quarta-feira, 24 de abril de 2013

A marcha do FSM e a vivíssima Primavera Árabe


 O mundo árabe entrou de vez para o FSM. E isso tem um significado histórico de grande relevância. Os movimentos sociais ocidentais ganham muito se aprenderem a entender culturalmente e politicamente esse canto central do mundo.

Renato Rovai
Aproximadamente 40 mil pessoas marcharam ontem da Praça 14 de Janeiro, centro de Túnis, até o Estadio Menzah, onde aconteceu o encerramento do ato de abertura do 12º FSM com um show do músico Gilberto Gil.
Foi no dia 14 de janeiro de 2011 presidente Zine el-Abidine Ben Ali fugiu do país ao perceber que não tinha como resistir ao levante popular que deu início à Primavera Árabe. Movimento que ainda iria levar ao fim o governo de Hosni Mubarak no Egito e a revoltas em países como Líbia, Bahren e Síria, que ainda vive o conflito. Cada país com sua história e configurações políticas de luta e disputa.
Não por coincidência, a marcha do FSM de ontem foi embalada pelos cantos das lutas dessa primavera que, a despeito de análises precipitadas anunciando seu fim e suas derrotas, ainda continua embalando o sonho de boa parte da juventude e dos movimentos sociais de vários desses países.
Cada marcha tem sua expressão. Em Mombai, na Índia, por exemplo, destacaram-se as cores. Elas davam a dimensão da pluralidade e da unidade obtida para a concretização do FSM. Aqui em Túnis foram os sons. Os muitos sons dos cantos dos movimentos que marcavam suas pautas com palavras de ordem e cânticos. Sons de uma pluralidade imensa que construíram, como num quebra cabeça, uma harmônica unidade na ação.
Não existe FSM bom e representativo sem marcha expressiva. Sempre foi assim na história do Fórum. A marcha é o primeiro ensaio do que virá. E a abertura de ontem, que o leitor poderá ver pelas fotos a seguir, já se constitui num retrato para a história.
O mundo árabe entrou de vez para o FSM. E isso tem um significado histórico de grande relevância. Os movimentos sociais ocidentais ganham muito se aprenderem a entender culturalmente e politicamente esse canto central do mundo.
Há ainda muitas questões do mundo árabe que são tratadas com imenso preconceito mesmo pela esquerda ocidental. E isso já tem surgido nas primeiras conversas. Por exemplo, a questão da participação das mulheres, a religião, a natureza do Estado etc.
E esses temas começaram a ser debatidos a partir de hoje.
O Fórum, mesmo ainda padecendo de um certo anacronismo analógico (seus organizadores ainda pensam mais em cartazes e tendas do que em conexão para uma boa cobertura via internet) tem uma energia viva que não pode ser perdida. Que merece ser renovada. A marcha de ontem deu novo gás ao FSM. E a Primavera Árabe deu mostras de que continua viva. Vivíssima.


Renato Rovai – Jornalista - 27.03.2013



O Fórum e seus fins e finais

Ao longo destes doze anos, desde sua fundação em 2001, em Porto Alegre, muita água rolou debaixo das pontes que o Fórum estabeleceu e continua tentando estabelecer. Desta vez, na Tunísia, a principal ponte do Fórum chamou-se mulher.

