Uma das constatações mais
impressionantes da pesquisa, derivada tanto da análise da documentação como das
entrevistas realizadas com os operadores do sistema foi o baixo questionamento
em relação à fragilidade das provas presentes nos autos. A concepção dos
operadores de que o tráfico de drogas consiste em crime grave e que deve ser
punido com o devido rigor contribui para que todo o processo penal se sustente
com provas por vezes pouco consistentes.
Fernando Salla, Maria Gorete Marques de Jesus e Thiago Thadeu Rocha
A Lei 11.343/2006, embora recente, tem sido objeto de debates,
controvérsias e propostas de alteração. As inquietações derivadas da constante
exposição dos problemas relacionados aos usuários e traficantes de drogas nos
meios de comunicação e uma relativa frustração pública com os efeitos da lei na
contenção de tais problemas formam esse cenário favorável ao debate.
Com as mudanças advindas da Lei 11.343/2006, imaginava-se que o número
de pessoas presas diminuiria, uma vez que o usuário não seria mais punido com
pena de prisão. Entretanto, o que se viu nos últimos anos foi exatamente o
movimento contrário, um aumento do número de presos por tráfico de drogas após
2006. As prisões por tráfico de drogas aumentaram na vigência da nova lei e a
proporção de presos por tráfico em relação aos outros crimes cometidos vem
crescendo neste mesmo período. Em 2006, o sistema penitenciário brasileiro
contava com 47.472 pessoas presas por tráfico no país. Já em 2011, registrou-se
125.744 presos por esta razão. Em São Paulo, em 2006, havia 17.668 presos por
tráfico de drogas, enquanto, em 2011, este número saltou para 52.713 presos por
esse tipo de crime.(1)
Apresentamos aqui alguns dos resultados de uma pesquisa recente
desenvolvida pelo Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo,
chamada Prisão Provisória e Lei de Drogas (2012).(2) O estudo
teve como principal objetivo compreender o uso da prisão provisória nos casos
de tráfico de drogas. Para tanto, examinou as práticas e os discursos dos
profissionais do sistema de justiça criminal e traçou um panorama dos casos de
tráfico de drogas, o que possibilitou uma ampla análise correlacionando a
seleção do sistema de justiça, a forma de atuação da polícia, a aplicação da
lei e a compreensão dos profissionais sobre prisão e segurança pública. Contou
também com um levantamento realizado a partir da coleta de dados junto aos
autos de prisão em flagrante (APF) de ocorrências de tráfico de drogas que
chegavam ao Departamento de Inquéritos Policiais do Fórum da Barra Funda da
Cidade de São Paulo (DIPO). Durante os meses de novembro, dezembro de 2010 e
janeiro de 2011, com base em um formulário previamente elaborado e testado,
foram coletados 667 autos de prisão em flagrante por tráfico
de drogas para análise.
Os principais resultados
Os dados coletados pela pesquisa na documentação permitiram traçar o
perfil das ocorrências em flagrante por tráfico de drogas e das pessoas
apreendidas na cidade de São Paulo. A maioria das prisões em flagrante foi
efetuada pela Polícia Militar (87%), seguida pela Polícia Civil (10%). Em
relação ao local do flagrante, 82% ocorreram em via pública, e 13% em
residências.(3) Entre as motivações da abordagem policial, a maioria das
prisões ocorreu durante o patrulhamento de rotina (62%); e em 69% dos flagrantes
uma única pessoa foi presa na ocorrência.
No que diz respeito à atuação de cada organização na apreensão de
drogas, verifica-se que, em média, a Polícia Civil apreendeu mais drogas do que
a Polícia Militar. Em média a Polícia Militar apreendeu 170,61 gramas, enquanto
a Polícia Civil apreendeu 322,71 gramas. Entre as maiores apreensões feitas
pela Polícia Civil, grande parte delas foi realizada pelo Departamento Estadual
de Investigações Sobre Narcóticos (DENARC).
Constatou-se um pequeno volume das apreensões de drogas em cada
ocorrência. Considerando apenas o intervalo interquartil, excluindo-se do
cálculo as maiores e menores quantidades de drogas apreendidas – a média das
apreensões por ocorrência foi de 66,5g de drogas.(4) Ao considerar os tipos de
droga apreendidos nas ocorrências, em cerca de 40% dos casos houve apreensão de
até 100g de maconha. Verificou-se que, em relação à apreensão de cocaína, em
cerca de 70% dos casos envolvendo essa droga, houve apreensão de até 100g.
