O país avançou
extraordinariamente sob o líder morto.
Paulo Nogueira
A
América Latina foi infestada, a partir dos anos 1950, por militares
patrocinados pelos Estados Unidos.
Eles
transformaram a região num monumento abjeto da desigualdade social, e impuseram
com a força das armas sua tirania selvagem e covarde.
Pinochet
foi o maior símbolo desses militares, aos quais os brasileiros não escaparam:
Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo foram capítulos
lastimáveis da história moderna nacional.
Hugo
Chávez rompeu, espetacularmente, com a maldição dos homens de farda a serviço
dos americanos e de uma pequena elite predadora e gananciosa.
Paraquedista
de formação, coronel na patente, Chávez escolheu o lado dos excluídos, dos
miseráveis – e por isso fez história na sua Venezuela, na América Latina
e no mundo contemporâneo.
Chávez
foi filho do Caracaço – a espetacular revolta, em 1989, dos pobres venezuelanos
diante da situação desesperadora a que foram levados na gestão do presidente
Carlos Andrés Perez.
Carne
de cachorro passou a ser consumida em larga escala por famintos que decidiram
dar um basta à iniquidade. A revolta foi esmagada pelo exército venezuelano, e
as mortes segundo alguns chegaram a 3 000.
Uma
ala mais progressista das forças armadas ficou consternada com a forma como
venezuelanos pobres foram reprimidos e assassinados.
Hugo
Chávez, aos 34 anos, pertencia a essa ala.
Algum
tempo depois, ele liderou uma conspiração militar que tentou derrubar uma
classe política desmoralizada, inepta e cuja obra foi um país simplesmente
vergonhoso.
O levante
fracassou. Antes de ser preso, Chávez assumiu toda a responsabilidade pela
trama e instou a seus liderados que depusessem as armas para evitar que sangue
venezuelano fosse vertido copiosamente.
Chávez
aprendeu ali que o caminho mais reto para mudar as coisas na Venezuela era não
o das armas, mas o das urnas.
Carismático
e popular, Chávez se elegeu presidente em 1998. Pela primeira vez na
história recente da Venezuela, um presidente não dobrava a espinha para os
Estados Unidos.
Isso
custou a Chávez a perseguição obstinada de Washington. Mas entre os
venezuelanos pobres – a esmagadora maioria da população – ele virou um quase
santo.
Chávez
comandou projetos sociais – as missiones — que retiraram da
miséria milhões de excluídos. Alfabetizou-os, ofereceu-lhes cuidados
médicos por conta de médicos cubanos – e acima de tudo lhes deu auto-estima. Os
desvalidos tinham enfim um presidente que se interessava por eles.
O
tamanho da popularidade de Chávez pode se medir num fato extraordinário: um
grupo bancado pelos Estados Unidos tentou derrubá-lo em 2002. Mas em dois dias
ele estava de volta ao poder, pela pressão sobretudo, dos mesmos venezuelanos
humildes que tinham protagonizado o Caracaço.
Quanto
ele mudou a Venezuela se percebe pelo fato de que, nas eleições presidenciais
de outubro passado, a oposição colocou em seu programa os projetos sociais
chavistas que, antes, eram combatidos e ridicularizados.
Chávez
teve tempo de pedir aos venezuelanos que apoiassem Nicolas Maduro, seu auxiliar
e amigo mais próximo.
Maduro
provavelmente se baterá, em breve, com Henrique Caprilles, principal nome da
oposição. As pesquisas indicam, inicialmente, vantagem clara para Maduro.
Se o
chavismo sobrevive sem Chávez é uma incógnita. O que parece certo é que a
Venezuela, pós-Chávez, jamais voltará a ser o que foi antes dele – um quintal
dos Estados Unidos administrado por uma minúscula elite que jamais enxergou os
pobres.
Paulo Nogueira – Jornalista -05.03.2013
IN
Blog Diário do Centro do Mundo – http://diariodocentrodomundo.com.br/chavez-fez-a-venezuela-deixar-de-ser-um-quintal-americano/
A demonização de Chávez
Eu
morei nesse país alguns anos e conheci muito bem o que ele era.
