domingo, 29 de setembro de 2013

"Eu, presidente da Bolívia, sequestrado em um aeroporto europeu"


A revelação, por Edward Snowden, do caráter tentacular da espionagem norte-americana não suscitou nada além de reações cautelosas dos dirigentes europeus, os quais, pelo contrário, não hesitaram em cercar o avião do presidente boliviano Evo Morales, suspeito de transportar o técnico em informática fugitivo.

Evo Morales
No dia 2 de julho, ocorreu um dos episódios mais insólitos da história do direito internacional: a proibição do avião presidencial do Estado Plurinacional da Bolívia de sobrevoar os territórios francês, espanhol, italiano e português, e, em seguida, meu sequestro no aeroporto de Viena (Áustria), durante catorze horas. Algumas semanas depois, esse atentado contra a vida de membros de uma delegação oficial, cometido por Estados reputados por sua democracia e respeito às leis, continua a provocar indignação: abundam as condenações de cidadãos, organizações sociais, organismos internacionais e governos do mundo todo.
O que ocorreu? Eu estava em Moscou, alguns instantes antes do início de uma reunião com o presidente Vladimir Putin, quando um assistente me alertou sobre algumas dificuldades técnicas: seria impossível chegar a Portugal, como previsto inicialmente. Contudo, quando terminou minha reunião com o chefe de Estado russo, já estava claro que o problema não tinha nada de técnico.
Desde La Paz, nosso ministro de Relações Exteriores, David Choquehuanca, conseguiu organizar uma alternativa de voo com escala em Las Palmas de Gran Canaria, na Espanha, e validou o novo trajeto. Tudo parecia em ordem, até que, quando estávamos no ar, o coronel de aviação Celiar Arispe, comandante do Grupo Aéreo Presidencial e piloto na ocasião, veio até a cabine para conversar comigo. “Paris retirou a autorização de sobrevoo! Não poderemos penetrar no espaço aéreo francês.” Sua surpresa era menor do que sua preocupação: estávamos a ponto de passar sobre a França.
Poderíamos tentar retornar à Rússia, mas corríamos o risco de ficar sem gasolina. Diante dessa situação, o coronel Arispe contatou a torre de controle do aeroporto de Viena solicitando autorização para uma aterrissagem de urgência. Agradecemos às autoridades austríacas o sinal verde.
Instalado em um pequeno escritório colocado à minha disposição no aeroporto, conversava com meu vice-presidente, Álvaro García Linera, e Choquehuanca para decidir como proceder e, principalmente, tentar compreender as razões da decisão francesa – já que o piloto me informou também que tentara autorização da Itália para sobrevoar seu espaço aéreo e esta igualmente havia sido recusada.
Foi nesse momento que recebi a visita do embaixador da Espanha na Áustria, Alberto Carnero. Ele anunciou que um novo plano de voo acabara de ser aprovado pelo espaço aéreo espanhol. A única coisa, explicou o embaixador, é que seria preciso, antes, inspecionar o avião presidencial. Era uma condição sine qua non para podermos partir rumo a Las Palmas de Gran Canaria.
Quando questionei as razões dessa exigência, Carnero evocou o nome de Edward Snowden, o funcionário de uma empresa norte-americana contratada por Washington para realizar alguns serviços de inteligência terceirizados. Respondi que o conhecia apenas por notícias publicadas em meios de comunicação e recordei ao diplomata espanhol que meu país respeitava as convenções internacionais: em nenhuma circunstância eu levaria alguém clandestinamente para a Bolívia.
Carnero manteve-se em contato permanente com o subsecretário de Relações Exteriores espanhol, Rafael Mendívil Peydro, que, com toda a propriedade, orientava o embaixador a insistir. “Você não tem o direito de inspecionar esse avião. Se você não acredita no que digo, é porque está tratando o presidente do Estado soberano da Bolívia como mentiroso”, insisti de minha parte. O diplomata saiu novamente para escutar as orientações de seu superior, antes de retornar à sala. Ele me pediu, então, que o convidasse a “tomar um cafezinho” no avião. “Você está me tomando por um delinquente?”, perguntei. “Se você insistir em penetrar nesse avião, terá de fazê-lo pelo uso da força. E eu não resistirei a uma operação militar ou policial: não tenho meios para isso”.
Temeroso, o embaixador descartou a opção da força, não sem precisar que, naquelas condições, ele não poderia autorizar nosso plano de voo: “Às nove horas da manhã, indicaremos se você poderá ou não partir. Daqui até lá, vamos discutir o tema com nossos amigos”, explicou. “Amigos? Mas quem são esses ‘amigos’ da Espanha aos quais você se refere? A França e a Itália, certo?” Ele se recusou a responder e se retirou.
Aproveitei o momento para discutir com a presidente argentina Cristina Fernández – excelente advogada que me guiou em relação a questões jurídicas – e com os presidentes venezuelano e equatoriano, Nicolas Maduro e Rafael Correa, ambos inquietos em relação ao episódio. O presidente Correa voltaria a me telefonar diversas vezes durante o dia para ter notícias minhas. Essa solidariedade me deu forças: “Evo, eles não têm nenhum direito de inspecionar seu avião!”, repetiam. Eu ignorava que meu avião presidencial possuía o mesmo estatuto de uma embaixada. Mas esses conselhos e a chegada dos embaixadores da Aliança Bolivariana para as Américas (Alba)1 multiplicaram minha determinação de me mostrar firme. Não, não daríamos à Espanha ou a qualquer outro país – menos ainda aos Estados Unidos – a satisfação de inspecionar nosso avião. Sempre defenderemos nossa dignidade, nossa soberania e honra à nossa pátria, nossa pátria grande. Jamais aceitaremos chantagens.
O embaixador da Espanha reapareceu. Preocupado, inquieto e nervoso, indicou que finalmente eu dispunha de todas as autorizações para ir embora. E, enfim, decolamos.
Essa proibição de sobrevoo, decretada de forma simultânea e coordenada por quatro países sob o comando único da Central Intelligence Agency (CIA) contra um país soberano com o único pretexto de que talvez transportássemos Snowden, traz para o centro do debate o peso político da principal potência imperial: os Estados Unidos.