Como esses dados foram colhidos no “Laudo de Constatação da Droga”, é
necessário esclarecer que o crack foi registrado como cocaína, que é sua
matéria-prima básica. Nesse sentido, nem toda a cocaína presente no registro
acima corresponde a esta droga em estado puro. O crack foi encontrado em 37%
das ocorrências.
Houve apreensão de apenas um tipo de droga em 39% das ocorrências. Em
35% delas foram apreendidos dois tipos de entorpecentes, enquanto em 26% foram
encontrados mais de três tipos de drogas. Neste caso apenas, cocaína e crack aparecem
diferenciados.
A Lei 11.343/2006 trouxe a diferenciação entre tipos penais que estariam
envolvidos na cadeia do tráfico de drogas, mas não foi objetiva em relação à
definição do pequeno, médio e grande traficante. Entretanto, apesar da previsão
de diferentes tipos penais, todos acabam classificados simplesmente como
traficantes. Verificou-se que em
76% dos casos os acusados foram enquadrados apenas no art. 33, caput,
da Lei 11.343/2006. Em apenas 1,8% dos casos da amostra houve menção ao
envolvimento do acusado com organizações criminosas.
Com relação ao perfil das pessoas presas nas ocorrências por tráfico de
drogas, 87% dos casos eram do sexo masculino e
13% feminino. O levantamento mostrou que as mulheres foram presas por
denúncias (35%) e em revistas na penitenciária (10,9%), enquanto os homens
sofreram mais abordagens a partir de patrulhamento de rotina (67,8%). Muitas
vezes, as mulheres que foram presas durante revista na penitenciária portavam a
droga para levá-la ao companheiro preso, por variados motivos.
A pesquisa constatou também uma considerável presença de jovens e
adolescentes nas ocorrências. A maioria dos apreendidos (75,6%) é composta por
jovens na faixa etária entre 18 e 29 anos. Além disso, cabe ressaltar que em
15% das ocorrências verificou-se a presença de adolescentes acusados de
participar do crime; estes dados referem-se àqueles que foram apreendidos com
os adultos no momento do flagrante. Não se tem informação a respeito de
flagrantes que tenham envolvido somente adolescentes, pois esses casos seguem
para a Vara da Infância e Juventude(5) e não para o DIPO. Pesquisa recente
(Teixeira, 2012) mostrou que em cerca de 30% de todos os flagrantes na cidade
de São Paulo havia adolescentes.
Com relação à cor das pessoas apreendidas, 46% foram classificadas como
pardas, 41% como brancas e 13% como negras. Negros e pardos somam, portanto,
59% dos apreendidos. Quanto à escolaridade, cerca de 61% dos apreendidos
possuía o primeiro grau completo, 19% tinham o ensino fundamental e 14% apresentavam
o ensino médio.
Verificou-se que 62,1% das pessoas presas responderam que exerciam
alguma atividade remunerada – formal ou informal;
29,4% disseram estar desempregadas; 8,4% responderam que eram estudantes
e em 3,8% dos casos ou a pessoa não respondeu ou esta questão não foi
preenchida. Cabe destacar que esses dados dizem respeito ao que foi declarado
pelo acusado no Distrito Policial.
Em relação ao registro de antecedentes criminais daqueles apreendidos
por tráfico de drogas, verifica-se que 57% das pessoas não tinham nenhum
registro em sua folha de antecedentes juntada no DIPO, e que 43% apresentaram
algum registro, sendo que 17% já tinham sido processadas por crime de tráfico.
61% dos acusados por tráfico de drogas foram assistidos pela Defensoria
Pública.
Em relação aos resultados dos processos, foram considerados apenas
aqueles que já apresentavam decisão (57% da amostra) no período de
desenvolvimento do estudo. Entre esses processos, verifica-se que 91% dos réus
foram condenados, enquanto 3% absolvidos. Para 6% da amostra foi proferida
sentença desclassificatória, o que indica que essas pessoas nunca deveriam ter
sido presas.
