terça-feira, 16 de abril de 2013

O significado do 16 de Abril


Esse personagem central é a massa mais ativa e decidida, politicamente falando, da população, (...) Antes, essa base era designada desprezivelmente como ‘gentinha’, o poviléu sem eira nem beira. Hoje, ela é o povo, a parte viva do despertar da Nação, o dínamo que finalmente transmutou a Nação em realidade política e a converte em fonte de uma revolução democrática original e estuante.


Florestan Fernandes
Há uma preocupação pela “posição do governo” e por “o que acontecerá se a Emenda Dante de Oliveira não for aprovada?”. É justo que esses temas tomem conta das preocupações. Eles são temas cruciais. De um lado, está uma ditadura que, ao longo dos 20 anos, mostrou-se capaz de inverter o curso o curso das suas promessas aparentemente mais firmes. Hoje ela já não dispõe da mesma força. Mas continua a comandar um trunfo militar que ainda não foi batido e reúne um conjunto de forças reacionárias e contra-revolucionárias que prefere a derrota ao bom senso. Portanto, usando prerrogativas que não são legítimas e hoje são repudiadas pela quase totalidade da Nação, o governo procura torpedear uma transição rápida, ainda que pacífica e vantajosa para os que abusaram do poder e deveriam tremer diante do que fizeram!
De outro lado, as ambigüidades das vacilações da oposição a nivel institucional (isto é, de omissões que cabem aos partidos, que não souberam avançar até os limites do ponto de partida que se delineou com tanta clareza há mais de dois anos), conferiram naturalmente uma importância capital à Emenda Dante de Oliveira. Toda a oposição sabe perfeitamente que a emenda só e decisiva para o Congresso e que ela não arromba as portas que já estão abertas. Se a emenda for derrotada, ela cumpriu o seu fim e quem perdeu a oportunidade política terá sido o “Planalto”, com o seu partido vassalo, o PDS, e as chamadas “forças de ultradireita”. Se ela for aprovada, o Congresso terá correspondido à pressão popular e avançado no sentido de afirmar-se como um poder respeitável e independente. Deixará para trás as vergonhas recentes e se imporá como um poder autônomo da República. Poder-se-á dizer que não foram os deputados e senadores que conquistaram, a peito descoberto, essa autonomia, pois ela vem de bandeja, como uma conseqüência da pressão popular contra a ditadura na sua forma atual. Todavia, não se pode (nem se deve) menosprezar o que a aprovação ad emenda representa como união das reivindicações das lutas travadas em conjunto pela massa mais ativa da população e a “classe política”.
Não obstante, o personagem central não é visível. Ele não é representado pelo governo, porque este é uma ditadura que se impôs pelas armas e por sucessivas artimanhas que as possibilitaram; e ele não é senão parcialmente representado pelos “partidos de oposição”, porque estes foram reduzidos, pela ordem ilegal vigente, à condição inescapável de partidos da ordem,, queiram ou não queiram. Esse personagem central é a massa mais ativa e decidida, politicamente falando, da população. Massa que abrange as várias classes e frações de classes, mas que possui seu peso estatístico nos trabalhadores assalariados, nos desempregados ocasionais e estruturais, numa pequena burguesia quase completamente empobrecida e proletarizada e em alguns estratos das classes médias e da alta burguesia. O centro burguês ocupa o palco político através da direção e das cúpulas dos partidos. No entanto, a força política que impulsiona a oposição, sacode os partidos, faz os políticos perderem o sono e amedronta um Executivo irresponsável, se concentra na base mais pobre da pirâmide das classes. Antes, essa base era designada desprezivelmente como “gentinha”, o poviléu sem eira nem beira. Hoje, ela é o povo, a parte viva do despertar da Nação, o dínamo que finalmente transmutou a Nação em realidade política e a converte em fonte de uma revolução democrática original e estuante.
Um personagem desse porte – e com essa originalidade histórica – só pode ser ouvido ou observado sob condições especiais, quando ele se manifesta coletivamente. Os vários comícios que ocorreram no Brasil , desde a primeira tentativa encabeçada pelo PT no Pacaembu até o de 16 de abril, passando pelo Rio de Janeiro e por tantos outors, ofereceram a todos a oportunidade de indagar  o que esse personagem quer. O comício de 16 de abril merece ser posto em relevo, não por causa de suas proporções – mas porque ele condensa tudo o que se acumulou em termos de forças psicossociais e políticas que se concentraram e se exprimiram através da massa popular mais ativa e decidida. Para entendê-lo, era preciso não estar no palanque: as manifestações de massa diluem-se e misturam-se, chegam ao tope dos partidos e das lideranças com um rumor confuso. Em suma, seria necessário sentir e participar da eclosão das reações e dos sentimentos políticos dessa grande massa para compartilhar o significado de suas atitudes e frustrações a partir de sua própria forma de ser, de externar-se e de afirmar-se contraditoriamente, dentro de um torvelinho, no qual as divergências desembocam irremediavelmente no mínimo comum que todos querem.
