Leda Paulani – Há duas cidades dentro de São Paulo:
uma cidade dos direitos, da democracia, da cidadania, da vida material
minimamente organizada, e outra meio da barbárie.
Eleonora de Lucena
O conflito na reintegração de posse na área conhecida como Pinheirinho
2, em São Paulo, é um episódio paradigmático do desenvolvimento urbano pautado
pela lógica mercantil, cuja finalidade última não é o ser humano. As sentenças
judiciais de desocupação deveriam levar em conta também a função social da
propriedade.
A visão é da secretária de planejamento, orçamento e gestão da cidade,
Leda Maria Paulani, 58. Para ela, "Se o Estado não entra para reequilibrar
o jogo, é um desastre".
Nesta entrevista, ela afirma que a força do capital em São Paulo
construiu espaços privados e deixou o interesse público de lado. Daí decorrem
os problemas da megalópole, onde convivem a riqueza suntuosa e a pobreza
aviltante. A cidade tem um "déficit de urbanidade", declara.
Economista marxista, ela critica a condução da política econômica
federal e define a atual administração como "progressista e
protossocialista". Na sua visão, o melhor caminho seria construir um amplo
programa de investimentos públicos.
Moradores e policiais militares entraram em confronto durante a
reintegração de posse de um terreno na zona leste de São Paulo Leia mais
Paulani identifica em Brasília um forte discurso ortodoxo que
"enxerga o ressurgimento do fantasma inflacionário em cada esquina".
E prevê que a tendência de queda dos juros não deve persistir.
Aqui, ela fala também das dificuldades da gestão e da discussão sobre o
orçamento participativo.
*
Folha – Como a sra. explica casos como o de Pinheirinho 2?
Leda Paulani – É um episódio paradigmático de uma situação
em que o desenvolvimento urbano e a própria ocupação urbana e a relação com a
propriedade da terra foram se dando de uma maneira desordenada e sem nenhuma
participação ativa do poder público para que isso não produzisse resultados tão
nefastos para a vida social da cidade. Há duas cidades dentro de São Paulo: uma
cidade dos direitos, da democracia, da cidadania, da vida material minimamente
organizada, e outra meio da barbárie.
Quando na gestão da Marta Suplicy pensamos nos CEUS, foi um pouco nesse
sentido: colocar o Estado com presença forte nas periferias para ir mudando
esses espaços da cidade. Os processos que são comandados pela lógica mercantil
são muito poderosos. Isso fica visível no preço dos imóveis, dos terrenos de
três anos para cá: subiram muitíssimo além do que qualquer alteração monetária
justificaria. Esse episódio é exemplo disso.
Folha – E como se combate?
Leda Paulani – O prefeito interveio rapidamente e com força
para evitar cenas de violência. [A prefeitura] vai fazer o possível e
impossível para resolver isso de uma forma civilizada.
Folha – Há confusão no cadastramento?
Leda Paulani – Parece que tem problemas. Correndo atrás do
prejuízo, se pode resolver e melhorar. Impedir que, por conta de uma sentença
judicial que segue os usos e costumes...
Folha – Como assim?
Leda Paulani – [As sentenças judiciais] têm sido pautadas,
como sempre, pelos interesses privados e por uma leitura estrita dos direitos
de propriedade.
Folha – A Justiça tem sido pautada pelos interesses privados?
Leda Paulani – Talvez seja um pouco leviano dizer isso dessa
forma. Mas se fosse levado em conta, de outro lado, a função social da
propriedade, que está na Constituição, talvez algumas dessas sentenças tivessem
outro teor. A sociedade brasileira é patrimonial. O peso da propriedade é
indiscutível, cláusula pétrea da sociabilidade brasileira.
Nesse caso específico há uma série de coisas que é possível, mas o ideal
seria que não houvesse mais esse tipo de situação. Que houvesse um mínimo de
controle do processo de ocupação urbana, de ordenação urbana. O poder da
especulação, lógica mercantil é inversamente proporcional ao poder do poder
público. Se há vontade política do poder público de ordenar o processo, no
médio prazo, a tendência é a redução do número desses episódios lamentáveis.