Uma das constatações mais impressionantes da pesquisa, derivada tanto da
análise da documentação como das entrevistas realizadas com os operadores do
sistema foi o baixo questionamento em relação à fragilidade das provas
presentes nos autos. A concepção dos operadores de que o tráfico de
drogas consiste em crime grave e que deve ser punido com o devido rigor
contribui para que todo o processo penal se sustente com provas por vezes pouco
consistentes. A despeito das frequentes condenações e da constante alegação de
que se trata de crime grave, verifica-se que não é comum a aplicação de altas
penas.
Em 62,5% dos casos foi aplicada pena menor de 5 anos, sendo que 36,8%
estão concentrados na aplicação da pena de 1 ano e 8 meses. Portanto,
conclui-se que é comum a aplicação do redutor, previsto no
§ 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006, que possibilitaria a aplicação da
pena abaixo do mínimo de 5 anos. Da mesma forma, uma conclusão possível é de
que boa parte desses casos envolve condenados primários, sem antecedentes criminais
e sem envolvimento com organização criminosa.
A pena de multa é também ponto polêmico da Lei 11.343/2006, já que seu
valor foi aumentado nove vezes em relação ao valor da pena prevista pela antiga
lei. Quando observado este dado na pesquisa, sua aplicação se concentrou
mais entre os valores de 500 a 799 dias-multa (32,5%). Houve também multas
aplicadas no valor de 166 dias-multa (31,5%), que corresponde à aplicação do
redutor que resulta em pena de 1 ano e 8 meses. Vale observar que há nítido
descompasso entre este valor e o perfil daquele que é preso por tráfico,
normalmente jovem e de classe popular, que não possui bens para quitar esta
dívida, tampouco acumulou patrimônio pela sua prática criminosa.
Considerações para o debate
Os sentimentos de medo e insegurança presentes na sociedade, associados
à ampla visibilidade das questões relacionadas ao uso e tráfico de drogas são
fatores que têm favorecido uma política repressiva e punitiva que vem se
mostrando de alcance limitado. Essa pesquisa, como outras já realizadas
(Boiteux, 2009), mostram que a repressão e punição aos acusados por tráfico de
drogas se limita em grande parte ao circuito varejista e de áreas territoriais
mais pobres das cidades. Não é regra as grandes apreensões de drogas, a interceptação
de grandes carregamentos, a desarticulação de redes sofisticadas do crime
internacional, a ação sobre os sistemas financeiros que viabilizam o tráfico, a
repressão ao tráfico que atende ao mercado de classe média e das elites. Não é
rotina o trabalho policial de investigação que levaria a esses circuitos do
tráfico de drogas. Uma das consequências mais angustiantes disso é de que a
mobilização do aparato repressivo e Judiciário para se processar pessoas e
fatos pouco repercute na cadeia do comércio ilícito de drogas e em sua
expansão.
Consequência igualmente grave do perfil de política de repressão e
punição colocada em prática nessa área é a geração de grande massa de jovens
com passagem pela polícia, registros criminais e com os estigmas produzidos pela
prisão.
Além disso, os dados indicam que não houve grandes mudanças na prática
após a vigência da Lei 11.343. O padrão de atuação da polícia no combate ao
tráfico de drogas com relação ao período em que vigorava a Lei de Drogas
anterior (Lei 6.368/76) continua o mesmo. Ao analisar o percurso institucional
da punição/impunidade para o tráfico de drogas no município de São Paulo no
contexto da democratização, Cassia Garcia (2005) já havia
constatado que as apreensões ocorriam em sua maioria por meio de patrulhamento
de rotina realizado pela policia militar, em via pública – locais conhecidos ou
ditos como ponto de venda de drogas – incindindo sobre uma população
específica. O presente estudo confirma também a pesquisa de Raupp que,
ao analisar processos de tráfico referentes à lei 6.368/1976, observou o mesmo
perfil de apreendido tratando-se daquele,“na definição da literatura
especializada, de pequeno porte, o do varejo, o micro. (...). É a ponta da
cadeia na qual organiza-se o tráfico de drogas que é visto pela lente da
justiça” (Raupp, 2005, p. 57).