Até o dia 2 de julho (data do meu sequestro), todos compreendiam o fato de os Estados Unidos se munirem de agências de segurança com a finalidade de proteger seu território e sua população. Mas Washington ultrapassou os limites do tolerável. Violando os princípios da boa-fé e as convenções internacionais, transformou uma parte do continente europeu em território colonizado. Trata-se de uma violação de direitos humanos, uma das conquistas da Revolução Francesa.
O espírito colonial que conduziu vários países a se submeterem às suas ordens demonstra mais uma vez que, para o império, não existem limites legais, morais ou territoriais para a imposição de suas vontades. Agora, está claro para o mundo inteiro que, para uma potência como essa, qualquer lei pode ser transgredida; qualquer soberania, violada; qualquer direito humano, ignorado.
A potência dos Estados Unidos reside, sem dúvida, em suas forças armadas, implicadas em diversas guerras de invasão e apoiadas por um aparato militar-industrial fora do comum. As etapas de suas intervenções são conhecidas: após as conquistas militares, a imposição do livre-comércio, de uma concepção particular de democracia e, finalmente, a submissão das populações à voracidade das multinacionais. As marcas indeléveis do imperialismo, seja ele militar ou econômico, desfiguraram o Iraque, o Afeganistão, a Líbia, a Síria. Alguns foram invadidos sob o pretexto de suspeita de fabricação de armas de destruição em massa, outros por supostamente abrigar organizações terroristas – mas, de forma geral, são países onde milhares de seres humanos foram assassinados sem que a Corte Penal Internacional estabelecesse qualquer processo.
No entanto, a potência norte-americana também se funda em dispositivos subterrâneos destinados a propagar o medo, a chantagem e a intimidação. Entre as receitas usadas por Washington para manter seu estatuto, destaca-se a “punição exemplar”, no mais puro estilo colonial que conduziu à repressão dos indígenas de Abya Ayala.2 Essa prática recai, atualmente, sobre os povos que decidiram se libertar e sobre os dirigentes políticos que resolveram governar para os mais humildes.
A memória dessa política da punição exemplar ainda está viva na América Latina: basta pensar nos golpes de Estado contra Hugo Chávez na Venezuela em 2002, contra o presidente hondurenho Manuel Zelaya em 2009, contra Correa em 2010, contra o presidente paraguaio Fernando Lugo em 2012 e, claro, contra nosso governo em 2008, sob a liderança do embaixador norte-americano na Bolívia, Philip Goldberg.3 “O exemplo”, para que indígenas, operários, camponeses, movimentos sociais não ousem levantar a cabeça contra as classes dominantes. “O exemplo”, para dobrar os que resistem e para aterrorizar aos outros. Mas um “exemplo” que, hoje, incita os humildes do continente e do mundo inteiro a redobrar seus esforços de unidade para fortalecer suas lutas.
O atentado do qual fomos vítimas revela as duas faces de uma mesma opressão, contra a qual os povos decidiram se revoltar: o imperialismo e seu gêmeo político e ideológico, o colonialismo. O sequestro do avião presidencial boliviano e de seu equipamento – episódio que estimamos ser impensável no século XXI – ilustra a sobrevivência de uma forma de racismo no seio de certos governos europeus. Para eles, os indígenas e os processos democráticos ou revolucionários nos quais se engajam representam obstáculos na via da civilização. Esse racismo se refugia na arrogância das explicações “técnicas” mais ridículas para maquiar uma decisão política nascida em um escritório de Washington. Eis governos que perderam até a capacidade de se reconhecer como colonizados e tentam proteger a reputação de seu mestre...
Quem diz império, diz colônias. Ao optarem por obedecer às ordens dadas, certos países europeus confirmaram seu estatuto de submissos. A natureza colonial da relação entre os Estados Unidos e a Europa se intensificou depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, e foi revelada em 2004, quando o mundo soube da existência de voos ilícitos de aviões militares norte-americanos transportando supostos prisioneiros de guerra para Guantánamo ou em direção a prisões europeias. Hoje, sabe-se que esses “terroristas” foram submetidos à tortura – realidade que até as organizações de defesa dos direitos humanos escamoteiam.
A guerra contra o terrorismo reduziria a velha Europa à condição de colônia; um ato pouco amistoso, a saber, hostil, que pode ser analisado como uma forma de terrorismo de Estado – pois permite que a vida privada de milhões de cidadãos seja colocada à mercê dos caprichos do império.4
O descrédito para o direito internacional que nosso sequestro representa talvez constitua um ponto de ruptura. A Europa deu nascimento aos ideais mais nobres: liberdade, igualdade, fraternidade. Contribuiu amplamente para o progresso científico e para a emergência da democracia. E agora não passa de uma figura pálida dela mesma: um neo-obscurantismo ameaça os povos de um continente que, há alguns séculos, iluminava o mundo com suas ideias revolucionárias e suscitava a esperança.
Nosso sequestro poderia oferecer a todos os povos e governos da América Latina, Caribe, Europa, Ásia, África e América do Norte a ocasião única de constituir um bloco solidário condenando a atitude indigna dos Estados implicados nessa violação do direito internacional. Trata-se, igualmente, de uma ocasião ideal para reforçar as mobilizações de movimentos sociais em vias de construir outro mundo, de fraternidade e complementaridade. Essa tarefa cabe aos povos.
Estamos certos de que os povos de todo o mundo, notadamente os da Europa, ressentem a agressão da qual fomos vítimas e se sentem afetados por ela. E interpretamos essa indignação como uma forma indireta de pedido de desculpa que os governos responsáveis ainda se recusam a fazer.5


