No
atual sistema de financiamento de campanha no Brasil não existe fronteira entre
o dinheiro e o sistema político. Que fazer?
Leonardo Avritzer
Não é
segredo para ninguém que há uma crise de legitimidade do sistema político
brasileiro, tal como ele está organizado. O início do processo eleitoral para
as eleições municipais no Brasil recoloca esse debate. Por que o sistema
político brasileiro tem tão baixa legitimidade e o que fazer para melhorá-la? O
principal motivo pelo qual essa crise existe decorre de uma fortíssima
influência do poder financeiro nas eleições. Da maneira como o sistema de
financiamento de campanha está organizado no Brasil não existe nenhum limite à
influência do poder econômico sobre o sistema político. A falta de uma lista
fechada determinada pelos partidos anula qualquer prioridade no sistema
eleitoral e abre um caminho indiscriminado para que os candidatos mais bem
financiados se tornem os majoritários. Uma vez eleitas, essas pessoas passam a
defender interesses completamente particulares, tentando ou favorecer os
interesses de lobbies específicos ou os próprios interesses individuais. É esse
o caminho para a anulação do sistema de representação de interesses públicos e
o prevalecimento do sistema de representação de interesses privados. Que fazer
para mudar esse sistema?
Duas
questões estão colocadas para a melhora do sistema de representação política no
Brasil: a primeira delas é o estabelecimento de um sistema público de
financiamento de campanha com listas fechadas e financiamento público; e a
segunda é um maior combate à corrupção com a participação da sociedade civil.
Permitam-me elaborar com um pouco mais de vagar ambas as questões.
O
objetivo do processo eleitoral é dar destaque a um debate de ideias que
favoreça a pluralidade dos interesses e valores existentes na sociedade. Cada
vez mais, vivemos sob o signo do pluralismo, isto é, sabemos que os valores e
os interesses dos indivíduos variam e não há como decidir sobre qual é o melhor
valor ou qual é o interesse correto. Nas sociedades plurais o que prevalece é a
diversidade e o sistema político tem que ser capaz de representar essa
diversidade. Esse é o verdadeiro interesse público: a pluralidade valorativa.
Para que essa pluralidade se manifeste no sistema político é necessário ter um
sistema no qual representantes, das mulheres, dos negros, dos grupos
minoritários, dos interesses econômicos mais diversos possam se manifestar
abertamente. Não é isso que ocorre no sistema político brasileiro hoje. Todos
apresentam posições que genericamente são louváveis, por exemplo, a melhoria da
educação, a melhoria da saúde, o apoio à juventude, entre outros. Mas ninguém
representa posições que se diferenciem no sistema político. Os candidatos mais
bem financiados se elegem e somente nesse momento é que fica claro quais
interesses eles, de fato, representam. Essa situação nos coloca no pior dos
mundos: se é para fazer lobby, o ideal é que ele seja aberto e anterior às
eleições. Se é para representar interesses gerais o ideal é que esses sejam
representados antes e depois das eleições. Uma pergunta relevante é: por que os
candidatos não assumem a representação de interesses e valores específicos?
A
resposta a essa pergunta reside no sistema de financiamento de campanha no
Brasil. Ele combina representação de interesses genéricos com financiamento
diferenciado. O candidato que acaba se elegendo é aquele mais bem financiado ou
com uma visibilidade anterior. Os casos são bem conhecidos: Clodovil, Romário
ou Tiririca representam o polo dos candidatos que já são conhecidos. Os outros
se tornam conhecidos na campanha por meio do dinheiro e utilizam a aliança
entre o financiamento e a possibilidade de fazer lobbies depois de eleitos. Um
sistema de financiamento público de campanha com listas fechadas pode ajudar a
resolver esse problema: a lista fechada hierarquiza os candidatos, diminuindo
proporcionalmente o peso do dinheiro nas campanhas. É verdade que ela aumenta o
peso das chamadas burocracias partidárias, mas em partidos bem estruturados e
com personalidades públicas mais conhecidas, esse não é um problema. Não vou
dizer que o interesse público prevaleça no interior dos partidos, mas certamente
prevalece um interesse um pouco menos privado. O financiamento público serve
para impulsionar candidatos menos conhecidos que podem se tornar conhecidos
durante a eleição. É preciso que o sistema político apoie esses candidatos e
que boas causas alcancem o Parlamento. Lista fechada e financiamento público
podem contribuir efetivamente para uma melhoria do sistema eleitoral, tal como
ele está organizado. Mas, enquanto eles não vêm, a questão que se coloca para a
população é desconfiar de campanhas muito ricas ou de candidatos sem propostas
específicas.
Por
último, mais uma vez se coloca a questão do combate à corrupção. Ainda que nós
melhoremos as condições através das quais o interesse público pode se
manifestar no processo eleitoral, é importante perceber que o sistema político
precisa estar submetido às formas de controle público para que se possa
combater abusos e punir os casos de corrupção. Eu tenho defendido a posição de
que nós temos muitos motivos para supor que está melhorando a capacidade do Estado
brasileiro de combater a corrupção. Também temos evidências de que está
diminuindo a impunidade no Brasil. Só para ficar com a conjuntura dessa última
semana, podemos perceber dois fatos absolutamente inéditos na história do
Brasil: o julgamento pelo S.T.F de um conjunto de pessoas que ocuparam posições
de altíssimo escalão no governo federal e a devolução aos cofres públicos de
uma parcela significativa dos recursos desviados na construção do prédio do
T.R.T. de São Paulo. Ambos os fatos são absolutamente inéditos e são
importantes para serem avaliados em perspectiva para pensarmos que o Brasil tem
avançado na maneira como ele lida com a corrupção no sistema político. Não
podemos pensar apenas em melhorar a qualidade do sistema político com uma série
de incentivos para que ele funcione melhor e defenda o interesse da população
em geral. Precisamos também criar uma série de mecanismos para punir aqueles
que se aproveitam do sistema de representação para se apropriar de recursos
públicos. E aqui cabe ressaltar o papel positivo a ser cumprido pela sociedade
civil. Foi a sociedade civil que propôs a ficha limpa que estará em vigor pela
primeira vez nas eleições de 2012. Temos, assim, um cardápio de alternativas
para evitar que os interesses privatistas de espoliação do Estado prevaleçam
mais uma vez. Desde propostas para pensarmos como melhorar o sistema político,
a propostas para pensarmos como punir aqueles que querem se aproveitar do
sistema de representação em benefício próprio. Vale a pena lembrar, no entanto,
que nada substitui a capacidade do eleitor de perceber preventivamente os maus
candidatos e não elegê-los.
Não é
muito bom fazer, ao mesmo tempo, análise política e prescrição. Mas eu diria
que para o eleitor votar com a cabeça no interesse público ele deve ter em
mente três coisas: desconfiar das campanhas que parecem ser muito caras. Em
geral, estas campanhas estão sendo financiadas por fortes interesses privados;
fugir de candidatos que tenham condenações legais anteriores ou muitos
processos na Justiça; em terceiro lugar, buscar candidatos que defendam
interesses e valores específicos de forma corajosa, em vez de repetir
generalidades. Quem votar assim, estará mais próximo de contribuir para a
formação do interesse público.
Leonardo Avritzer – Cientista político e professor da UFMG com
pós-doutorado pelo Massachussets Institute of Technology – 16.09.2012
IN “O Estado de São
Paulo” – http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,limites-ao--poder-sem-limites-,931332,0.htm