Eduardo Galeano
Hugo
Chávez é um demônio. Por quê? Porque alfabetizou 2 milhões de venezuelanos que
não sabiam ler nem escrever, mesmo vivendo em um país detentor da riqueza
natural mais importante do mundo, o petróleo. Eu morei nesse país alguns anos e
conheci muito bem o que ele era. O chamavam de “Venezuela Saudita” por causa do
petróleo. Havia 2 milhões de crianças que não podiam ir à escola porque não
tinham documentos…
Então,
chegou um governo, esse governo diabólico, demoníaco, que faz coisas
elementares, como dizer: “As crianças devem ser aceitas nas escolas com ou sem
documentos”. Aí, caiu o mundo: isso é a prova de que Chávez é um malvado
malvadíssimo.
Já que
ele detém essa riqueza, e com a subida do preço do petróleo graças à guerra do
Iraque, ele quer usá-la para a solidariedade. Quer ajudar os países
sul-americanos, e especialmente Cuba. Cuba envia médicos, ele paga com
petróleo. Mas esses médicos também foram fonte de escândalo.
Dizem
que os médicos venezuelanos estavam furiosos com a presença desses intrusos trabalhando
nos bairros mais pobres. Na época que eu morava lá como correspondente da
Prensa Latina, nunca vi um médico. Agora sim há médicos. A presença dos médicos
cubanos é outra evidência de que Chávez está na Terra só de visita, porque ele
pertence ao inferno.
Então,
quando for ler uma notícia, você deve traduzir tudo. O demonismo tem essa
origem, para justificar a diabólica máquina da morte.
Eduardo Galeano – Escritor e novelista uruguaio - 05.03.2013
Texto escrito em janeiro de 2013-03-06
IN Brasil de Fato – http://www.brasildefato.com.br/node/12186
‘Os quatorze anos de Chávez à frente da
Venezuela trouxeram mais avanços do que
problemas’
Maringoni – (O País avançou) eliminando o
analfabetismo, alavancando programas sociais importantíssimos. A vida melhorou
na Venezuela, o salário mínimo é o melhor da América Latina, corresponde a 1400
reais, mas não consegue dar aquela virada pra fazer o país economicamente
autônomo. Ao mesmo tempo em que entra esse dinheiro (do petróleo), pra instalar
uma empresa, além do problema de câmbio e da propensão a importar, não se tem
um mercado interno forte, que permita, por exemplo, a instalação de uma indústria
automobilística de peso.
Valéria Nader e Gabriel Brito
Hugo
Chávez tem pela frente mais seis anos na presidência da Venezuela, e seu
projeto bolivariano já alcançou duas décadas na direção política do país. Com
um dos processos eleitorais mais polarizados do planeta, a Venezuela segue
sendo analisada por prismas radicalmente opostos, o que obscurece o panorama
para aqueles que não vivem a realidade local.
O
jornalista e professor da Faculdade Cásper Líbero, Gilberto Maringoni, conhecedor da realidade venezuelana e também
autor do livro A Venezuela que se inventa: poder, petróleo e intriga nos tempos
de Chávez, conversou com o Correio sobre este controverso país e seu
presidente. Para ele, a vitória de Chávez ilumina a continuidade de um processo
iniciado justamente em seu triunfo de 1998, no auge do neoliberalismo na
América Latina. Apesar das justas críticas ao burocratismo e centralismo em
torno do mandatário, Maringoni acredita que uma derrota seria desastrosa para o
processo político da região, num momento em que a Venezuela acaba de entrar no
Mercosul, abrindo ótimos mercados para seus parceiros e também ganhando uma
“inédita” chance de avançar rumo a uma maior industrialização.
Quanto
ao centralismo, o entrevistado lembra que o movimento social foi muito
massacrado no país no período anterior, das democracias de fachada do Pacto de
Punto Fijo (1958), tendo sido, de fato, reestruturado de cima pra baixo, tal
como o PSUV (Partido Socialista Unido de Venezuela). Além disso, destaca que a
falta de desenvolvimento industrial e agrícola também acarreta num outro perfil
de classe trabalhadora, dificultando a organização popular e sindical num país
onde os trabalhadores que orbitam o ramo petrolífero são cerca de 0,3% dos 30
milhões de venezuelanos.