Folha – A especulação é muito forte em São Paulo?
Leda Paulani – Quando há um processo de financeirização
forte, ocorre um processo de formação de bolhas de ativos. É natural. A terra é
um ativo real dos mais importantes. Essa lógica mercantil entra em um município
como SP e vai varrendo, levando de roldão as coisas. E o que é a especulação? É
quando se mantém um determinado ativo para ganhar com a variação de preço dele.
Folha – Nesse caso específico há especulação?
Leda Paulani – É difícil afirmar assim. Seguramente se ele
não iria usar a terra, como não usou. Essa terra ficou lá e houve invasão. A
invasão, de certa forma, o ajuda, porque quase que impõe uma desapropriação.
Ele está errado, fez algo ilegal? Não. Mas é um comportamento especulativo. Se
mantém o ativo não para usufruir do benefício que ele possa te dar.
As bolhas de ativos são muito frequentes, como a historia tem mostrado
nesses últimos 30 anos.
Folha – Há uma bolha em São Paulo?
Leda Paulani – Dizer que há bolha é dizer que vai estourar.
É preciso qualificar. As bolhas podem estourar ou desinflar simplesmente absoluta
ou relativamente. Se dizia há 3 ou 4 anos que havia uma bolha de imóveis em SP,
os preços estouraram . Mas não houve estouro de bolha. Como aconteceu nos EUA
na crise de 2008. Não dá para dizer que alguma coisa desse tipo está aqui. Mas
quando o preço de alguma coisa sobe de uma maneira que não é possível
justificar, e se esse negócio é um ativo como a terra terreno em SP
sempre foi muito caro e de uns tempos para cá subiu muito mais_ tem alguma
coisa acontecendo aí.
Folha – Resumindo, este caso é ...
Leda Paulani – Paradigmático dessa situação em que se tem um
contexto de financeirização em que a lógica financeira comanda as transações.
Nesse enquadramento, é normal que os ativos sejam objeto de especulação e a
terra se torne uma mercadoria financeira.
Folha – E como ficam as pessoas ficam nesse jogo?
Leda Paulani – As pessoas acabam estorvando esse jogo. Nesse
caso, elas acabaram até ajudando o jogo. A lógica mercantil é uma lógica em si
mesma. A finalidade ultima dela não é o ser humano. Marx foi quem mais
claramente colocou isso. Nesse caso se aplica de forma redobrada e triplicada.
Karl Polanyi [autor de "A Grande Transformação"] diz que três coisas
não deveriam ter sido transformadas em mercadoria: a terra, o trabalho e o
dinheiro. Porque isso destrói a sociedade. Ele não deixa de ter razão. Terra,
dinheiro e trabalho têm a forma de mercadoria, mas mercadoria, de fato, não
são, e não poderiam sê-lo. Funcionam como mercadoria de acordo com a lógica
mercantil. Nesse contexto, o que acontece com o ser humano e com necessidades
humanas importa menos. Se o Estado não entra para reequilibrar o jogo, é um
desastre.
Folha – O Estado teria que ser mais duro contra a especulação?
Leda Paulani – Se o Judiciário quisesse de fato fazer valer
o que está na Constituição, não poderia jamais ter dado uma sentença dessas. A
terra está com essas famílias há quanto tempo? O que ele [o proprietário] fez
lá? Nada. Uma terra enorme, 130 mil metros quadrados, numa cidade como São
Paulo, onde se tem uma enorme escassez de terrenos.
O prefeito prometeu as creches. Fizemos um força tarefa para encontrar
terrenos. É um sufoco para conseguir [terreno] onde se precisa e que não se
seja esfolado para comprar. Tudo é um absurdo de caro. Um sujeito tem um
terreno desse tamanho, não faz nada com ele. Se não se aplicar aí a função
social da propriedade, vai aplicar onde?
Folha – A sra. defende, então, que o Judiciário considere mais a função
social da propriedade?
Leda Paulani – Sim, do que [considerar] o puro e simples e
protocolar direito à propriedade privada, que também esta na Constituição.
Folha – Qual a ideia da prefeitura agora?