1 Da qual são membros Antígua e Barbuda, Bolívia, Cuba, República Dominicana, Equador, Nicarágua, São Vicente e Granadinas, e a Venezuela. (Todas as notas são da redação.)
2 Nome dado pelas etnias kunas no Panamá e Colômbia ao continente americano antes da chegada de Cristóvão Colombo. Em 1922, esse nome foi escolhido pelas nações indígenas da América para designar o continente.
3 Ler Hernando Calvo Ospina, “Petit précis de déstabilisation en Bolivie” [Pequeno indício de desestabilização na Bolívia], Le Monde Diplomatique, jun. 2010.
4 Ler Maurice Lemoine, “L’homme qui menaçait les États-Unis” [O homem que ameaçava os Estados Unidos], Le Monde Diplomatique, maio 2009.
5 No dia 10 de julho de 2013, Madri apresentou suas desculpas oficiais a La Paz.Evo Morales


Evo Morales – Presidente do Estado Plurinacional da Bolívia – 01.08.2013  
IN Le Monde Diplomatique Brasil – http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1466



Desculpe, Presidente Evo Morales

Sinais dos tempos, Senhor Presidente: a arrogância colonial europeia já não pode ser exercida sem subserviência colonial. Este continente está ficando demasiado pequeno para poder ser grande sem ser aos ombros de outrem. Nada disto absolve as elites europeias. Apenas aprofunda a distância entre elas e tantos europeus.