No
entanto, Maringoni acredita na continuidade do processo e destaca a figura de
Nicolas Maduro, ex-chanceler e com forte atuação internacional, como uma nova
liderança a despontar na base chavista. E ironiza o histrionismo midiático,
interno e externo, em torno da figura do reeleito, ao afirmar que “a população
venezuelana não lê esses jornais, não concorda com eles e continua votando no
Chávez”.
A
entrevista completa com Gilberto Maringoni pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como você avalia a mais
recente eleição presidencial realizada na Venezuela, no último dia 7 de
outubro, que terminou com vitória de Hugo Chávez sobre Henrique Capriles por
55% x 45% de votos, outorgando ao reeleito mais seis anos no cargo?
Gilberto Maringoni: Embora
o resultado fosse esperado, vide as pesquisas que davam essa vantagem, não
deixa de ser surpreendente que um chefe de governo, após 14 anos no poder, se
reeleja com uma votação percentual semelhante à primeira eleição. Um governo
submetido a todo tipo de pressão, desgaste, turbulência.
Um
governo nacional é uma entidade muito complexa, não depende somente do chefe de
Estado, de um líder, uma figura, mas de toda a ação das políticas públicas,
cotidianamente, na segurança pública, política de energia, enfim, naquilo que
se traduz no conforto, ou não, da vida do cidadão. Acho incrível que tenha
repetido aquele percentual de 1998.
Em
segundo lugar, sua vitória adquire um caráter não só simbólico, mas importante,
porque a primeira vitória do Chávez foi vista como exceção na América Latina no
final daquele período neoliberal dos anos 90. E logo depois tivemos uma série
de eleições na região que colocou nos governos líderes que eram críticos, em
maior ou menor grau, aos caminhos feitos pelos governos neoliberais. De modo
que o Chávez inaugurou uma fase na América Latina, o que se confirma não só por
ele, mas também com a eleição ou reeleição de Mujica, Dilma, Kirchner, Evo,
Correa... Embora não tenham muita identidade entre si, contrapuseram-se ao
neoliberalismo.
Correio da Cidadania: Por outro lado, mesmo
com a vitória de Chávez, tivemos um notório crescimento da direita, agora mais
organizada para o jogo democrático e mais divorciada de tentativas golpistas,
ainda que não completamente. A que se deve essa recuperação, ao menos nas
urnas, da direita do país?
Gilberto Maringoni: Essa
mudança da direita já acontece há alguns anos, não é de hoje. Ela começou a se
organizar em 2007, quando o Chávez perdeu o plebiscito constitucional. Mesmo na
eleição que o Chávez ganhou do Manuel Rosales, a oposição já tinha se
organizado – e com menos condições que hoje. Isso mostra que foi ali que ela
começou a usar tal tática. Porque, entre 2002 e 2005, a tática era desconhecer
o processo institucional inaugurado pela eleição do Chávez, o que queria dizer
não reconhecer a reconstitucionalização do país a partir de 2000.
Assim,
foram para o golpe, tentaram tirar o governo à força, fizeram locautes e
contaram com campanhas difamatórias da mídia interna, controlada pela oposição,
além de enorme parte da mídia comercial mundial. Tentaram desconhecer
resultados eleitorais e, não raro, denunciar o processo em organismos
internacionais, sem efeito. Agora, aderem ao jogo democrático, se organizam e
isso é ótimo para a democracia, coloca o debate de ideias e projetos na ordem
do dia e fecha cada vez mais o espaço à sua tendência de golpismo e também a
suas alas mais afeitas a tal conduta.
O
governo venezuelano recolocar a direita na disputa democrática não é qualquer
coisa. Temos aí o exemplo de Paraguai e Honduras, em que a direita partiu para
o golpe e levou, também vencendo internacionalmente nesses casos e conseguindo
de alguma forma se legitimar.