Enfim, a pesquisa evidenciou mais uma vez um dos pontos críticos de
nossa experiência democrática: novas leis podem formalmente trazer avanços para
as relações sociais e para a garantia dos direitos dos cidadãos, mas são
insuficientes para provocar a efetiva alteração de valores, atitudes e
principalmente de práticas daqueles encarregados de aplicar a lei e distribuir
a justiça. Assim, qualquer proposta de novas mudanças precisa levar em conta
essas características e lidar com os “tabus”, preconceitos e resistências que
cercam o debate sobre a questão do tráfico e uso de drogas.
Referências bibliográficas
Boiteux,
Luciana et alli (2009). Tráfico de drogas e constituição: um estudo
jurídico-social do tipo do art. 33 da Lei de Drogas diante dos princípios
constitucionais-penais. Relatório de Pesquisa, Projeto Pensado o Direito,
Ministério da Justiça, Brasília.
Garcia,
Cassia S. (2005). Os (des)caminhos da punição: a justiça penal e o
tráfico de drogas São Paulo. Dissertação (Mestrado em Sociologia), FFLCH/USP.
Raupp,
Mariana M. (2005). O seleto mundo da justiça: análise de processos
penais de tráfico de drogas. São Paulo: Dissertação (Mestrado em Sociologia),
FFLCH/USP.
Teixeira,
Alessandra (2012). Construir a delinquência, articular a criminalidade. Um
estudo sobre a gestão dos ilegalismos na cidade de São Paulo. Tese
(Doutoramento em Sociologia), FFLCH-USP, São Paulo.
Notas:
(1)
Departamento Penitenciário (Depen) do Ministério da Justiça. Disponível em: .
(2) O Relatório
da pesquisa está disponível em: .
(3) A
abordagem realizada na residência das pessoas apreendidas diz respeito às
situações em que policiais entram em residências particulares, supostamente
autorizados pelos próprios(as) acusados(as) ou por outra pessoa responsável e
lá encontram drogas. Em 17% dos casos houve a chamada entrada
franqueada. Vale destacar que esses 17% representam os 13% de
flagrantes realizados diretamente na residência, mais outros4% de
casos em que a entrada na residência se dá depois da abordagem em via pública,
não sendo a residência o local onde se iniciou a ocorrência.
(4) Para
efeitos da análise foram somadas todas as drogas encontradas: maconha, cocaína,
crack e haxixe.
(5) Ver
Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/1990.
Fernando
Salla - Pesquisador
do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP); Maria
Gorete Marques de Jesus –Pesquisadora do Núcleo de Estudos da
Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP); Thiago Thadeu Rocha
– Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São
Paulo (NEV-USP) – outubro 2012-10-25
Drogas,
políticas e encarceramento no Brasil
Em muitos de seus propósitos, a Nova Lei
de Drogas fracassou.
Marcelo da Silveira Campos
As prisões brasileiras estão superlotadas de
usuários e pequenos traficantes de drogas. No ano de 2005, antes de entrar em
vigor a Nova Lei de Drogas (Lei 11.343 de 2006), o número absoluto de presos
por delitos ligados às drogas era de 32.880 homens e mulheres. Na época, o
encarceramento por drogas era responsável por 13% do total de presas e presos
no Brasil. Ao fazermos uma rápida análise comparativa, verifica-se que, em
2012, este número passou a 133.946 pessoas detidas por drogas. Portanto, 26% de
toda população carcerária do país está presa por algum delito relacionado às
drogas, de acordo com os dados atuais do Departamento Penitenciário Nacional
(DEPEN/MJ).
Em muitos de seus propósitos, a Nova Lei de Drogas
fracassou. Explico: o SISNAD foi promulgado em 2006 e saudado como uma grande
inovação. Dentre os seus principais objetivos, estava o estabelecimento de uma
diferenciação entre o usuário e o traficante, deslocando o usuário da cadeia
para o sistema de saúde e assistência social. No entanto, o efeito prático da
lei foi o reverso: a explosão do aumento absoluto e percentual de pessoas
presas por tráfico de drogas.
Assim, diversas pesquisas colocaram o objetivo de
investigar a hipótese do efeito prático da lei de drogas. Afinal, quem são
estas pessoas presas massivamente por drogas?
