Sob a perspectiva da
urgente retomada de um projeto de profunda e efetiva transformação social no
Brasil, gostaríamos de discutir algumas interpretações e as principais objeções
que uma parte das esquerdas brasileiras tem feito às reivindicações baseadas
nos direitos humanos
Deisy
Ventura e Rossana Rocha Reis
Entre os anos 1960 e 1980, numa América Latina
esmagada por regimes ditatoriais, grande parte das esquerdas abraçou o discurso
e a pauta dos direitos humanos. Em incontáveis casos, os direitos humanos foram
o fulcro de movimentos e ações autoproclamadas esquerdistas. Retomada a
democracia, o gozo dos direitos civis e políticos tornou possível que
personagens, grupos e partidos identificados com esse campo chegassem ao
governo em diversos Estados latino-americanos. Atualmente, o exercício do poder
suscita questões sobre a concepção de direitos humanos tanto daesquerda que
governacomo da esquerda que defende incondicionalmente esses governos, embora
amiúde obnubilada em larguíssimas coalizões.
O objetivo deste artigo é refletir sobre a
interação entre os direitos humanos e a política no Brasil de hoje. As críticas
ao governo pautadas pelos direitos humanos têm merecido uma virulenta reação.
Pululam as contradições não apenas entre discurso e prática, mas também dentro dos
próprios discursos, e entre certas práticas. É como se um projeto de
transformação social prescindisse ou, em alguns casos, fosse considerado até
mesmo incompatível com a garantia de certos direitos, paulatinamente
convertidos em estorvos. Quem cobra do governo federal o respeito aos direitos
humanos é acusado de fazer o jogo da oposição, supostamente pondo em risco um
“projeto maior”. Argumentos conjunturais como os de que faltam os meios
ou o momento não é oportuno para sua efetivação, confundem-se, a cada dia mais,
com a minimização da importância dos direitos humanos.
Em resposta a mobilizações como as relacionadas à
hidrelétrica de Belo Monte e aos índios Guarani-Kaiowá, entre outros episódios
recentes, um número inquietante de autoridades governamentais não tem hesitado
em difundir argumentos gravemente equivocados sobre direitos humanos, com
efeitos nefastos não apenas sobre a agenda política, mas também sobre a opinião
pública. Sob a perspectiva da urgente retomada de um projeto de profunda e efetiva
transformação social no Brasil, gostaríamos de discutir algumas interpretações
e as principais objeções que uma parte das esquerdas brasileiras tem feito às
reivindicações baseadas nos direitos humanos.
Os direitos humanos são burgueses. A relação
entre a esquerda e os direitos humanos foi marcada pela interpretação oferecida
por Karl Marx, principalmente em Sobre a questão judaica (1843),a
propósito dos processos de construção da cidadania moderna. Para Marx, o
reconhecimento da igualdade formal (jurídico-política) do indivíduo não é
suficiente para a realização do ideal de emancipação humana almejado pelo
socialismo. A afirmação de um direito natural tal qual expresso nas Declarações
de Direitos Humanos seria, assim, a consagração do homem egoísta e do interesse
privado. No entanto, avaliar a conjuntura atual pinçando da obra de Marx apenas
sua concepção de direitos humanos, sem levar em conta sua crítica ao direito em
geral, à política em si e, sobretudo, à existência do Estado, configura um
reducionismo imperdoável, se não uma espécie de marxismo à la carte. Por
outro lado, a emancipação humana, tal como imaginada por Marx, depende de
mudanças estruturais, certamente inalcançáveis por meio de uma pauta adstrita
aos direitos humanos. Contudo, essa constatação não diminui a importância
histórica e tangível dos direitos humanos em processos emancipatórios. Se “o
homem é um ser que esquece”, como diz um antigo provérbio, é preciso reiterar o
que a história recente do Brasil e da América Latina nos ensina: a importância
da emancipação civil e política na luta pela transformação da sociedade e da
economia. É claro que os direitos humanos não são, nem devem ser, o objetivo
final das esquerdas. Entretanto, nenhum sistema político pelo qual vale a pena
lutar pode prescindir do respeito à dignidade humana e do feixe de direitos que
dela deriva. Ademais, desafiada pela complexidade do presente, a esquerda não
pode ser condenada a uma percepção de direitos humanos do século XIX.