Correio da Cidadania: Deparar-se com críticas
de campos mais progressistas ao projeto chavista não é algo que ronde muito a
imprensa à qual temos mais acesso, ventríloqua das críticas à direita ao
governo venezuelano. No entanto, com 14 anos à frente do poder, começam a ser
denunciadas, na mídia mais à esquerda, algumas fissuras e desgastes no projeto
e governo chavistas. O que pensa das críticas advindas desses setores, que
acusam, por exemplo, Chávez de barrar a atuação sindical e mais autônoma dos
trabalhadores, abusando do centralismo, e impedindo a formação de novas
lideranças?
Gilberto Maringoni: Sim,
muitas fragilidades vêm à tona. Não estou lá todo dia pra falar melhor, mas o
que sentia é que a Venezuela viveu um processo nos anos 60, 70 e 80 de
repressão ao movimento social, que não se deu de forma tão aberta, pois a
Venezuela não teve ditadura, oficialmente. Atravessou o período com governos
eleitos democraticamente. Mas era uma fachada. Como sabido, desde o Pacto de
Punto Fijo (1958) houve um acordo de dois partidos majoritários que eliminava o
dissenso, eliminava a esquerda e fazia repressão aberta ao movimento social que
se contrapunha ao jogo de carta marcada, cooptando a parte mais dócil desse
movimento social.
Acontece
que a Venezuela chegou à eleição do Chávez com o movimento social totalmente
desarticulado. Esse movimento começou a se reorganizar a partir de sua vitória,
e de cima pra baixo mesmo. A formação do PSUV (Partido Socialista Unido
Venezuelano) e de uma nova central sindical se deram, do mesmo modo, muito de
cima pra baixo. Fica difícil dizer se há todo esse controle, mas se trata de
uma situação de debilidade do movimento sindical também. É muito difícil
organizar uma base social consistente com o grau de ataques feitos aos
movimentos no período anterior. Mas nem acho que seja este o problema mais
grave. O problema sério é a falta de alternância e de liderança, o que não
depende do Chávez querer ou não. Ele até tenta. Agora quem vai para a
vice-presidência é o Nicolas Maduro, que foi uma revelação como ministro das
Relações Exteriores e que talvez seja, na cúpula do chavismo, o quadro político
mais preparado para a sucessão. Existe uma tentativa.
Essa é
uma situação comum em países que passam por tensões sociais muito agudas, como
em Cuba (apesar de a Venezuela não ter passado por revolução), onde a figura do
Fidel Castro, mesmo fora do poder, tem uma preponderância enorme... A população
não vê o Fidel apenas como um líder. Ele é visto como um herói que libertou o
país de uma ditadura se confrontando com o domínio dos EUA, de forma mítica. Na
Venezuela não é muito diferente. O golpe que o Chávez tentou em 1992 se deu
numa situação em que tinha acabado de acontecer a repressão de 1989, o
Caracazo, com 1200 pessoas mortas pelo aparato de segurança. Houve uma rebelião
popular contra o aprofundamento da crise econômica e um governo corrupto, do
Carlos Andrés Perez, que estava desgastado. E aí o Chávez tentou um golpe de
Estado. Não como loucura irresponsável, mas como saída heroica ao país. O
Chávez adquiriu a aura de herói, de quem enfrentou o golpe em 2002, venceu
todos esses enfrentamentos e agora venceu o câncer. Ele tem características
míticas que não permitem que se coloque qualquer um no seu lugar, não é fácil.
Há que
se considerar ainda o fato de a Venezuela ser um país muito menos complexo que
o Brasil, por exemplo. Não tem indústria, só a petroleira. O fato de não ter
indústria não significa apenas que o país não possa produzir bens de consumo
mais sofisticados. As relações entre as classes sociais são muito diferentes.
Não existe uma burguesia venezuelana como no Brasil, com uma classe dominante
industrial, produtiva. As entidades empresariais de lá, e seus líderes, seriam
considerados, com muito boa vontade, médios empresários no Brasil. Porque o
grosso dos ricos venezuelanos vive, ou vivia, em volta da riqueza e indústria
estatais do petróleo. Podemos pensar em algumas redes empresariais, como
telecomunicações, mais fortes, mas são exceção. O Gustavo Cisneros (empresário
com fortuna avaliada em 6 bilhões de dólares e próximo ao ex-presidente Carlos
Andrés Perez) sequer vive na Venezuela, a maior parte de seus investimentos
está nos EUA, espalhada pela América Latina, Ásia, Europa...