Leda Paulani – É um pouco respirar. Ver como manter essas
famílias ate construir moradias decentes para elas.
Folha – Na esfera municipal, sempre foram fortes os poderes dos setores
de transporte, lixo e imobiliário. Como a atual gestão vai lidar, ou está
lidando com as pressões dessas áreas?
Leda Paulani – A questão do transporte é uma das mais
complicadas, porque transporte público em grandes centros urbanos como São
Paulo tem, por definição, de ser subsidiado e a municipalidade não abriga
recursos suficientes. Por conta disso e de outras variáveis que extrapolam o
arbítrio do poder municipal, há décadas os subsídios vêm sendo dados de forma
invertida, incentivando-se o transporte individual e desestimulando-se o
transporte público, o que para São Paulo é uma tragédia. Mas a resolução disso,
mais uma vez, extrapola o âmbito municipal. Quanto ao setor imobiliário, sua
força impositiva é inversamente proporcional à força do poder público municipal
em seu papel de ordenar o crescimento urbano. Como já mencionei, a meu ver, a
vitória do Fernando e de seu programa de governo indica que está na hora de o
poder municipal começar a exercer seu papel de ordenador, pautando o setor
imobiliário, em vez de ser pautado por ele. Institucionalmente, os instrumentos
existem (plano diretor, lei de zoneamento, estatuto das cidades) e vontade
política para tanto, ao menos nesta gestão, é o que não falta.
Os atuais contratos de lixo e varrição estão sendo renegociados em
benefício do município e o modelo de gestão também pode ser alterado.
Folha – Qual sua avaliação do trabalho da Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão?
Leda Paulani – É um trabalho pesado, puxado, porque a
Secretaria é muito grande, nevrálgica, e trata de muitos assuntos transversais,
afetando, portanto, todos os demais órgãos (orçamento, pessoal, informações,
política de compras etc..). Com a dificuldade financeira e orçamentária
existente e com nossa ansiedade de querer começar a mudar logo a cara da
cidade, o trabalho triplica, porque tudo tem de ser feito ao mesmo tempo e
sempre com um nível elevado de tensão. Nossa sorte é que o Fernando [Haddad] é
um condutor extremamente hábil.
Folha – O que vai bem e o que vai mal?
Leda Paulani – Eu diria que o governo vai muito bem, o
ambiente dentro dele é muito bom, o que não é pouca coisa, dadas, por um lado,
as dificuldades já assinaladas e, por outro, o caráter, digamos assim,
ecumênico do próprio governo. Acho que o Fernando acertou na escolha de seus
auxiliares, porque, para além de sua competência técnica e independentemente de
sua origem e/ou ligação com o prefeito e/ou o PT, todos acreditamos muito em
seu projeto.
O que vai mal é a falta de recursos. O orçamento aprovado ao final de
dezembro superestimou a receita, criando despesas que não poderiam existir, e
deixou despesas importantes de fora, como, por exemplo, a despesa com o subsídio
à tarifa do transporte público, que foi orçada a menor, e os recursos
necessários para a execução das obras relativas à Copa do Mundo, com as quais o
município se comprometeu.
Folha – Qual o principal problema da prefeitura do seu ponto de vista?
Leda Paulani – No curto prazo, como já disse, a principal
dificuldade são as restrições orçamentária e financeira. Mas existe um problema
de fundo, que é igualmente importante: uma desestruturação enorme dos recursos
humanos da prefeitura. Há duas carreiras bem estruturadas, que são as de
auditor tributário e procurador. Os salários iniciais são substantivos e existe
uma carreira propriamente dita, além de honorários e gratificações. Com isso,
bons profissionais são atraídos e selecionados pelos concursos. A dificuldade
aqui é que eles são poucos, em particular os procuradores, havendo uma carência
bastante grande desses profissionais em praticamente todos os órgãos. Além
dessas duas carreiras, o quadro de pessoal da educação, em particular o
magistério, também está bem estruturado, refletindo um trabalho que se iniciou
lá atrás, ainda na gestão Marta. Neste último caso, apesar de os salários não
serem ainda aquilo que desejaríamos para carreira tão importante, é muito
melhor do que já foi e há acordos fechados anteriormente que continuarão a
elevá-los e que a nova gestão evidentemente vai honrar.