Boaventura de Sousa Santos
Esperei uma semana que o governo do meu país pedisse formalmente desculpas pelo ato de pirataria aérea e de terrorismo de estado que cometeu, juntamente com a Espanha, a França e a Itália, ao não autorizar a escala técnica do seu avião no regresso à Bolívia depois de uma reunião em Moscou, ofendendo a dignidade e a soberania do seu país e pondo em risco a sua própria vida. 
Não esperava que o fizesse, pois conheço e sofro o colapso diário da legalidade nacional e internacional em curso no meu país e nos países vizinhos, a mediocridade moral e política das elites que nos governam, e o refúgio precário da dignidade e da esperança nas consciências, nas ruas e nas praças, depois de há muito terem sido expulsas das instituições. Não pediu desculpa. 
Peço eu, cidadão comum, envergonhado por pertencer a um país e a um continente que é capaz de cometer esta afronta e de o fazer de modo impune, já que nenhuma instância internacional se atreve a enfrentar os autores e os mandantes deste crime internacional. O meu pedido de desculpas não tem qualquer valor diplomático mas tem um valor talvez ainda superior, na medida em que, longe de ser um ato individual, é a expressão de um sentimento coletivo, muito mais vasto do que pode imaginar, por parte de cidadãos indignados que todos os dias juntam mais razões para não se sentirem representados pelos seus representantes. O crime cometido contra si foi mais uma dessas razões. Alegrámo-nos com seu regresso em segurança a casa e vibrámos com a calorosa acolhida que lhe deu o seu povo ao aterrar em El Alto. Creia, Senhor Presidente, que, a muitos quilômetros de distância, muitos de nós estávamos lá, embebidos no ar mágico dos Andes.
O Senhor Presidente sabe melhor do que qualquer de nós que se tratou de mais um ato de arrogância colonial no seguimento de uma longa e dolorosa história de opressão, violência e supremacia racial. Para a Europa, um presidente índio é sempre mais índio do que presidente e, por isso, é de esperar que transporte droga ou terroristas no seu avião presidencial. Uma suspeita de um branco contra um índio é mil vezes mais credível que a suspeita de um índio contra um branco. Lembra-se bem que os europeus, na pessoa do Papa Paulo III, só reconheceram que a gente do seu povo tinha alma humana em 1537 (bula Sublimis Deus), e conseguiram ser tão ignominiosos nos termos em que recusaram esse reconhecimento durante décadas como nos termos em que finalmente o aceitaram. 
Foram precisos 469 anos para que, na sua pessoa, fosse eleito presidente um indígena num país de maioria indígena. Mas sei que também está atento às diferenças nas continuidades. A humilhação de que foi vítima foi um ato de arrogância colonial ou de subserviência colonial? Lembremos um outro “incidente” recente entre governantes europeus e latino-americanos. Em 10 de Novembro de 2007, durante a XVII Cimeira Iberoamericana realizada no Chile, o Rei de Espanha, desagradado pelo que ouvia do saudoso Presidente Hugo Chávez, dirigiu-se-lhe intempestivamente e mandou-o calar. A frase “Por qué no te callas” ficará na história das relações internacionais como um símbolo cruelmente revelador das contas por saldar entre as potências ex-colonizadoras e as suas ex-colónias. De fato, não se imagina um chefe de Estado europeu a dirigir-se nesses termos publicamente a um seu congénere europeu, quaisquer que fossem as razões.
O Senhor Presidente foi vítima de uma agressão ainda mais humilhante, mas não lhe escapará o fato de que, no seu caso, a Europa não agiu espontaneamente. Fê-lo a mando dos EUA e, ao fazê-lo, submeteu-se à ilegalidade internacional imposta pelo imperialismo norte-americano, tal como, anos antes, o fizera ao autorizar o sobrevoo do seu espaço aéreo para voos clandestinos da CIA, transportando suspeitos a caminho de Guantánamo, em clara violação do direito internacional. 
Sinais dos tempos, Senhor Presidente: a arrogância colonial europeia já não pode ser exercida sem subserviência colonial. Este continente está a ficar demasiado pequeno para poder ser grande sem ser aos ombros de outrem. Nada disto absolve as elites europeias. Apenas aprofunda a distância entre elas e tantos europeus, como eu, que veem na Bolívia um país amigo e respeitam a dignidade do seu povo e a legitimidade das suas autoridades democráticas.


Boaventura de Sousa Santos – Sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal) – 17.07.2013

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Vinte anos de PCC em São Paulo: o espaço entre governo e crime


Só em São Paulo há uma política de encarceramento tão agressiva; só no estado há uma única facção na regulação tanto de condutas criminais quanto dos preços nos mercados ilegais; só em SP isso redundou na redução de 70% dos homicídios; só no estado a “guerra” entre crime e governo pode ter a magnitude vista em 2012.