Isso
também faz com que não se tenha uma classe operária numerosa. De modo que a
esquerda venezuelana tinha uma grande debilidade, não porque seus militantes
fossem menos heroicos ou aguerridos, mas porque a base social deles era muito
pequena em relação ao conjunto da população. Para se ter ideia, o país tem hoje
30 milhões de habitantes. Na indústria petroleira, trabalham 110 mil pessoas,
direta e indiretamente, cerca de 0,3% da população. Quais são as outras
atividades que existem por lá? Não tem indústria automobilística, de
informática, não tem uma agricultura potente... Estão todos no setor de
comércio e serviços. E nesses setores, vive-se de importações.
Esta é
uma marca das economias petroleiras, não só da Venezuela. Esses países têm
petróleo, que brota do solo, é exportado, muitas vezes sem muito refino. Apesar
de a Venezuela já fazer refino, recebe uma enxurrada de dólares, o que leva à
valorização da moeda nacional. A partir daí, começa-se a importar tudo. É muito
mais barato na Venezuela importar carro, computador, qualquer eletrônico, do
que produzir internamente. Tem dinheiro sobrando. O Celso Furtado, em 1957, foi
quem percebeu esse fenômeno, ao escrever um livro, relançado há poucos anos,
chamado Venezuela: subdesenvolvimento com abundância de capital. Ele
queria dizer que, geralmente, o subdesenvolvimento é associado a uma carência
de capital proveniente de países desenvolvidos. A Venezuela tem muito capital e
não se desenvolve. O dinheiro entra, mas, como não há atividade produtiva
consistente, não tem onde ser investido de forma permanente. Assim, os ricos
mandam esse dinheiro pra fora, ele não fica no país. Por isso o Chávez
estabeleceu como política econômica desses 14 anos a apropriação da riqueza
petroleira, com a formação de um fundo de desenvolvimento e sustento. Parte da
riqueza até pode ficar fora do país pra não valorizar demais a moeda, e essa
riqueza pode ser usada pra desenvolver setores produtivos da economia do país.
Consegue?
Não. Consegue só em algumas áreas. Eliminando o analfabetismo, alavancando
programas sociais importantíssimos. A vida melhorou na Venezuela, o salário
mínimo é o melhor da América Latina, corresponde a 1400 reais, mas não consegue
dar aquela virada pra fazer o país economicamente autônomo. Ao mesmo tempo em
que entra esse dinheiro, pra instalar uma empresa, além do problema de câmbio e
da propensão a importar, não se tem um mercado interno forte, que permita, por
exemplo, a instalação de uma indústria automobilística de peso.
Correio da Cidadania: O que pensa ainda das
críticas do Partido Comunista local, que denuncia uma crescente burocratização
e corrupção do aparelho estatal, e a tolerância com a formação de uma nova
elite econômica, apelidada por eles de “boliburguesia”?
Gilberto Maringoni: São
realidades de qualquer governo. Precisa ver em detalhes. Existe uma burocracia
estatal, onde quem está quer ficar. A burocracia em si não é ruim, o Estado
precisa de uma rotina de iniciativas que tem esse nome, a própria palavra vem
de birô, de escritório. O burocratismo se dá quando a norma, a lógica, a rotina
administrativa, suplantam a necessidade de suprir demandas.
Não
estou acompanhando em detalhes nesses tempos, mas não duvido, é possível. A formação
de uma nova elite não surpreende, o país segue capitalista, ainda não
socialista. No capitalismo, temos a característica da concentração de renda,
com setores detentores de mais renda que outros. Mesmo assim, essa concentração
caiu. É possível que parte dos empresários que presta serviço ao Estado tenha
se beneficiado disso. Mas, pelo que vejo, não é uma norma de governo, apenas
acontece.
Não
estou lá pra ver, na sintonia fina, e ler a imprensa venezuelana não basta. De
lado a lado, não é muito fácil se informar bem, pois a tomada de posições é
muito forte, com a grande polarização que há e muita troca de acusação. A
formação de novas elites econômicas é algo a ser combatido, mas não é estranho
ao processo.