As vaias que menos chamaram a atenção foram as mais importantes. A publicitarização e a anodização do comício desencadearam as vaias que pareciam ser as mais importantes – que atingiram os Malufs e Andreazzas, poupando o poder que os instrumentaliza, ou que enfatizaram a mensagem central (diretas já) ou que retiravam das elites dos partidos (e, portanto, dos quadros das classes dominantes), os heróis que são bafejados na nova mitificação dos “paladinos da democracia” etc. etc. Todavia, as vais de maior densidade política não foram essas, o que quer dizer que as vaias não são o que elas parecem (o que sucede, também, com os aplausos). É preciso tomar pelo que são as vaias com que forma recebidos Tancredo Neves, Leonel Brizola e Franco Montoro e os aplausos que cercam os seus discursos e que especialmente, o de Lula. Deve-se dar de barato que eles sabem o seu ofício e que os incidentes não interessam por si mesmos (e tampouco devem ser inteiramente atribuídos a percepções mais ou menos notórias). O elemento irredutível e diferencial aparece no qua a massa popular não só exteriorizou repetidamente, mas, ainda, demonstrou categoricamente, colocando atitudes, expectativas e frustrações em sua contextualização imediata de sentido.
Duas coisas se evidenciam como fatos claros e irretorquíveis. Primeiro, as vaias e os aplausos que interessam, que alcançariam os nossos, salientam algo crucial: a massa politicamente ativa não encontra campeões integrais ou os campeões quando eles vão ao fundo de sua fala, ficam aquém das posições da mesma massa. Os ritmos da revolução democrática estão desigualmente distribuídos: a radicalidade não passa pela linguagem dos políticos, mas pela disposição da massa em r ao combate com eles apesar de tudo. Até o Lula, o únio que se sintoniza plasticamente com a corrente política que sobe debaixo para cima, não acompanhou as alterações do conteúdo das atitudes e epectativas da massa ao longo da presente campanha (o seu discurso é fundamentalmente o mesmo do Pacaembu, explicitando o porquê das “eleições diretas já” à luz do comportamento político do povo). Segundo, as palavras de ordem e os símbolos de protesto ficaram tão suplantados quanto os partidos e suas mensagens políticas de oposição dentro do enquadramento “legal” da ditadura. Os partidos transbordam de modo evidente o contingenciamento ilegal que vem de cima somente nas correias de protesto orquestrado (pois tudo fica impessoal e só se pode condenar uma suposta “baderna”, intrínseca à contestação apoiada por centenas de milhares de pessoas). Mas, mesmo assim, não repondem diretamente à pressão popular. Ela vai não só contra a ordem ilegal existente, ela se manifesta primariamente – e e forma impaciente – em favor de uma ordem legal nova, verdadeiramente democrática, o que marca o elemento diferencial revolucionário e construtivo dessa pressão espontânea. Aí as vaias aos nossos e os aplausos que retumbaram ao discurso propriamente político dos líderes partidários descobrem o nó da questão: a pressão popular e revolucionária em um sentido e dentro de ímpetos que os partidos existentes ainda não logram aprofundar e ampliar. Eles são meios institucionais de um novo ponto de partida, mas ainda não se configuram,, estrutural e dinamicamente, para corresponder politicamente a esse ponto de partida.
Aí o significado do 16 de abril e, de um modo mais gerla, do imenso confronto de massa popular que a ditadura acabou desencadeando contra si mesma. O quadro que se delineia é claramente positivo, embora seja assustador para a ditadura que se tornou instrumental para um fim imprevisto, o desencadeamento popular da revolução democrática – e para os segmentos mais reacionários das classes burguesas. Ele desvenda que a pressão popular está destroçando todo o complexo institucional montado pela ditadura e testado para durar indefinidamente, com retoques sucessivos. Os partidos de oposição estão incluídos nesse complexo, não só o PDS e o poder arbitrário que desgoverna a Nação. O mesmo quadro indica que a Nação busca organizar-se a si mesma, mediante a presença popular na criação de uma ordem legalmente republicana e politicamente democrática.



Florestan Fernandes – Sociólogo e político brasileiro – 24.04.1984
Originalmente publicado em Folha de São Paulo, 24 de abril de 1984, p. 03.
IN Perseu: historia, memória e política. Centro Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2007. Ano 03, n. 3, 2009 (pp. 122-125).