Flávio Aguiar
No sábado 30 de março realizou-se a marcha de encerramento da edição do FSM, em Túnis, em seu décimo segundo aniversário.
Ao longo destes doze anos, desde sua fundação em 2001, em Porto Alegre, muita água rolou debaixo das pontes que o Fórum estabeleceu e continua tentando estabelecer.
Desta vez, na Tunísia, a principal ponte do Fórum chamou-se mulher.
Numa região profundamente entrecortada por longas ditaduras, monarquias obsoletas, aberta agora às conquistas e impasses, avanços e contradições das revoltas no mundo árabe, as mulheres deram a nota e as tintas da solidariedade internacional, com seus movimentos, suas reivindicações, suas palavras cheias de conquistas inadiáveis, sendo uma delas o próprio direito à palavra.
Outra presença constante foi a do debate sobre o Islã, sua possibilidasde de convivência com tosas as correntes de pensamento, religiosas, laicas, em todas as frentes.
No espaço do Fórum era muito grande a desconfiança em relação ao partido no poder, o Ennadha, visto como braço político tunisiano das irmandades muçulmanas presentes no Maghreb. Havia o temor contínuo da regressão a um estado religioso. Esta desconfiança convivia, no entanto, com a reivindicação de traços tradicionais da cultura muçulmana, como o da opção pelo uso do Niqab, a vestimenta que deixa visíveis apenas os olhos das mulheres. Na marcha, seguiu-se, como no espaço do Fórum, a manifestação de estudantes que reivindicam o direito a usá-la, e que se sentem discriminadas, sobretudo na Faculdade de Ciências, pela recusa de professores em caeitá-las na sala de aula.
Nas ruas, em conversas isoladas ou mais amplas, notava-se a preocupação constante em mostrar o Islamismo como uma corrente de pensamento, de cultura e de religião aberta à convivência democrática, bem como uma nota marcante em saber como os membros e jornalistas do Fórum “percebiam a Tunísia”. Ao mesmo tempo, no próprio Fórum, houve mesas e atividades de denúncia e preocupação com os movimentos salafistas e sua atuação na Tunísia.
O salafismo é uma corrente muçulmana que prega um retorno às origens remotas do Islã, à palavra direta do Profeta e de seus seguidores contemporâneos ou imediatos. Reforçou-se no século XVIII diante do que via como uma decadência muçulmana diante do avanço do Ocidente. Tradicionalmente o salafismo é um movimento de predicação, isto é, de convencimento pacífico por meio da argumentação.
Entretanto, durante a guerra no Afeganistão contra a ocupação soviética, houve o surgimento de um salafismo jihadista, isto é, animado pela idéia de impor o mundo islâmico pela força, pela ação direta e muitas vezes violenta, baseado numa interpretação sectária ed estreita da jihad, isto é, da dedicação à causa religiosa e cultural dos povos muçulmanos. O surgimento desta corrente do Afeganistão levou muitos dos participantes tunisianos do Fórum a apontá-la como insuflada pelos norte-americanos e ingleses, dentro do contexto do combate aos soviéticos durante a Guerra Fria, assim como aconteceu com a Al Qaeda.
Uma das principais preocupações manifestas no Fórum foi com o recrutamento praticado pelos salfistas jihadistas dos jovens muçulmanos para lutarem na Síria contra o regime de Bashar al-Assad. Num artigo publicado na imprensa de Túnis (Le Temps, 31/03/2013, p. 4), “Profil d’um salafiste”, a jornalista Sana Farhat se reportou a diversas atividades do Fórum onde especialistas na questão debateram os métodos de aproximação dos salafistas em relação a estes jovens, levando-os ao isolamento em relação à família, aos meios de comunicação, buscando um condicionamento moral e físico adequado aos futuros combates em que se envolverão. Alguns destes debatedores apontavam, inclusive, uma leniência, por parte do governo, em relação a esta atividade, vendo-a como um meio de ver-se livre destes jovens que podem tornar-se fonte de problemas.
Com a abertura para este e outros problemas, o Fórum mostrou continuar sendo um espaço de intensificação de reivindicações de legitimidade democrática. Por onde ele “passa”, fica sempre uma esteira de descobertas e iluminações. Também não foi desprezível a mobilização de desempregados (sobretudo jovens) e trabalhadores, através da Central Sindical tunisiana e de sindicatos, para ocupar os espaços do Fórum, inclusive ressaltando a participação das mulheres na vida laboral e sindical.
O Fórum continua, o povo está na rua. 


Flávio Aguiar – Jornalista e escritor – 02.04.2013
Também publicado no Blog do Velho Mundo, Rede Brasil Atual



Não chore ainda pela Primavera Árabe

 É cedo para dizer que revoluções foram derrotadas.