Correio da Cidadania: O “Estado-comunal”, que
consistiria na formação de comunas que teriam ordenamento jurídico e autonomia
política próprios em relação aos estados e municípios, é visto por alguns como
um aprofundamento do poder popular, tal como no caso das ‘misiones’; e, por
outros, como uma reincidência no excesso de centralismo presidencial. Como
encara esta experiência?
Gilberto Maringoni: Essa
proposta comunal já existe há uns quatro anos. O problema da Venezuela é
aumentar a participação popular, incentivar o engajamento social, com o poder
da sociedade exercido de baixo. Isso porque temos problemas com a
institucionalidade burguesa – chamemos pelo nome. Problemas no Judiciário,
câmaras, prefeituras, assembleias legislativas etc. Não sei como isso vem sendo
encaminhado ultimamente, mas, se é pra democratizar a institucionalidade
burguesa, é ótimo. Porque nela nós temos problemas, o poder constituído
funciona autonomamente em relação às demandas da população. A população vota de
dois em dois anos e depois os poderes funcionam sozinhos. Ter um judiciário com
conselhos cidadãos, assim como assembleias e prefeituras com poderes emanando
de baixo, é muito positivo. Não é fácil construir isso, trata-se muito mais de
uma ação de partido, de movimentos, de força política na sociedade, do que de decisão
por decreto. Mas, se a ideia de Estado comunal puder ser concretizada na
Venezuela, é muito bom. Tem que ver como se casa com a democratização da
institucionalidade burguesa realmente existente.
Correio da Cidadania: As críticas
progressistas ao governo chavista – tido como uma das poucas experiências
autenticamente soberanas na América Latina - remetem, de um certo modo, ao
próprio senso crítico mais à esquerda relativo ao governo Lula/Dilma, ambos
enfatizando as insuficiências de um projeto de desenvolvimento basicamente
assistencialista, incapaz de conduzir a uma efetiva emancipação e distribuição
da renda nacional. O que diria frente a esta analogia?
Gilberto Maringoni: Não
se trata de assistencialismo, essa é a maneira com que a direita chama qualquer
distribuição de renda: “assistencial”, “paternalista”, “populista” etc. Não é
bem assim, o aumento de salário mínimo na Venezuela é pra todos, direito
universal. Os direitos reconhecidos das minorias são universais. Não tem essa
de assistencialismo. Depara-se com um processo de transformação, de aumento de
emprego mesmo sem industrialização, mas com serviços, incentivo à pequena
empresa, financiamento a pequenas iniciativas, empreendedorismo popular, coisas
muito importantes.
Assistencialismo
é o seguinte: o governo dar uma mesada pro pessoal não fazer nada. Isso não
existe, nem o Bolsa-Família é assim. Há um processo de conquista social muito
acentuado na Venezuela, que vem se dando num momento difícil do mundo, de crise
econômica, do capitalismo e do neoliberalismo, de agressão do imperialismo, que
já tentou e não conseguiu derrubar o Chávez.
As
críticas existem, devem ser feitas, há burocratismo, há problema na execução de
recursos públicos, mas isso é parte de um processo formador nada fácil de ser
tocado nos tempos que correm e num país sem autonomia industrial, como é o caso
da Venezuela.
Correio da Cidadania: O que pensa da
aproximação de Chávez com o presidente colombiano Juan Manuel Santos?
Gilberto Maringoni: A
aproximação do Chávez com o Santos é uma política de Estado, não de partido.
Ele não pode só bater num país que, ao lado do Brasil, tem a maior fronteira
com a Venezuela, um país que tem essa fronteira desguarnecida e um intenso
comércio bilateral, crescente nos últimos anos. A aproximação é positiva.