Mas, tirando isso, o restante é muito complicado. Apesar dos concursos
que de quando em quando são feitos, os bons quadros acabam não ficando na
prefeitura. A carreira de engenheiro, por exemplo, tem salário inicial de cerca
de R$ 3.000,00, absolutamente insuficiente para reter um bom profissional. O
mesmo acontece com arquitetos, psicólogos, geólogos, assistentes sociais,
médicos etc. De outro lado não temos, por exemplo, a carreira de gestor de
políticas públicas, hoje absolutamente essencial. Enfim, esse é um problema que
vamos encarar e vamos tentar minorar, mas cuja resolução efetiva demanda um
largo período de tempo, em particular quando não se nada em dinheiro, como é o
nosso caso.
Folha – Qual é a prioridade maior na sua visão?
Leda Paulani – Acho que o maior desafio é fazer de São Paulo
uma verdadeira cidade. Não sou urbanista e posso estar dizendo uma obviedade,
mas o que me parece é que há um tremendo déficit de urbanidade em São Paulo. A
força do capital por aqui foi construindo espaços privados contíguos e não
espaço público, que é onde a cidade de fato existe. Seus principais problemas
são, de uma forma ou de outra, decorrentes disso. O crescimento explosivo da
cidade, sua transformação numa megalópole no exíguo prazo de três ou quatro
décadas produziu essa concretude estonteante e contraditória de riqueza
suntuosa e pobreza aviltante, de civilização e barbárie, e esse processo insano
foi puxado em boa medida pela lógica da valorização capitalista.
Mas isso ocorreu não apenas pela força do capital. Nas últimas décadas,
essa força foi auxiliada pelo espírito da época, o qual tornou Estado e
planejamento palavras proscritas. Hoje, porém, parece que há uma compreensão um
pouco mais clara de que assim não é possível continuar e a própria vitória do
Fernando é, a meu ver, uma demonstração disso. Por isso é difícil dizer qual
seria a prioridade, porque qualquer que seja o problema, se se tentar para ele
uma solução estanque, não vai funcionar. É preciso pensar a cidade como um
todo, que foi o que o programa do Fernando fez, com muita competência.
Mas programa de governo é uma carta de intenções. Cabe agora colocá-lo
de pé. A Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão tem, nesse sentido, um
papel destacado. Em 90 dias a contar da posse, ou seja, no final de março,
temos que entregar o Programa de Metas e o desafio vai ser justamente este:
trabalhando embora por área e por secretaria, traduzir essa visão articulada e
holística que, esperamos, comece a mudar um pouco a realidade de São Paulo.
Folha – Como é o processo de elaboração do Programa de Metas?
Leda Paulani – A elaboração do Programa de Metas em 90 dias
após o início de uma nova gestão é uma obrigação que o executivo paulistano tem
por força de uma mudança na lei orgânica do município de 2007. Apesar do enorme
esforço que envolve, dado o exíguo prazo disponível para a elaboração do
Programa, trata-se de uma medida extremamente positiva, pois justamente obriga
o novo governo municipal a planejar suas atividades e iniciativas ao longo dos
quatro anos que terá pela frente. Essa obrigação legal foi o resultado de uma
conquista da sociedade civil, que rapidamente começou a se espalhar pelo país,
de modo que hoje já são vários os municípios que têm essa obrigação. No caso de
São Paulo, a elaboração de um Programa de Metas em 90 dias será sempre um
desafio, dado o gigantismo da cidade e sua complexa, porém, necessária,
estrutura administrativa.
Contudo nosso trabalho foi facilitado pela existência de um plano de
governo tão detalhado quanto aquele que elegeu o Fernando. Foi tomando esse
plano como base que o Programa de Metas foi elaborado. Os objetivos e
iniciativas de mais de 20 órgãos foram coletados e sintetizados a partir dos
eixos norteadores do plano. Nosso princípio é que o Programa de Metas não pode
ser só um listão de coisas a serem feitas, mas deve traduzir uma visão de
cidade e essa visão está desenhada no plano que elegeu o atual prefeito.
