarram os representantes eleitos ao Poder
Econômico, que retira sua força de uma globalização dominada pelo capital
financeiro e que impede que o Poder Político, limitado ao âmbito nacional,
possa cumprir suas plataformas eleitorais.
Obviamente, para restaurar a autenticidade democrática e a supremacia do
Poder Político, será necessário desenvolver, ao lado do capitalismo, uma
economia em que o capital seja propriedade coletiva dos trabalhadores que o
utilizam, como sempre foi em toda longa história da humanidade que precedeu a
Revolução Industrial. Esta “outra economia” já está sendo desenvolvida em
numerosos países e terá como resultado a diversificação do Poder Econômico,
tornando-o em boa parte afinado com as necessidades e desejos dos que hoje são
explorados e alienados.
Paul Singer – Secretário nacional de
Economia Solidária do ministério do Trabalho – 28.11.2011
IN “Carta Maior” – http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19077