É
preciso dizer que o Juan Manuel Santos não é o Álvaro Uribe. O Uribe fez um
governo mais à direita. Os dois são do espectro da direita, mas Uribe era o
governo do tacape, do enfrentamento pesadíssimo contra as FARC e também de
enfrentamento aberto ao governo Chávez. Era o governo do Plano Colômbia,
governo que recebeu bilhões de dólares, muita coisa pra um país daquele
tamanho, para um plano de defesa inexplicável. Um plano de defesa que colocava
nove bases militares dos EUA no país, para pouso de aviões bombardeiros,
cargueiros etc., tornando o país quase um protetorado estadunidense.
O
Santos não só deixou de ir adiante com o Plano Colômbia, como deixou de fazer
uma política agressiva contra a Venezuela, como o Uribe fez. Com Uribe, era
quase declaração de guerra. O Santos, mesmo sendo de direita, procurou o
caminho da convivência política mais pacífica. Quem tem de resolver os
problemas do governo colombiano é a população colombiana, a correlação de
forças internas, não tem por que o Chávez entrar nesse combate. Juan Manuel
Santos mostrou querer uma convivência pacífica e até chamou o Chávez para
ajudar nas negociações com as FARCs.
Correio da Cidadania: Quanto à entrada do
país no MERCOSUL, qual a sua avaliação?
Gilberto Maringoni: A
entrada da Venezuela no Mercosul talvez seja o acontecimento político-econômico
mais importante do continente nos últimos anos. Isso porque expande o Mercosul
de forma inédita. O órgão foi criado nos anos 90, na época do governo Collor,
com apenas quatro países (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai), no momento de
auge do neoliberalismo. A autonomia do MERCOSUL, não só como mercado, mas como
área de intercâmbio político, cultural e social, era nula. Era um projeto 100%
neoliberal. Mas o Mercosul vem mudando, não à toa vem sendo combatido por certa
direita do continente.
De
toda forma, tornou-se um mercado espetacular. Abrir um mercado consumidor como
a Venezuela interessa para o empresariado de países como Brasil e Argentina. E
abre também, pela primeira vez, a chance de a Venezuela ser um mercado não só
de petróleo, mas que se expanda, com isenções aduaneiras e desenvolvimento de
novos mercados, implantando novas indústrias internamente. É um mercado
monstruoso em termos de população e PIB.
No
meio disso, tinha a saída do Paraguai fazendo ruído. Por que eles eram contra a
Venezuela no Mercosul? Era um problema meramente político-ideológico, porque ao
Brasil (mais) e à Argentina (menos), países mais desenvolvidos, interessava a
entrada da Venezuela - o comércio entre Brasil e Venezuela cresceu sete vezes
entre 2002 e 2012. E o Brasil tem muita a coisa a vender, leite, frango, gado,
aviões, automóveis, assim como a Argentina. O Paraguai não tem nada pra vender
pra eles, por isso pôde ser a ponta de lança dos interesses dos EUA dentro do
bloco, sendo efetivamente o único país a se contrapor à entrada da Venezuela.
O PIB
da Venezuela, agora incorporado ao Mercosul, é de 320 bilhões de dólares,
fantástico, sendo um país de mercado interno crescente. Com 30 milhões de venezuelanos,
passa-se a ter uma população total nos países do bloco de mais de 300 milhões,
cadeias produtivas, como de energia e indústria, mais completas. Tanto que
vários países querem fazer acordos de livre comércio na região. Não só Peru e
Chile querem ser parceiros, mas também países como Israel, Egito... É uma área
que não foi derrubada profundamente pela crise internacional, como Europa e
EUA. Os outros países da região têm muito a ganhar. Já o Paraguai, ao dar o
golpe de Estado, rompeu com a cláusula de Ushuaia, que determinava a não
participação de países que tenham quebrado seu processo democrático.
Correio da Cidadania: Consumada, de todo
modo, a vitória chavista, o que o governo precisaria levar adiante para
conseguir conter o avanço da direita e aprofundar seu “socialismo do século
21”, dinamizando essa economia gritantemente dependente da renda petrolífera?
Gilberto Maringoni: É
difícil dar uma fórmula do que precisa ser feito. Acho que eles estão agindo. A
fase é de uma disputa política concreta, melhorando o acesso a recursos
públicos, mas fazendo a batalha de ideias. A oposição foi pra batalha de
ideias, ganhou grandes setores da classe média, ganhou espaço entre os
pobres... Não dá pra dizer que Capriles teve 45% de votos só com base na classe
média e na burguesia. Não. Essa é a questão séria: analisar o perfil dos
eleitores e fazer o debate nacional.