Os direitos humanos são uma invenção ocidental, e a
política de direitos humanos no plano internacional é uma forma de
imperialismo. Embora a perspectiva do respeito à dignidade humana exista em
diversas culturas e épocas, é indiscutível que a noção moderna de direitos
humanos, base das normas internacionais nessa matéria, tem suas raízes
intelectuais no Iluminismo, na Revolução Francesa e na independência
norte-americana. Porém, o sentido de um conjunto de ideias não pode ser
limitado ao contexto no qual ele foi produzido. Ao longo dos séculos, o
conceito da igual dignidade dos indivíduos em liberdades e direitos mobilizou,
no mundo inteiro, grupos e agendas muito diversificados. A revolução que levou
à independência haitiana, por exemplo, não apenas reproduziu, mas reinterpretou
e acrescentou direitos à Carta de Direitos do Homem e do Cidadão. Da mesma
maneira, o movimento feminista, execrado pelos revolucionários franceses,
valeu-se dos termos da Carta para formular suas demandas; e a Constituição
mexicana de 1917 e os movimentos de libertação nacional e de reconhecimento de
direitos coletivos apropriaram-se da ideia de direitos humanos e expandiram seu
significado. Portanto, sua origem histórica e cultural não deve ser vista como
um pecado original, já que não impediu a emergência de direitos que podem
fundamentar a própria resistência às diferentes formas de imperialismo.
Incorporar a agenda de direitos humanos na política
externa seria fazer o jogo dos Estados Unidos nas relações internacionais. Os
Estados Unidos são grandes objetores e violadores do direito internacional. Por
exemplo, lutaram contra a aprovação do Estatuto de Roma, que criou o Tribunal
Penal Internacional; e, descumprindo promessas, mantêm aberta a base de
Guantánamo, em Cuba. A instrumentalização do discurso dos direitos humanos por
Washington, uma das marcas da Guerra Fria, confirmou sua atualidade, entre
outros, nos casos das intervenções no Iraque e no Afeganistão. Na Líbia, em
2011, “a comunidade internacional” teria recorrido à intervenção militar a fim
de “evitar o massacre” da população civil por um cruel ditador, um aliado do
Ocidente frescamente descartado. O uso da força foi então autorizado pelo
Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, com base no princípio
da “responsabilidade de proteger”. Trata-se de uma nova forma jurídica do
antigo direito de ingerência, ampla o suficiente para derrubar o governo da
Líbia e omitir-se diante do linchamento de Muamar Kadafi, ao mesmo tempo que dá
guarida a graves violações de direitos humanos no Barein, na Síria e no Iêmen.
Segundo o presidente Barack Obama, os Estados Unidos devem intervir, coletiva
ou unilateralmente, quando seus “interesses e valores” forem ameaçados, sem
preocupação com a coerência. O que prevalece é o interesse na preservação das
zonas de influência, em detrimento de qualquer concepção de direitos humanos.
Logo, para o Brasil, descartar o respeito aos direitos humanos como critério de
sua política externa jamais constituiria uma forma de oposição à hegemonia dos
Estados Unidos. É preciso opor-se aos atos, não aos pretextos.
A Organização dos Estados Americanos (OEA) praticou
uma ingerência inaceitável nos assuntos internos brasileiros no caso Belo
Monte. A oposição à construção da usina é promovida pelos Estados Unidos.
O recente ataque do governo federal ao sistema interamericano de proteção dos
direitos humanos foi um desserviço às gerações futuras. Não se pode confundir a
OEA com a Comissão ou a Corte interamericanas, e ainda menos com os Estados
Unidos, que jamais aceitaram a Convenção Americana dos Direitos do Homem. A
oposição à hidrelétrica de Belo Monte é legítima e genuinamente brasileira,
vinculada à luta histórica pelos direitos dos povos indígenas e pela
preservação do meio ambiente. Ainda que imperfeitos, os mecanismos regionais de
proteção aos direitos humanos são uma grande conquista dos povos, salvaguarda
indispensável diante do autoritarismo que segue assombrando nosso continente.
Os recentes golpes impunes em Honduras e no Paraguai, ambos avalizados pelos
Estados Unidos, demonstram que os mecanismos regionais precisam ser
valorizados.
Impor condicionalidades em termos de respeito aos
direitos humanos e ao meio ambiente nos empréstimos concedidos pelo governo brasileiro
a outros países é um tipo insuportável de interferência e uma forma de
imperialismo. Na década de 1970, uma importante conquista da sociedade
norte-americana foi a exigência de que os países beneficiados por empréstimos
respeitassem determinados padrões de cumprimento de direitos humanos. Essa
medida teve um impacto importante nas relações entre os Estados Unidos e as
ditaduras latino-americanas, corroendo a sustentação interna da política
norte-americana de apoio aos regimes autoritários e impondo constrangimentos ao
Executivo. No contexto atual, em que bancos e agências do Estado brasileiro se
tornam importantes fontes de financiamento de obras de infraestrutura na
América Latina, é importante que os empréstimos concedidos e os acordos de cooperação
incorporem a exigência de respeito aos direitos humanos. Longe de ser uma forma
de ingerência, trata-se de garantir que o dinheiro dos contribuintes
brasileiros não seja utilizado para financiar intervenções que comprometam a
dignidade das populações envolvidas. Conceder financiamentos sem compromisso
com a promoção de direitos é uma característica fundamental do mercado, não do
Estado, necessariamente submetido ao interesse público.
