Seja qual for a estratégia
adotada - liderança das exportações ou preeminência do mercado interno - os
casos bem sucedidos de avanço industrial e produtivo na dita "era da
globalização" têm um traço comum: intencionalidade e coordenação pública.
Luiz Gonzaga Beluzzo
Relembrando: durante todo o pós-guerra, até a crise da dívida externa de
1982, o Brasil manteve um ritmo acelerado de crescimento econômico. Entre 1947
e 1980 o PIB cresceu em média 7,1%, uma marca não igualada, no período, nem
mesmo pelo Japão ou pelos celebrados Tigres asiáticos.
Comparado a esta "era de alto crescimento" o desempenho
econômico dos últimos 35 anos tem sido sofrível. Perde, por exemplo, para a
"recessão" que apareceu entre 1962 e 1967, nos anos de crise e
estabilização, em que a economia cresceu miseravelmente para os padrões da
época: apenas 3,2% ao ano.
A perda de dinamismo da industrialização brasileira provocou, no início
dos anos 90, uma reação estremada nas hostes liberais: abrir a economia e expor
os empresários letárgicos aos ares benfazejos da globalização. O silogismo em
que se desdobra a premissa é grotesco em sua simplicidade: se a indústria
brasileira perdeu a capacidade de investir ou de se modernizar, a solução é
submeter a incompetente à disciplina da concorrência externa.
Quase todos concordam que se esgotaram as formas de financiamento, de
incentivos e de proteção, responsáveis pela sustentação do desenvolvimento
industrial brasileiro ao longo de mais de cinco décadas. Custa muito trabalho,
além de imaginação, construir as novas instituições financeiras, pensar na
reforma fiscal, enfim dar tratos à bola para estabelecer uma nova relação entre
o Estado e o setor privado.
Um estudo encomendado pela União Europeia revela aspectos importantes do
processo de internacionalização dos anos 90 e 2000: 1) nos países em
desenvolvimento, os benefícios do investimento estrangeiro - tais como absorção
de tecnologia, adensamento de cadeias industriais, crescimento das exportações
- dependeram das políticas nacionais; 2) os países em desenvolvimento que
cresceram mais e exportaram melhor foram os que conseguiram administrar uma
combinação favorável entre câmbio desvalorizado e juros baixos.
Na era da arrancada chinesa, é superstição acreditar que a abertura
financeira e a exposição pura e simples do setor industrial à concorrência
externa são capazes de promover a modernização tecnológica e os ganhos de
competitividade. Os estudos mais especializados e aprofundados sobre o tema
mostram que a concorrência nos mercados contemporâneos está marcada por
características que não guardam qualquer semelhança com as crendices
simplificadoras das vantagens comparativas.
Até mesmo os estudiosos conservadores reconhecem a existência de
economias de escala e de escopo, economias externas, estratégias de ocupação e
diversificação dos mercados, conglomeração e acordos de cooperação. Neste jogo
só entra quem tem cacife tecnológico, poder financeiro e amparo político dos
Estados nacionais. O resto está na arquibancada batendo palmas.
Estas características essenciais da concorrência e do comportamento das
empresas, sobretudo na área industrial, estão completamente ausentes das
elucubrações dos que pretendem nos ensinar as virtudes milagrosas do
curandeirismo que aspira foros de ciência.
Algumas correntes de opinião cultivam com esmero o hábito de ignorar a
experiência alheia e, pior, tratam de desqualificar e desfigurar o seu próprio
passado, quando não se empenham denodadamente em promover o seu completo
esquecimento.
Não há exemplo nos países periféricos \- aí incluídos o Chile e os
"Tigres Asiáticos", a China, de renúncia a políticas deliberadas de
reestruturação produtiva ou de estímulo à modernização e à conquista de
mercados. Seja qual for a estratégia adotada - liderança das exportações ou
preeminência do mercado interno - os casos bem sucedidos de avanço industrial e
produtivo na dita "era da globalização" têm um traço comum:
intencionalidade e coordenação pública.
É insensato subestimar os efeitos causados pelas mudanças da geoeconomia
mundial: a expansão sino-asiática vai continuar ameaçando as estruturas
industriais do Velho e do Novo Mundo. As políticas asiáticas de promoção e
integração industrial estão alicerçadas em ganhos expressivos nas relações
produtividade/salário e salário/câmbio na manufatura. Esse processo é amparado
por um sistema de crédito voltado para o investimento manufatureiro privado e
para a sustentação dos programas públicos de gastos em infraestrutura.
A despeito da crise global e da inevitável desaceleração chinesa, o
estilo de desenvolvimento sino-asiático vai prosseguir em seus trabalhos de
ganhar a dianteira na porfia competitiva global. Não é por desvio ideológico ou
coisa parecida que as medidas protecionistas se espalham e se aprofundam
silenciosamente no mundo inteiro, enquanto os adeptos das teorias das vantagens
comparativas se lamentam, entre gemidos e murmúrios. Nessas circunstâncias, a
valorização cambial é um erro grave, assim como a hesitação em promover
políticas adequadas de defesa comercial e de estímulo às exportações.
Em artigo escrito com Júlio Sérgio Gomes de Almeida sugeri que a falsa
inserção competitiva da economia brasileira está cobrando o seu preço. Falsa,
porque as políticas dos anos 90 entendiam que bastava expor a economia à
concorrência externa e privatizar para lograr ganhos de eficiência micro e
macro econômicas. Percorremos o caminho inverso dos asiáticos que abriram a
economia para as importações redutoras de custos. A abertura estava, portanto,
comprometida com os ganhos de produtividade voltado para aumento das
exportações. As relações importações/exportações faziam parte das políticas
industriais, ou seja, do projeto que combinava o avanço das grandes empresas
nacionais nos mercados globais e a proteção do mercado interno. As importações
não tinham o objetivo de abastecer o consumo das populações. Estas se
beneficiaram, sim, dos ganhos de produtividade e da diferenciação da estrutura
produtiva assentada em elevadas taxas de investimento.
Luiz Gonzaga Belluzzo – Ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é
professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e escreve mensalmente às
terças-feiras. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas
heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists. – 04.09.2012
IN
“Valor” -
http://www.valor.com.br/opiniao/2816014/industria-em-perigo