Esse personagem central é
a massa mais ativa e decidida, politicamente falando, da população, (...) Antes,
essa base era designada desprezivelmente como ‘gentinha’, o poviléu sem eira
nem beira. Hoje, ela é o povo, a parte viva do despertar da Nação, o dínamo que
finalmente transmutou a Nação em realidade política e a converte em fonte de
uma revolução democrática original e estuante.
Florestan Fernandes
Há uma preocupação pela “posição do governo” e por
“o que acontecerá se a Emenda Dante de Oliveira não for aprovada?”. É
justo que esses temas tomem conta das preocupações. Eles são temas cruciais. De
um lado, está uma ditadura que, ao longo dos 20 anos, mostrou-se capaz de
inverter o curso o curso das suas promessas aparentemente mais firmes. Hoje ela
já não dispõe da mesma força. Mas continua a comandar um trunfo militar que
ainda não foi batido e reúne um conjunto de forças reacionárias e
contra-revolucionárias que prefere a derrota ao bom senso. Portanto, usando
prerrogativas que não são legítimas e hoje são repudiadas pela quase totalidade
da Nação, o governo procura torpedear uma transição rápida, ainda que pacífica
e vantajosa para os que abusaram do poder e deveriam tremer diante do que
fizeram!
De outro lado, as ambigüidades das vacilações da
oposição a nivel institucional (isto é, de omissões que cabem aos partidos, que
não souberam avançar até os limites do ponto de partida que se delineou com
tanta clareza há mais de dois anos), conferiram naturalmente uma importância
capital à Emenda Dante de Oliveira. Toda a oposição sabe perfeitamente que a
emenda só e decisiva para o Congresso e que ela não arromba as portas que já
estão abertas. Se a emenda for derrotada, ela cumpriu o seu fim e quem perdeu a
oportunidade política terá sido o “Planalto”, com o seu partido vassalo, o PDS,
e as chamadas “forças de ultradireita”. Se ela for aprovada, o Congresso terá
correspondido à pressão popular e avançado no sentido de afirmar-se como um
poder respeitável e independente. Deixará para trás as vergonhas recentes e se
imporá como um poder autônomo da República. Poder-se-á dizer que não foram os
deputados e senadores que conquistaram, a peito descoberto, essa autonomia,
pois ela vem de bandeja, como uma conseqüência da pressão popular contra a
ditadura na sua forma atual. Todavia, não se pode (nem se deve) menosprezar o
que a aprovação ad emenda representa como união das reivindicações das lutas
travadas em conjunto pela massa mais ativa da população e a “classe política”.
Não obstante, o personagem central não é visível.
Ele não é representado pelo governo, porque este é uma ditadura que se impôs
pelas armas e por sucessivas artimanhas que as possibilitaram; e ele não é
senão parcialmente representado pelos “partidos de oposição”, porque estes
foram reduzidos, pela ordem ilegal vigente, à condição inescapável de partidos
da ordem,, queiram ou não queiram. Esse personagem central é a massa mais ativa
e decidida, politicamente falando, da população. Massa que abrange as várias
classes e frações de classes, mas que possui seu peso estatístico nos
trabalhadores assalariados, nos desempregados ocasionais e estruturais, numa
pequena burguesia quase completamente empobrecida e proletarizada e em alguns
estratos das classes médias e da alta burguesia. O centro burguês ocupa o palco
político através da direção e das cúpulas dos partidos. No entanto, a força
política que impulsiona a oposição, sacode os partidos, faz os políticos
perderem o sono e amedronta um Executivo irresponsável, se concentra na base
mais pobre da pirâmide das classes. Antes, essa base era designada
desprezivelmente como “gentinha”, o poviléu sem eira nem beira. Hoje, ela é o povo,
a parte viva do despertar da Nação, o dínamo que finalmente transmutou a Nação
em realidade política e a converte em fonte de uma revolução democrática
original e estuante.
Um personagem desse porte – e com essa
originalidade histórica – só pode ser ouvido ou observado sob condições
especiais, quando ele se manifesta coletivamente. Os vários comícios que
ocorreram no Brasil , desde a primeira tentativa encabeçada pelo PT no Pacaembu
até o de 16 de abril, passando pelo Rio de Janeiro e por tantos outors,
ofereceram a todos a oportunidade de indagar o que esse personagem quer.
O comício de 16 de abril merece ser posto em relevo, não por causa de suas
proporções – mas porque ele condensa tudo o que se acumulou em termos de forças
psicossociais e políticas que se concentraram e se exprimiram através da massa
popular mais ativa e decidida. Para entendê-lo, era preciso não estar no
palanque: as manifestações de massa diluem-se e misturam-se, chegam ao tope dos
partidos e das lideranças com um rumor confuso. Em suma, seria necessário
sentir e participar da eclosão das reações e dos sentimentos políticos dessa
grande massa para compartilhar o significado de suas atitudes e frustrações a
partir de sua própria forma de ser, de externar-se e de afirmar-se contraditoriamente,
dentro de um torvelinho, no qual as divergências desembocam irremediavelmente
no mínimo comum que todos querem.