Direitos civis e políticos são de direita, direitos
econômicos e sociais são de esquerda. Os direitos humanos são, na verdade,
indivisíveis. Longe de ser uma formalidade vazia, a afirmação da
indivisibilidade é uma forma de proteção dos indivíduos contra a seletividade
dos Estados. A identificação de alguns direitos com a direita e de outros com a
esquerda, embora guarde relação com a geopolítica da Guerra Fria, aproxima-se
perigosamente da justificativa apresentada pelos generais-presidentes
brasileiros aos organismos internacionais, quando interpelados sobre as
frequentes violações cometidas em nome da segurança nacional. Para eles, os
avanços na área de saneamento básico, habitação e saúde constituíam a política
brasileira de direitos humanos, enquanto as denúncias sobre torturas, prisões
arbitrárias, assassinatos e desaparecimentos faziam parte de um complô
comunista mundial.
O desenvolvimento é mais importante para as pessoas
do que o respeito aos direitos humanos. Em um mundo com recursos materiais e
humanos limitados, existem muitas escolhas difíceis a fazer. As exigências em
relação a um governo vão muito além daquelas colocada pela pauta dos direitos
humanos. No atual contexto de crise econômica mundial, com perspectivas de
agravamento, o tema do desenvolvimento adquire importância renovada, e é
natural que assim seja. Entretanto, o contexto econômico não pode servir de
justificativa para o atropelamento de direitos humanos, sob pena de produzir,
mais uma vez, um crescimento econômico que não se traduz em uma melhora real e
equitativa do panorama social brasileiro. Nós já tivemos, no Brasil,
desenvolvimento sem respeito aos direitos humanos. Não foi bom para as
esquerdas.
O combate à miséria é a forma mais efetiva de
combater a violação dos direitos humanos. O combate à miséria é parte
fundamental de uma política de direitos humanos. Mais do que isso, podemos
afirmar que, sem uma política de erradicação da miséria, a promoção dos
direitos humanos está fadada ao fracasso. No entanto, ela não é suficiente para
garantir a observância dos direitos humanos. Infelizmente, o conjunto de
desigualdades que afetam a dignidade dos indivíduos em nosso país é muito mais
amplo. Iniquidades e discriminações que envolvem questões de gênero, cor,
orientação sexual, regionalismo e xenofobia exigem ações específicas. Uma
sociedade menos desigual em termos econômicos não é sinônimo de uma sociedade
que respeita igualmente os direitos humanos de todos os seus cidadãos. Quando a
inclusão social se opera essencialmente pelo aumento do consumo, toda sorte de
egoísmo pode ser favorecida.
O respeito aos direitos humanos é uma etapa já
conquistada no Brasil. Atualmente, nosso problema seria a falta de meios, não a
falta de consenso em relação aos princípios. Esperava-se que os direitos
humanos alcançassem lugar de destaque na agenda política pós-redemocratização.
Seria o momento de generalizar o acesso a esses direitos (prioridade de
investimento em políticas sociais) e de afirmar a cultura dos direitos (os bens
da vida não constituem privilégios de alguns, nem assistencialismo). Porém,
grande parte da população brasileira acredita piamente que os direitos humanos
são o maior obstáculo à sua segurança. A vulnerabilidade fala mais alto do que
a cidadania. A erosão da perspectiva dos direitos é evidente em nosso tempo, e
não apenas no Brasil. Cresce o respaldo eleitoral de grupos e partidos que
militam abertamente contra direitos fundamentais já consagrados por lei. É
chocante a maneira leviana com que temas como a tortura, o aborto ou a
sexualidade, entre tantos outros, têm sido discutidos nos períodos eleitorais.
Cresce também a estapafúrdia naturalização das alianças com esses grupos. É
preciso reconhecer que a defesa incondicional dos direitos humanos está
ameaçada nas campanhas e nos programas de governos de candidatos das esquerdas,
mas, sobretudo, em suas gestões.
Por fim, um projeto de transformação da sociedade
brasileira com vista à emancipação humana não pode prescindir da luta pelos
direitos humanos. Há valores e parâmetros éticos – como o reconhecimento e o
respeito pelas especificidades e pelas diferenças étnicas, de gênero e
orientação sexual – que não podem ser negociados ou plebiscitados, seja em nome
da democracia, do desenvolvimento ou de um suposto anti-imperialismo. Uma
agenda positiva de direitos humanos deve estabelecer mínimos denominadores para
a ação política. No momento em que os valores de mercado avançam sobre todos os
governos, este talvez seja, ainda que temporariamente, nosso “projeto maior”.
Deisy Ventura – Professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de
São Paulo, IRI-USP; Rossana Rocha Reis – Professora do Departamento de Ciência
Política e do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo
– Janeiro 2013
IN Le Monde Diplomatique Brasil – http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1338