De acordo com alguns resultados de minha pesquisa
de doutorado, observa-se que na cidade de São Paulo a maior parte dessa
população criminalizada é formada por homens jovens de 18 a 30 anos. Cabe notar
ainda que percentualmente, houve um grande crescimento do número de mulheres
presas por drogas: em 2005, elas representavam 36%; em 2012, representam 54% do
total de mulheres presas. Quanto à escolaridade, a grande maioria estudou, no
máximo, até o Ensino Fundamental – somente 2,7% das pessoas criminalizadas
cursaram ou estavam cursando o Ensino Superior.
Considerando mais uma variável de desigualdade – a
ocupação profissional dos jovens – tem-se que a grande maioria dos incriminados
(52%) estão relacionados a profissões de pouca escolaridade e 20% são
desempregados, mostrando o trânsito destes jovens entre as fronteiras de
sobrevivência entre o legal e o ilegal , o formal e o informal.
Ao mesmo tempo, são apreendidas pouquíssimas
quantidades de drogas como bem demonstram os relatórios de pesquisas feitas
pela SAL/Pensando o Direito/Ministério da Justiça (2009), NEV-USP (2011),
Instituto Sou da Paz (2012) e ITTC/Pastoral Carcerária (2012).
O momento histórico, portanto, é de debate sobre os
efeitos negativos da Nova Lei de Drogas, buscando alternativas, sobretudo, para
a discricionariedade presente nas instituições da justiça criminal. Ainda assim,
determinados parlamentares insistentemente apresentam propostas de alterações
legislativas para o aumento das punições no Brasil, dentre as quais, se insere
o projeto de Lei nº 7663/2010, do deputado Osmar Terra (PMDB-RS). A proposta se
encontra no Plenário da Câmara atualmente e seu rápido andamento estampou
diversas manchetes nos noticiários das últimas semanas, mobilizando diversos
setores da sociedade civil, especialistas e movimentos sociais.
Isto porque o projeto insere-se na velha
perspectiva punitivista e criminalizadora, pois, prevê, dentre outras medidas:
i) o aumento da pena mínima para o tráfico de drogas em até 8 anos; ii) a
manutenção da criminalização do uso/porte de drogas; iii) a internação
involuntária por uso de drogas. Ora, a indigestão causada pelo referido projeto
de lei é justamente porque ele está na contramão das principais discussões
atuais sobre políticas públicas sobre drogas.
As políticas destinadas aos usuários de drogas
devem priorizar o fortalecimento da autonomia individual, reduzindo os danos e
riscos associados ao uso de drogas. Assim, as políticas públicas que funcionam
distanciaram-se do modelo internacional de “combate” e “guerra às drogas”,
pois, ao final do século XX, os resultados desta “guerra” demostraram ser a mesma
um grande fracasso, ao menos, sob dois pontos de vista: de um lado, o modelo
bélico de “combate” não diminuiu o comércio e o uso de drogas ilícitas; por
outro lado, do ponto de vista social, as pesquisas científicas no Brasil
demostram que apenas os grupos sociais estigmatizados são os alvos
preferenciais das instituições da justiça criminal.
Devemos, portanto, pensar modelos de políticas
públicas que estejam em consonância com o cenário atual internacional que visa
a transcender as políticas bélicas e criminalizadoras, como bem demostram as
recentes experiências internacionais da descriminalização do uso de drogas em
Portugal; o projeto de regulamentação estatal do uso de drogas no Uruguai ou a
legalização do uso da maconha nos estados americanos de Colorado e Washington .
No Brasil, portanto, compete ao Legislativo a
rejeição desta proposta para podermos concentrar esforços no julgamento do
Recurso Extraordinário 635.659, no Supremo Tribunal Federal, que pode
descriminalizar definitivamente o porte de drogas para uso próprio, buscando
alternativas políticas efetivas para as “prisões da miséria”, para utilizar a
expressão clássica do sociólogo Loic Wacquant.
Do contrário, trata-se apenas de políticas
populistas e incriminadoras que, na prática, acionam os mecanismos de
estigmatização institucional que operam desigualmente de acordo com o status,
o grupo e a classe social de cada indivíduo.
Marcelo da Silveira Campos – Doutorando em Sociologia na USP, onde desenvolve
pesquisa sobre drogas e justiça criminal em São Paulo. É mestre em Ciência
Política pela UNICAMP (2010) e pesquisador da área de Sociologia Política e da
Violência – 03.04.2013