As vaias que menos chamaram a atenção foram as mais
importantes. A publicitarização e a anodização do comício desencadearam as
vaias que pareciam ser as mais importantes – que atingiram os Malufs e
Andreazzas, poupando o poder que os instrumentaliza, ou que enfatizaram a
mensagem central (diretas já) ou que retiravam das elites dos partidos (e,
portanto, dos quadros das classes dominantes), os heróis que são bafejados na
nova mitificação dos “paladinos da democracia” etc. etc. Todavia, as vais de
maior densidade política não foram essas, o que quer dizer que as vaias não são
o que elas parecem (o que sucede, também, com os aplausos). É preciso tomar
pelo que são as vaias com que forma recebidos Tancredo Neves, Leonel Brizola e
Franco Montoro e os aplausos que cercam os seus discursos e que especialmente,
o de Lula. Deve-se dar de barato que eles sabem o seu ofício e que os
incidentes não interessam por si mesmos (e tampouco devem ser inteiramente
atribuídos a percepções mais ou menos notórias). O elemento irredutível e
diferencial aparece no qua a massa popular não só exteriorizou repetidamente,
mas, ainda, demonstrou categoricamente, colocando atitudes, expectativas e
frustrações em sua contextualização imediata de sentido.
Duas coisas se evidenciam como fatos claros e
irretorquíveis. Primeiro, as vaias e os aplausos que interessam, que
alcançariam os nossos, salientam algo crucial: a massa politicamente ativa não
encontra campeões integrais ou os campeões quando eles vão ao fundo de sua
fala, ficam aquém das posições da mesma massa. Os ritmos da revolução
democrática estão desigualmente distribuídos: a radicalidade não passa pela
linguagem dos políticos, mas pela disposição da massa em r ao combate com eles
apesar de tudo. Até o Lula, o únio que se sintoniza plasticamente com a
corrente política que sobe debaixo para cima, não acompanhou as alterações do
conteúdo das atitudes e epectativas da massa ao longo da presente campanha (o
seu discurso é fundamentalmente o mesmo do Pacaembu, explicitando o porquê das
“eleições diretas já” à luz do comportamento político do povo). Segundo, as
palavras de ordem e os símbolos de protesto ficaram tão suplantados quanto os
partidos e suas mensagens políticas de oposição dentro do enquadramento “legal”
da ditadura. Os partidos transbordam de modo evidente o contingenciamento
ilegal que vem de cima somente nas correias de protesto orquestrado (pois tudo
fica impessoal e só se pode condenar uma suposta “baderna”, intrínseca à
contestação apoiada por centenas de milhares de pessoas). Mas, mesmo assim, não
repondem diretamente à pressão popular. Ela vai não só contra a ordem ilegal
existente, ela se manifesta primariamente – e e forma impaciente – em favor de
uma ordem legal nova, verdadeiramente democrática, o que marca o elemento
diferencial revolucionário e construtivo dessa pressão espontânea. Aí as vaias
aos nossos e os aplausos que retumbaram ao discurso propriamente político dos
líderes partidários descobrem o nó da questão: a pressão popular e
revolucionária em um sentido e dentro de ímpetos que os partidos existentes
ainda não logram aprofundar e ampliar. Eles são meios institucionais de um novo
ponto de partida, mas ainda não se configuram,, estrutural e dinamicamente,
para corresponder politicamente a esse ponto de partida.
Aí o significado do 16 de abril e, de um modo mais
gerla, do imenso confronto de massa popular que a ditadura acabou desencadeando
contra si mesma. O quadro que se delineia é claramente positivo, embora seja
assustador para a ditadura que se tornou instrumental para um fim imprevisto, o
desencadeamento popular da revolução democrática – e para os segmentos mais
reacionários das classes burguesas. Ele desvenda que a pressão popular está
destroçando todo o complexo institucional montado pela ditadura e testado para
durar indefinidamente, com retoques sucessivos. Os partidos de oposição estão
incluídos nesse complexo, não só o PDS e o poder arbitrário que desgoverna a
Nação. O mesmo quadro indica que a Nação busca organizar-se a si mesma,
mediante a presença popular na criação de uma ordem legalmente republicana e
politicamente democrática.
Florestan Fernandes – Sociólogo e político brasileiro –
24.04.1984
Originalmente publicado em Folha de São Paulo, 24
de abril de 1984, p. 03.
IN Perseu: historia, memória e política. Centro
Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2007. Ano 03,
n. 3, 2009 (pp. 122-125).