Folha – O prefeito começou o seu trabalho anunciando cortes. Não foi
muito anticlimático? Havia outro caminho? A prefeitura de São Paulo é
desenvolvimentista?
Leda Paulani – Os cortes foram necessários pela inadequação
do orçamento, à qual já me referi. Se existem receitas cuja realização não é
segura, seria irresponsabilidade autorizar despesas que dependem delas.
Esperamos que a arrecadação de tributos nos surpreenda e/ou que os recursos
decorrentes de convênios com os outros níveis do poder executivo, em particular
o federal, cresçam substantivamente. Assim acontecendo, as dotações hoje
congeladas poderão ser liberadas. Não havia outro caminho, sobretudo porque
hoje, com a Lei da Responsabilidade Fiscal, a realização de déficits
orçamentários é muito complicada. Não poderíamos expor o prefeito a esse tipo
de risco. Mas não foi anticlimático. Como já disse, dificuldades à parte, o
clima dentro do governo está muito bom e todos já sabíamos que não existia um
mar de rosas do ponto de vista dos recursos, bem ao contrário.
Acho que a pergunta sobre se São Paulo é desenvolvimentista não procede.
O desenvolvimentismo foi um período da história brasileira e latino-americana
em que o continente teve a oportunidade de empurrar o processo de
desenvolvimento, direcionando-o por meio de políticas de Estado. É complicada
hoje a utilização do termo, porque vivemos em outra quadra histórica. Além
disso, no plano municipal, os graus de liberdade são bem menores, pois a
política econômica macro não está a nosso alcance.
Folha – Como está a questão da rediscussão da dívida com o governo
federal?
Leda Paulani – Não estou diretamente encarregada disso, mas
parece vai bem. Não é algo que vá se obter de imediato, dependente que é de
mudança de lei no Congresso, mas tudo indica que o governo federal deverá
apoiar essa mudança, a qual atenderá o pleito não só da cidade de São Paulo,
mas de vários outros municípios e estados.
Folha – Educação foi um dos pontos fracos da gestão anterior. Como e
quando será possível acabar com o crônico déficit de vagas em creches?
Leda Paulani – A questão do déficit de vagas para educação
de zero a três anos é uma das maiores preocupações do atual governo e
providências estão sendo tomadas em relação a esse grave problema. Mas, eu
prefiro deixar essa questão para o secretário Cesar Calegari, que, com mais
propriedade que eu, pode dar informações a respeito.
Folha – Já é possível vislumbrar o que não poderá ser realizado em
relação ao prometido na campanha?
Leda Paulani –A pretensão é realizar tudo que está lá.
Folha – Como a sra. avalia a relação entre a prefeitura e a Câmara
Municipal?
Leda Paulani – A Câmara voltou às suas atividades há pouco
tempo. As comissões foram recentemente constituídas. É difícil saber por ora em
que tom andará a conversa. De qualquer forma, esperamos que, para além do jogo
político-partidário que inevitavelmente existe, possamos ter na Câmara um
verdadeiro espaço de debate sobre a cidade.
Folha – Gestões petistas criaram no passado o orçamento participativo.
Por que a prefeitura de São Paulo não adota esse modelo? Entraria em confronto
com interesses de vereadores e subprefeitos? Seria mais democrático e eficaz,
ou não?
Leda Paulani – A participação é uma questão de grande peso
na atual gestão. O programa de governo foi construído graças a uma enorme e
generosa participação popular. O orçamento participativo insere-se nesse
contexto. Na gestão Marta, fizemos o orçamento participativo nos moldes
tradicionais, com sua estrutura piramidal, envolvendo toda a cidade, num
trabalho verdadeiramente extenuante. Esse modelo está sendo repensado,
devendo-se levar em conta, hoje, a realidade das subprefeituras e a existência
de outros órgãos de participação, como o recém-criado Conselho da Cidade, o
conselho de representantes das subprefeituras (a despeito dos óbices jurídicos
que ainda precisam ser superados) e os vários conselhos específicos existentes
em variados âmbitos, além da possibilidade de reeditarmos as conferências
municipais setoriais (de saúde, educação, transporte etc.). Mas o modelo
propriamente ainda não está pronto.