Gabriel de Santis Feltran
Em São Paulo não é apenas o governo que produz “políticas de segurança”. Há vinte anos, o mundo do crime também reivindica para si o papel de garantidor da ordem e operador da justiça em diferentes situações, grupos e territórios das periferias. Tenho estudado essa dinâmica em pesquisa de campo e em diálogo estreito com uma rede de pesquisadores. Apresento aqui uma interpretação das relações entre as políticas estatais e as políticas do crime, que, coexistindo em São Paulo, conferem os limites atuais da ordem urbana. Para tanto, conto uma história telegráfica dos vinte anos de Primeiro Comando da Capital (PCC).
O PCC teve origem em 1993, dentro de uma cadeia, um ano depois do Massacre do Carandiru. Reivindicava reação a qualquer opressão do sistema contra os presos,mas tambémdo preso contra o preso.Legitimou sua autoridade no cárcere por aplicar políticas expressas de interdição do estupro, do homicídio considerado injusto e, posteriormente, do crack dentro das prisões sob seu regime. Firmou-se como interlocutor entre os gestores e funcionários dos presídios, porque a disciplina estrita que introduzia nas “suas” unidades prisionais lhes era funcional. Durante os anos 1990, a guerra sangrenta contra grupos rivais e desrespeito ao procederassociou-se ao ideal de “paz entre os ladrões” do Partido. Quanto mais o PCC se expandia, mais o governo investia na ampliação do sistema que o nutria: metas crescentes de encarceramento, construção de dezenas de novas unidades e interiorização das prisões. A reforma dos anos 1990 quadruplicou a população carcerária paulista na década seguinte, impulsionada pela equivalência do tráfico de drogas a crime hediondo, que jogou dezenas de milhares de jovens nas cadeias. As prisões passaram a ser chamadas de “faculdades”. O PCC construiu sua hegemonia no crime.
Em 2001, o Comando mostrava força promovendo uma “megarrebelião”, simultânea em mais de vinte presídios. As políticas estatais reagiram, radicalizando a lógica da punição: criou-se o Regime Disciplinar Diferenciado. A imprensa deixou de utilizar a sigla PCC nos noticiários; o que os olhos não leem, a política não sentiria. Mas, entre 2001 e 2006, a facção foi cada vez mais comentada nas periferias do estado. Negociava-se ativamente, em cada “quebrada”, a presença local dos “irmãos”, integrantes da facção, que zelariam ali por uma justiça específica, baseada em debates e deliberações rápidas, exemplares. O PCC tornava-se instância de poder instituinte nos bairros pobres; os moradores admitiram, temeram, consentiram, aprovaram. O tráfico de drogas foi instado a desarmar seus vendedores no varejo, o preço da droga foi congelado para evitar concorrência. Não se podia mais matar, por ali, sem o aval do Partido; as vinganças estavam interditadas, a bandeira branca, hasteada. “A fórmula mágica da paz”, cantada pelo rap. Políticas docrime.
Em maio de 2006, as novas dimensões do Comandoforam conhecidas. Ataques coordenados em todas as periferias de São Paulo somaram-se a rebeliões em mais de oitenta prisões. Dezenas de policiais foram assassinados numa só noite. A vingança oficial aos “ataques” foi exemplar: 493 homicídios cometidos por policiais nas periferias, em uma semana. Mais quinhentos outros assassinatos nas três semanas seguintes. Em vez de um descalabro, esse extermínio foi acolhido publicamente como seu contrário: a retomada do Estado democrático de direito e da ordem pública em São Paulo.
De 2006 a 2011, na esteira dessa nova configuração de forças, a tensão entre PCC e polícias foi latente. A trégua nos enfrentamentos violentos foi baseada na significativa inflação dos “acertos” entre policiais e ladrões. Uma geração de trabalhadores da droga viveu a adolescência sem contabilizar colegas mortos, como fez a anterior. As taxas de homicídio caíram, agora, ainda mais intensamente. Nas periferias de São Paulo, em 2011 os homicídios de jovens foram cerca de um décimo das taxas de 2000. Os gestores da segurança estatal celebraram o sucesso de suas políticas, e as mães da periferia agradeceram ao PCC. Não importava se o “crime” estivesse cada vez mais infiltrado na sociabilidade dos bairros pobres nem que latrocínios crescessem. A taxa de homicídios seria um indicador unívoco de sucesso do governo. Os argumentos de que o PCC atuava nessa redução demoraram a ser escutados publicamente, e a política estatal seguiu intocada: encarceramento maciço, repressão ostensiva, criminalização do pequeno trabalhador da droga, militarização da gestão pública. O encarceramento foi mesmo pensado como desenvolvimento (das pequenas cidades que recebem presídios, dos grandes empresários que não pagam pela mão de obra dos presos).
Em junho de 2012, entretanto, por uma série de fatores – acúmulo de “acertos” descumpridos, extorsão abusiva, extermínio de “irmãos”, possível deslegitimação do PCC em setores criminais – a latência terminou. Execuções sumárias passaram a ser rotina nos noticiários. A imprensa voltou a falar do PCC, da “guerra” com a polícia. A coexistência de regimes de políticas de controle social – estatais e do crime – se mostrou como nunca antes. A especificidade de São Paulo nos temas que, de modo muito reducionista, se consideram exclusivos da “segurança pública”, igualmente: só em São Paulo há uma política de encarceramento tão agressiva; só no estado há uma única facção hegemônica na regulação tanto de condutas criminais quanto dos preços nos mercados ilegais; só em São Paulo isso redundou na redução de mais de 70% dos homicídios; só em São Paulo a “guerra” entre crime governo pode ter a magnitude vista no segundo semestre de 2012.
Importa notar que, analiticamente, e ao contrário do que pode parecer à primeira vista,governocrimenão produzem políticas necessariamente opostas. Construiu-se, mais rigorosamente, um repertório de regimes normativos, legitimados situacionalmente, que, como nos ensinou Machado da Silva, coexistem em tensão nesses cenários. Se eles promovem muita insegurança, funcionam muitas vezes de modo complementar. Há vinte anos o “crime” funcionaliza as políticas estatais para se fortalecer: o encarceramento maciço e a difusão das prisões pelo interior, por exemplo, favoreceram muito a expansão do PCC. O contrário também é verdadeiro: a queda das taxas de homicídio, promovidas pela intervenção do “crime” na regulação de conflitos nas periferias, é muito funcional aos administradores da segurança pública. É essa funcionalidade que fortalece ambos os regimes de “segurança” e, portanto, perpetua o crime, quando se pensa que a punição dos pobres e a militarização das políticas sociais “defenderiam a sociedade”.