Não
tenho nenhuma dúvida que é muito bom o Chávez falar de socialismo político do
século 21, como parte da luta política, exaltando um valor de uma sociedade que
não seja comandada pelo mercado. Na prática, o que ele tem feito, e é muito
bom, foi tomar a frente dos mecanismos de planejamento e controle econômico do
Estado, com uma correspondência com o nacional-desenvolvimentismo, apesar de este
ser um conceito de outra época. Mas tem muito a ver com a ideia de Estado
forte, que possa suprir as necessidades de serviços públicos da população com
razoável competência e dinamismo.
Correio da Cidadania: Como coloca,
finalmente, esse pleito no xadrez político latino-americano? Qual seu grau de
representatividade neste momento?
Gilberto Maringoni: Fiquei
pensando no oposto, o que seria se ele perdesse. Seria um desastre. Acredito
que a vitória de Chávez joga continuidade nesse ciclo, mas a Venezuela precisa,
pela riqueza do processo político, de novas lideranças para assumirem o lugar
do Chávez, que não ficará pra sempre. Se sua doença tivesse se agravado, o país
teria problemas nesse sentido, de escolha do sucessor. Mas sua vitória dá luz a
um processo de mudança na América latina, que começou com a própria eleição
dele em 1998.
Correio da Cidadania: Gostaria de acrescentar
algo, especialmente no que se refere ao tratamento midiático dessa disputa,
tanto dentro como fora da Venezuela?
Gilberto Maringoni: Li um
artigo no Estado de S. Paulo, traduzido do NY Times, em que o colunista dizia
que a vitória do Chávez era o início do fim do chavismo. Fui ler para saber por
que, e era incrível: quarta vitória presidencial do Chávez, num processo de 14
anos, que se mantém, e ele analisa que o crescimento da oposição é o dado mais
importante. Claro que este crescimento é um dado importante, não vamos
subestimar. Mas o tratamento da matéria é aquele que sempre tende a distorcer,
a colocar o governo de Chávez como um governo ditatorial, autoritário.
Há mil
problemas, começando por essa necessária renovação das lideranças, pela
conformação de um movimento social autônomo frente ao governo, que não seja
controlado de cima pra baixo, pelo melhor manejo de recursos públicos... Tudo
isso é verdade, mas os passos que se deram nesses 14 anos são
impressionantemente maiores que os defeitos do governo. E foram passos dados
num momento difícil da política mundial, com a Europa inteira tomada por
governos de direita, as tensões dos EUA, invadindo Afeganistão, Iraque, jogando
peso na invasão da Líbia e ameaçando a Síria e o Irã... O poder bélico da
direita mundial nunca foi tão grande, assim como a crise econômica dessa
direita. E a Venezuela deu a volta por cima, o que não é pouco.
O
segredo de fazer política, na imprensa tendenciosa, é exaltar as próprias
qualidades e os defeitos dos oponentes. Assim é muito fácil. Todo mundo tem
defeitos e qualidades. Se eu exalto minhas virtudes e os seus defeitos, pronto.
Aos olhos da opinião pública, com todo esse aparato midiático, é o que vale. O
noticiário da Globo, Estadão, Folha é isso, não é surpresa. Mas eles não
conseguem mais o que faziam há 10 anos, quando o golpe de Estado na Venezuela
foi uma surpresa para os órgãos daqui. Agora eles têm correspondentes lá, um
maior intercâmbio. Mas a cobertura continua tendenciosa. Fazer o quê? Eles
tocam a vida assim. A população venezuelana não lê esses jornais, não concorda
com eles e continua votando no Chávez.
Valéria Nader - Economista
e jornalista, é editora do Correio da Cidadania;
Gabriel Brito – Jornalista;
Gilberto Maringoni – Professor de Relações Internacionais da UFABC aprovado em concurso público no final de 2012.
Entrevista realizada em 26.10.2012
IN
Correio da Cidadania – http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=7774