Com relação ao suposto confronto entre um modelo mais participativo e a
política convencional, o que ocorre é que o crescimento da participação social
sempre suscita a discussão sobre os limites da democracia representativa, pois
que a população é aí diretamente chamada a emitir sua opinião. Mas, ao
contrário do que pensam alguns, essa sorte de democracia direta está longe de
diminuir o poder da democracia representativa. Ao contrário. Com maior
conscientização e participação popular ganham todos os níveis e todos os
poderes de governo. Quem perde é apenas a velha política, que deve mesmo ser
enfraquecida.
Folha – Como o fraco desempenho do PIB está afetando a cidade de São
Paulo? O avanço da desindustrialização preocupa?
Leda Paulani – No âmbito das finanças municipais, o fraco
desempenho do PIB reduz a arrecadação de tributos (em relação ao que poderia
ser), em particular do ICMS, cuja correlação com o PIB é, dentre todas, a mais
elevada. Quanto ao avanço da desindustrialização, o processo preocupa
principalmente em nível de país, já que impõe um retrocesso ao perfil de nossa
oferta, de nosso aparato produtivo e, por tabela, de nosso status tecnológico.
No âmbito da cidade, o impacto é mais indireto. As indústrias, em grande parte,
já saíram daqui há algum tempo, mas a dinâmica da região metropolitana como um
todo envolve relações estreitas entre indústrias nos municípios da grande São
Paulo e a variada gama de serviços oferecida pela cidade. Se o processo de desindustrialização
atinge essas indústrias prejudica também a produção na capital.
Folha – Qual sua avaliação sobre o desempenho do governo federal na
economia? O ritmo de crescimento vai melhorar em 2013? Onde o governo errou? A
crise externa explica pouca coisa, certo?
Leda Paulani – A crise do final de 2008 faz sentir até hoje
seu impacto. Assim, apesar das medidas tomadas pelo governo federal para
reerguer a economia, os resultados não são os esperados. Com exceção de 2010
(mas a base de 2009 estava muito deprimida), o crescimento do PIB tem sido
muito baixo, muito aquém do necessário para um país como o Brasil. Mas,
evidentemente, a crise externa não explica tudo. De meados dos anos 1990 até
meados dos anos 2000, incluindo-se aí a primeira gestão Lula, o governo federal
praticou uma política neoliberal, afinada com os interesses financeiros e
rentistas. Isto implicou um par câmbio/juros em tudo avesso ao crescimento
industrial e ao aumento do investimento. Quando a política interna começa a
mudar, a partir da segunda gestão Lula, ela se choca com a crise mundial.
A reação interna à crise foi rápida e deu resultados no curto prazo,
sobretudo porque se conseguiu muito rapidamente descongelar o crédito
interbancário, mas os resultados não foram sustentáveis. Depois de mais de uma
década vivendo sob uma política anti-indústria não é de estranhar que o
investimento, principal variável a determinar o comportamento do PIB, demore
tanto a reagir. Além disso, a estratégia escolhida nem sempre foi acertada. Se,
em vez de despender tantos recursos com incentivo ao consumo e desoneração
fiscal, o governo tivesse revertido tudo isso num amplo programa de
investimentos públicos, os resultados seriam melhores. Aliás, essa tem sido a
história do Brasil. Por aqui, o investimento privado só reage quando puxado
pelos investimentos públicos. Tentar sustentar o crescimento na ampliação do
consumo e o consumo na ampliação do crédito é tentar fazer a roda da
macroeconomia girar ao contrário.
Folha – A sra. defende uma posição mais dura do governo federal em
relação aos bancos. O que foi feito até agora é suficiente?
Leda Paulani – Demorou demais, mas finalmente o governo
começou a utilizar suas armas para reequilibrar o jogo em favor dos clientes.
Esse mérito é do governo Dilma, que sabiamente utilizou os bancos públicos para
forçar a redução de tarifas, spreads e taxas de juro, e mais pode ser feito
nessa direção.