Gabriel de Santis Feltran – Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM). Coordenador do NaMargem – Núcleo de Pesquisas Urbanas – 01.02.2013
IN Le Monde Diplomatique Brasil – http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1351

terça-feira, 24 de setembro de 2013

A apuração da verdade: grande medo das instituições militares


Militares de hoje temem pelos atos cometidos por seus pares no passado, pois pesquisas históricas comprovam que a ditadura nada teve de “branda”, afirma Edson Teles. Casos do Chile, Argentina e África do Sul servem como inspiração para o Brasil.


Márcia Junges
Considerada a mais violenta da América Latina pelos pesquisadores Edson Teles e Vladimir Safatle, a ditadura brasileira precisa ser mensurada não pelos desaparecidos que produziu, “mas pelo impacto que gerou no país, o que se percebe pela herança autoritária vivida em democracia”, acentua Teles na entrevista que concedeu por e-mail àIHU On-Line. Entre os inúmeros “restos” deixados por esse regime autoritário em nosso país, o maior deles é a cultura da impunidade “que privilegia a violência e os que detêm o poder político em detrimento da ideia de uma cidadania plena”. Tal impunidade vale, inclusive, para aqueles que pensam que podem torturar “bandidos” e pessoas “perigosas”. Já que torturadores da ditadura não receberam a devida punição, por que alguém que tortura presos e menores infratores a receberia? Teles analisa, também, o motivo pelo qual as Forças Armadas de hoje não querem que se apurem crimes de ontem. Para ele, trata-se de uma questão de poder político: “as instituições militares detêm um poder abusivo em nossa democracia, garantido pela Constituição Federal, e a apuração da verdade do período ditatorial apontaria com clareza algo que já está comprovado pelas pesquisas históricas: a ditadura não foi ‘branda’ e sua ação repressiva não foi fruto de um setor radicalizado dos militares”. E ressalta: “A reforma institucional, fruto da apuração da verdade, é o grande medo das instituições militares”.

Teles foi o mais jovem preso político brasileiro, com apenas dois anos de idade, quando foi detido com seus pais, César Augusto Teles e Maria Amélia de Almeida Teles, bem como a irmã Janaína, na época da ditadura militar. Em 2007, junto com os pais, a irmã e sua tia, processou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, para que ele fosse declarado torturador, tendo obtido ganho de causa na primeira instância.
Graduado, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP, escreveu a tese Brasil e África do Sul: Memória política em democracias com herança autoritária. Leciona na Universidade Federal de São Paulo e é um dos organizadores das seguintes obras: O que resta da ditadura: A exceção brasileira (São Paulo: Boitempo, 2010),Desarquivando a Ditadura: memória e justiça no Brasil (São Paulo: Hucitec, 2009) e Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985) (São Paulo: Impressa Oficial, 2009).

Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que resta da ditadura em nosso país? Qual é a pior herança deixada pelos torturadores?
Edson Teles - Há uma série de "restos" da ditadura militar. Poderíamos dizer que a maior delas encontra-se na imposição de uma cultura de impunidade, que privilegia a violência e os que detêm o poder político em detrimento da ideia de uma cidadania plena. Apesar de sairmos da ditadura com uma Assembleia Constituinte (1986-1988) e a nossa Constituição ser considerada liberal e democrática, uma série de aspectos, especialmente aqueles que se referem às estruturas jurídicas e institucionais do sistema de segurança pública e das Forças Armadas em quase nada foram alterados em relação à Constituição outorgada pelos militares em 1967. A ingerência das Forças Armadas na política brasileira e os privilégios que os militares têm indicam que a nossa Lei em democracia ainda fez a opção pela consolidação de cidadãos que são "melhores" e mais poderosos do que a maioria de nós.
IHU On-Line - Por que você e Vladimir Safatle  afirmam que a ditadura brasileira foi a mais violenta da América Latina?
Edson Teles - Há um forte aspecto de violência da ditadura brasileira que é justamente sua herança. Além dos limites apontados anteriormente, há uma ação política no país cuja marca é o autoritarismo. Hoje se governa mais com decretos e medidas provisórias do que em qualquer outra época da história de nossa República, mais inclusive do que no período militar. Um bom exemplo é o desejo do Executivo atual de decidir por decreto o valor do salário mínimo. O grave problema que este tipo de instrumento jurídico implica é o descumprimento dos procedimentos democráticos de decisão sobre o futuro do país, alijando da política a grande maioria da sociedade civil. 
A ideia forte que eu e Vladimir procuramos mostrar é a de uma ditadura não se mede pelo número de mortos e desaparecidos que produziu (cerca de 500 no Brasil, 20 mil na Argentina e 5 mil no Chile), mas pelo impacto que gerou no país, o que se percebe pela herança autoritária vivida em democracia.
IHU On-Line - Há uma espécie de consenso em calar, abrandar ou negar o que houve nos anos de chumbo. Qual é o papel da memória e da resistência nesse sentido?
Edson Teles - Este consenso favorece não só os setores diretamente envolvidos com a repressão política (militares e sistema policial), mas uma boa parte dos partidos e instituições políticas que obtém vantagens com a democracia nos dias atuais. Vejamos um exemplo: se os torturadores da ditadura não são punidos, qual o receio em praticar a tortura por parte de certos funcionários das antigas Febens (instituições para adolescentes infratores) ou das delegacias de polícia? Muito pequeno. Cria-se e dissemina-se uma ideia na sociedade de que a tortura é algo permitido, desde que seja para os "bandidos", pessoas "perigosas", como foram os "subversivos" de então.
Contudo, a memória não se configura como um instrumento de bloqueio da política autoritária. Ela é um significante modo de articulação das relações sociais e políticas e seu benefício está em permitir a nossa sociedade refletir sobre o que ocorreu e o que ocorre e, a partir dos debates produzidos, propiciar a criação de mecanismos democráticos de garantia de direitos e de justiça. O que quero dizer é que a memória deve ser livre, não deve ser nem um dever, nem um direito, mas ser exercida e praticada livremente em uma esfera pública democrática.
IHU On-Line - Por que as Forças Armadas de hoje temem a punição dos torturadores de ontem?
Edson Teles - Certamente boa parte dos membros das Forças Armadas de hoje não foram torturadores na ditadura. Entretanto, ainda assim, a instituição não aceita a apuração dos crimes praticados pelos generais daquela época. Isto se deve, ao que parece, principalmente a uma questão de poder político. Como já disse, as instituições militares detêm um poder abusivo em nossa democracia, garantido pela Constituição Federal, e a apuração da verdade do período ditatorial apontaria com clareza algo que já está comprovado pelas pesquisas históricas: a ditadura não foi "branda" e sua ação repressiva não foi fruto de um setor radicalizado dos militares (a chamada "linha dura). Ela foi muito bem organizada e sofisticada; a tortura e o desaparecimento serviram a uma política decidida no mais alto escalão militar. De posse desta verdade, a sociedade brasileira necessariamente terá que rever a função dos militares, ou ao menos refletir se são estas Forças Armadas que queremos para o futuro do país. A reforma institucional, fruto da apuração da verdade, é o grande medo das instituições militares.
IHU On-Line - Quais são as semelhanças e diferenças entre as democracias com heranças autoritárias do Brasil e da África do Sul?
Edson Teles - A África do Sul fez a opção pela narrativa e publicidade dos crimes do Apartheid. O Brasil escolheu o silêncio. A anistia sul-africana foi individual, caso a caso, crime a crime, e só foi concedida depois da confissão pública do ato criminoso e do esclarecimento do que foi feito com o corpo das vítimas. No Brasil, como vocês sabem, a anistia foi genérica e, simbolicamente, acabou por tornar inimputáveis os autores de crimes bárbaros praticados enquanto eram funcionários do Estado, com salários pagos pelo contribuinte e sem qualquer motivação política.