Immanuel Wallerstein 
Na Tunísia, em dezembro de 2010, um único indivíduo acendeu a chama da revolução popular contra um ditador corrupto. A revolta foi prontamente seguida por uma explosão similar no Egito, contra um tirano parecido. O mundo árabe estava atônito e a opinião pública mundial tornou-se imediatamente muito simpática a essas expressões-“modelo” das lutas ao redor do planeta por autonomia, dignidade e um mundo melhor.
Três anos depois, ambos países estão atolados em lutas políticas acirradas. A violência interna cresce rapidamente; há grande incerteza sobre onde tudo irá parar, e em benefício de quem. Existem particularidades em cada país, aspectos que repercutem em outras revoltas pelo mundo árabe e árabe-islâmico, e outros que podem ser comparados ao que está acontecendo na Europa – e, até certo ponto, em todo o mundo.
O que aconteceu? Devemos começar com o levante popular inicial. Como ocorre muitas vezes, ele foi iniciado por jovens corajosos, que protestavam contra atos arbitrário dos poderosos — localmente, nacionalmente, internacionalmente. Nesse sentido, eram antiimperialistas, anti-exploração e profundamente igualitários. É possível estabelecer uma clara comparação com os tipos de manifestações que se espalharam pelo mundo entre 1966 e 1970, e que se tornaram conhecidas como a “revolução mundial de 1968”. Como naquela época, os protestos tocaram algo profundo em seu país país e atraíram vasto apoio popular, espraiando-se muito além do pequeno grupo que os iniciou.
O que aconteceu em seguida? Uma revolução antiautoritária generalizada é uma coisa muito perigosa para os que detêm autoridade. Quando as medidas de repressão iniciais pareceram não funcionar, muitos grupos procuraram domesticar as revoluções unindo-se a elas, ou fingindo se unir. Tanto na Tunísia quanto no Egito, o exército entrou em cena, recusando-se a atirar nos manifestantes, mas também procurando controlar a situação após a deposição dos dois ditadores.
Em ambos países, existira um forte movimento islâmico, a Fraternidade Muçulmana. Ela fora banida da Tunísia e cuidadosamente controlada e restringida no Egito. As revoluções permitiram-lhe emergir de duas maneiras. Ela ofereceu assistência social para os pobres que haviam sofrido com a negligência do Estado. E decidiu formar partidos políticos para conquistar a maioria nos Parlamentos e controlar a redação das novas Constituições. Na primeira eleição de cada país, a Fraternidade Muçulmana emergiu como o partido político mais forte.
No momento seguinte, havia basicamente quatro grupos disputando a arena política. Além do partido da Fraternidade Muçulmana (Ennahda na Tunísia e Partido da Liberdade e Justiça, no Egito), destacavam-se as forças seculares mais ou menos à esquerda; as forças salafistas, na extrema direita, lutando pela adoção de uma versão muito mais rigorosa da sharia[a lei islâmica] que a desejada pelos partidos da Fraternidade; e os apoiadores ainda fortes, mas quase ocultos, dos antigos regimes.
Tanto a Fraternidade Muçulmana quanto as forças seculares estão muito divididas internamente, em especial sobre as estratégias que desejam seguir. Os muçulmanos moderados vivem os mesmos dilemas enfrentados, nos últimos anos, pelos partidos de centro-direita europeus. Seus países enfrentam problemas econômicos severos e persistentes. Isso dá origem a (e ou fortalece) partidos da extrema-direita — o que ameaça a capacidade dos partidos centro-direita mainstream vencerem futuras eleições. Nessa situação, surge, em toda parte, gente que tenta atrair os eleitores da extrema direita adotando uma “linha dura” em relação à esquerda ou às forças seculares. E há os chamados “moderados”, para os quais o partido deve mover-se ao centro para reconquistar seus votos.
As forças de esquerda, ou secularistas, reúnem por sua vez uma ampla gama de grupos: setores de esquerda verdadeira (porém múltiplos) e democratas de classe média, que procuram encorajar laços econômicos mais fortes com grandes forças de mercado na Europa e América do Norte. Em questões econômicas, esses grupos de classe média estão muito próximos, na verdade, daquilo que as forças islâmicas moderadas propõem.
Enquanto isso, as foças ainda leais aos antigos regimes mantêm controle sobre uma instituição chave: a polícia. É a polícia quem atira nas manifestações das forças seculares. Quando estas protestaram contra assassinato de Chokri Belaid, um líder secularista chave, o primeiro-ministro da Tunísia, Hamadi Jebali, um islamista moderado, respondeu que estava igualmente chocado com o assassinato. Diante disso, os grupos seculares replicam que os partidos islâmicos, e especialmente seus chamados linha-dura, são, de qualquer forma, responsáveis — por terem suscitado o ambiente necessário para que assassinato ocorresse.
Mais: Tunísia e Egito não são países isolados. Seus vizinhos no mundo árabe e além estão também agitados. A intromissão geopolítica de forças de fora é muito grande. Ambos países são relativamente pobres e precisam de ajuda financeira estrangeira para lidar com o crescente e persistente desemprego, que se torna ainda mais severo devido à perda do turismo – antes, uma fonte central de receita.
Para onde isso tudo está se encaminhando? Existem apenas dois caminhos possíveis. Um é o fim da revolução, pelo menos por enquanto. Os dois países poderiam ter governos de direita fortemente enraizados, apoiados (e talvez até controlados) pelos militares, com Constituições socialmente conservadoras e políticas externas cautelosas. Outro, é o começo de uma revolução, no qual o espírito inicial de 1968 recupera suas forças e tanto a Tunísia quanto o Egito tornam-se novamente casos emblemáticos de transformação social — para si próprios, para o resto do mundo árabe e para todo o planeta.
No momento, parece que as forças que pressionam pelo fim da revolução estão vencendo. Mas nesse mundo caótico, é cedo demais para fechar as cortinas e pensar que já não há espaço para um força revolucionária renovada nos dois países.



Immanuel Wallerstein – Professor na Universidade de Yale e autor de dezenas de livros. Seus estudos e análises abrangem temas sociólogicos, históricos, políticos, econômicos e das relações internacionais. – 23.02.2013
Tradução: Gabriela Leite
IN Outras Palavras – http://www.outraspalavras.net/2013/02/23/nao-chore-ainda-pela-primavera-arabe/