De
coadjuvante, Kassab virou operador de um sistema político sem princípios nem
lastro social.
Renato Lessa
Há
cerca de seis anos, em 2006, o então prefeito de São Paulo, José Serra,
renunciou ao mandato, conquistado nas eleições de 2004, para ingressar na
corrida eleitoral ao governo paulista. Salto bem-sucedido, posto que lograria
derrotar Marta Suplicy, qualificando-se, assim, à condição que, como sabemos,
propiciaria mais à frente a reedição do ato de renúncia. Com José Serra, pela
compulsão à repetição, aprendemos que renunciar é humano.
Por
unilaterais e caprichosas, renúncias são ocasiões ímpares para pensar a
respeito do peso dos contrafactuais na história humana. Não tivesse José Serra
renunciado, e se reeleito fosse à Prefeitura de São Paulo em 2008, estaríamos
hoje a falar de Gilberto Kassab, com a magnitude que o desagradável princípio
de realidade nos impõe?
É
certo que as ações humanas, se procurarmos estabelecer suas causas, podem ser
submetidas ao abismo das regressões ao infinito. Detectada o que julgamos ser a
causa de algo, sempre é possível indagar sobre causas dessa causa, e assim por
diante - ou melhor, para trás -, até retrocedermos a um momento inaugural, seja
ele o da moldagem de Adão ou da eclosão do bóson de Higgs. De todo o modo,
ainda que isso seja verdadeiro, é inegável que na genealogia do animal político
Kassab o efeito de causalidade exercido pela primeira renúncia de José Serra
tem forte relevância.
Vá lá
que o ato procriador praticado pelos pais do atual prefeito de São Paulo tenha
sido uma condição necessária para que viesse a ter existência biológica.
Contudo, parece ser indisputável o fato de que o ato de renúncia de Serra
produziu um efeito político preciso, qual seja o da entronização de Kassab ao,
digamos, primeiro time da elite política nacional. Suponho que não seja exagero
imaginar que o ocupante do posto de prefeito da cidade de São Paulo, a mais
importante cidade do hemisfério sul, não possa ser descrito de maneira
diferente.
Determinar
a causa eficiente do fenômeno não traz consigo a suposição de que havia
intencionalidade na coisa: os efeitos procedem das causas, mas só adquirem
fisionomia própria pelo que a elas acrescentam. Se a entronização de Kassab no
campo político nacional derivou de um ato inicial, movido por considerações de
oportunidade política de curto prazo, é importante não desvalorizar, para fins
de interpretação, o que o personagem acrescentou de si ao presente que recebeu.
O
personagem eminentemente local transformou-se em pouco tempo em um operador
relevante no cenário nacional. Já não conta mais como prefeito: o que faz e o
que se diz do que faz em São Paulo está aquém de seu peso específico no plano
nacional. Para avaliar tal peso, as medidas são outras: um partido com mais de
meia centena de deputados federais - o que representa 10% da Câmara de
Deputados - e dois senadores.
A
importância do kassabismo extrapola, contudo, a contabilidade parlamentar. O
empreendimento do prefeito de São Paulo exibe de modo aberto a lógica do
presidencialismo de coalizão, por meio de um truque de rara destreza:
transformar meia centena de deputados obscuros, condenados às agruras das
legendas de oposição, às quais em sua maioria pertenciam, em um conjunto
disponível para trocas generalizadas. A sigla partidária, marca fantasia da
organização, afirma-se negativamente, no que diz respeito a ideologias: não é
de esquerda, de direita ou de centro. Quer isso dizer que se sente à vontade em
qualquer ambiente. Ao modelo, em si mesmo generoso, do presidencialismo de
coalizão, o partido do dr. Kassab propicia o acréscimo de potenciais 50 novos
clientes, manobra extensiva aos municipalismos e aos "estadualismos"
de coalizão.
Curiosamente,
o dr. Kassab é o que vai de mais genuíno e autoevidente pela vida política
nacional. Com ele não há riscos de decepção: qualquer domicílio o receberá de
portas abertas, sem possibilidade de dano a seus, digamos, valores e
princípios. O partido kassabista é sobretudo um experimento aberto de
hiper-realismo político, em um grau que talvez nenhum dos partidos
"relevantes" brasileiros esteja disposto a assumir. Mesmo o PMDB, mãe
de todos os realismos, não dispensa, una y otra vez, menções a seus heróis e
mitos de origem. Com os kassabistas, nada disso: eles expõem com clareza
ofuscante os fundamentos correntes da política brasileira. É, pois, um
empreendimento que elimina toda suspeita a respeito da opacidade das palavras.
Para o kassabismo, as palavras são o que elas são, não escondem, iludem,
parafraseiam ou aludem. Pretendem dizer o que a coisa é. Enfim, temos a tão
desejada instalação da verdade na política.
Kassab
indica o vice na chapa de Serra, arqui-inimigo do petismo, e apoia Patrus
Ananias, herói petista, em Belo Horizonte. A senadora Kátia Abreu (PSD-PA),
livre dos ares moribundos do ex-PFL, manifesta simpatia pela reeleição de Dilma
Rousseff. E por aí vamos: tudo é permitido, tudo é divino e maravilhoso.
Pensando bem, Kassab é mesmo um herói do presidencialismo de coalizão. Na
verdade, um pequeno prestidigitador, a exibir o fato grave de que a existência
de partidos "relevantes" e "coesos", bem como sua criação,
nada tem a ver com o que se passa no plano da vida social. Política sem
princípios e sem lastro social: há quem diga que se trata de uma
"democracia consolidada".
Renato Lessa –
Professor titular de teoria política na Universidade Federal Fluminense; investigador
associado do Instituto deCiências Sociais da Universidade de Lisboa;
Diretor-presidente do Instituto Ciência Hoje – 08.07.2012
IN “O
Estado de São Paulo” – http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-visionario-da-provincia,897503,0.htm