Folha – O governo federal tem tomado medidas de estímulo a empresas e
privatizações. O governo Dilma está à esquerda ou à direita do de Lula?
Leda Paulani – É difícil responder nesses termos, mas, como
já disse, há uma mudança de tom na política econômica a partir da segunda
gestão Lula, e a gestão Dilma confirmou e aprofundou esse caminho,
principalmente operando a troca de comando do Banco Central.
Folha – A crise internacional arrefeceu ou voltará a atormentar?
Leda Paulani – A crise internacional é estrutural. Ela é
resultado da forma que assumiu o desenvolvimento capitalista depois da crise
dos anos 1970. A partir daí, em muito auxiliado pelo final do acordo de Bretton
Woods, unilateralmente operado, diga-se de passagem, pelos EUA, a riqueza financeira
começa a crescer velozmente, num ritmo quatro vezes maior do que a riqueza
real. Isso ensejou toda uma grita pela liberalização e desregulamentação dos
mercados, principalmente pelo fim das amarras ao fluxo internacional de
capitais. É essa, por sinal, a base material da ascensão do discurso
neoliberal.
A inauguração dessa nova fase na história capitalista trouxe consigo o
surgimento recorrente de bolhas de ativos com as consequentes crises que elas
provocam. As formas encontradas para minorar os impactos daí decorrentes acabam
por aprofundar as causas estruturais da crise, pois fortalecem a riqueza
financeira. Em função disso, é muito difícil acreditar que a crise foi
ultrapassada e não voltará a atormentar.
Folha – Qual sua projeção para câmbio e juros para este ano?
Leda Paulani – Penso que o discurso ortodoxo, que enxerga o
ressurgimento do fantasma inflacionário em cada esquina, ainda é muito forte
dentro do governo, apesar da mudança geral de tom. Em função disso, a tendência
de queda da taxa Selic não deve persistir, sendo o mais provável que volte a
subir um pouco, ou, na melhor das hipóteses, se mantenha como está. Quanto ao
câmbio, ele depende também de outras variáveis, como a própria evolução da
crise internacional. Ponderando tudo, talvez fique como está.
Folha – Como marxista, como a sra. analisa a atual conjuntura nacional e
municipal?
Leda Paulani – São Paulo é uma cidade única em termos dos
desafios que coloca para a gestão municipal, em razão de seu gigantismo, do
crescimento sem controle e presidido em grande medida pelo capital, como já
disse.
Combinando-se isso ao momento da história capitalista que atravessamos,
conseguir por aqui não só melhorar a cidade, mas mudar seu eixo numa direção
menos opressiva, de mais liberdade e generosidade, será um enorme avanço.
Então, retomando a pergunta anterior sobre se a atual gestão é
desenvolvimentista, eu diria que a Prefeitura de São Paulo é hoje progressista
e protossocialista. Alguém poderia então perguntar o que é o socialismo... Eu
diria, repetindo Kant ao falar sobre o Bem, que não sabemos o que ele é, mas
temos que agir como se soubéssemos.
A meu ver, sanar, ou ao menos reduzir o déficit de urbanidade que aflige
a cidade é agir nessa direção, fundamentalmente reduzindo desigualdades e
ampliando direitos. E a redução da desigualdade não passa apenas pela redução
da desigualdade de renda, ainda que esta seja fundamental. Ela é também redução
de desigualdade espacial, de mobilidade, de participação, de acesso a emprego,
a cultura, a serviços de qualidade, enfim.
É isso, me parece, que está no cerne do programa do Fernando e é esse
projeto que nos mobiliza e nos faz ir em frente, mesmo em meio a tantas
dificuldades. Bairrismos à parte, considerando a importância de São Paulo para
o país, uma mudança dessa dimensão não será sem consequências no plano
nacional.
Eleonora de Lucena – Jornalista
Leda Maria
Paulani
– Economista, Professora da Universidade de São Paulo e Secretária do
Planejamento, Orçamento e Gestão da Prefeitura de São Paulo – 28.03.2013
IN
Folha de São Paulo – http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1253555-pinheirinho-2-mostra-logica-mercantil-diz-secretaria-de-sp.shtml