IHU On-Line - A África do Sul parece ter lidado melhor com as questões do período ditatorial do que o Brasil. A que se deve isso?
Edson Teles - Há uma série de fatores. Porém, o principal deles é a coragem e determinação dos que assumiram a construção da nova democracia multirracial. Eles sabiam que a maioria negra não iria aderir ao novo regime se não houvesse atos de justiça consistentes. No Brasil, a maior parte dos democratas, dos que vivenciaram a transição política, escolheram a composição com os antigos criminosos. Como podemos ter uma democracia plena se o presidente de um dos três poderes da República encontra-se nas mãos de um dos maiores líderes civis da ditadura, José Sarney (lembre-se que ele liderava a Arena, partido do governo militar, quando da aprovação da Lei de Anistia em 1979).
IHU On-Line - O recurso da anistia também foi usado na África do Sul? Por que essa foi a medida tomada no caso de nosso país? No caso da África do Sul a questão da ditadura foi resolvida em função de Nelson Mandela ter sido preso político e primeiro presidente eleito democraticamente?
Edson Teles - Não. O passado de alguém é muito importante na compreensão de seu presente, mas não garante que ele vá agir de algum modo determinado. Os dois primeiros presidentes eleitos de nossa democracia que terminaram o mandato foram vítimas da ditadura. Contudo, nem FHC e nem Lula tiveram a coragem (aquela que teve Mandela) de abrirem os arquivos militares e localizarem os desaparecidos políticos. Ao contrário, como dissemos, preferiram compor com os setores herdeiros da ditadura.
IHU On-Line - Nessa lógica, Dilma Rousseff, por ter sido presa política, irá dar um tratamento diferenciado às questões relacionadas à ditadura?
Edson Teles - Novamente não. É claro que conhecer tão bem quanto ela o que se passou no período abre uma chance de ouro para a nossa democracia. Mas ela sofre e sofrerá as maiores pressões para que nada se modifique. O que poderá garantir um tratamento diferenciado é a pressão política e social para que aprofundemos nossa democracia. Cito um exemplo: faz mais de 10 anos que os movimentos de direitos humanos ligados ao tema exigem uma Comissão da Verdade e da Justiça no país. Somente agora, do ano passado para cá, é que nossa democracia começou a tocar no assunto. Por que será? Certamente se deve ao fato de a Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos - OEA, ter condenado o Estado brasileiro a responsabilizar penalmente os criminosos, apurar as circunstâncias dos crimes, localizar os restos mortais dos desaparecidos, entre outras medidas.
IHU On-Line - O que uma possível abertura dos arquivos da ditadura por Dilma Rousseff pode mudar em relação à memória que temos do período militar, e em relação às gerações futuras?
Edson Teles - A mudança será extrema. Veremos que o país ainda vive sob instituições autoritárias que devem ser reformadas para que a democracia e a justiça ganhem um valor maior. Poderemos, inclusive, começar a transformar a cultura de violência e impunidade, não só em relação aos crimes do passado, mas em relação à violência dos dias atuais. Há um estudo da socióloga Kathryn Sikkink , da Universidade de Minnesota (EUA), demonstrando que os países da América Latina que puniram os torturadores do passado e apuraram a verdade de suas ditaduras sofreram uma considerável redução da violência atual se comparados com os países que quase nada ou nada fizeram como o Brasil.
IHU On-Line - Como as experiências do Uruguai, Argentina, Chile e El Salvador com suas ditaduras ajudam a redesenhar o mapa dos direitos humanos e da memória na América Latina?
Edson Teles - A Argentina nos mostra que é possível e, mais do que isto, desejável, que nossas democracias apurem os crimes. Hoje, temos no banco dos réus naquele país dois ex-presidentes generais, um dos quais já condenado em outro processo à prisão perpétua, e nenhum golpe ou instabilidade foi provocado por isto.
O Chile, ao começar seus processos pela punição dos crimes de desaparecimento, levou em consideração que este é um crime de sequestro continuado, já que o corpo não foi localizado. Isto permite ao ordenamento jurídico não levar em consideração anistias como a brasileira de 1979, na medida em que estes crimes continuaram após a aprovação destas leis. No Brasil, podemos julgar e condenar os responsáveis pelos desaparecimentos mesmo sem reinterpretação da lei de anistia, como fez o Chile.



Márcia Junges – 18.04.2011
Edson Teles – Professor de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
IN Revista do Instituto Humanitas Unisinos – http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3781&secao=358

domingo, 22 de setembro de 2013

Os tempos do unilateralismo vão se encurtando


a reação brasileira se dá em momento favorável ao fortalecimento ao menos parcial de objetivos de longo prazo: multilateralismo, respeito às regras da convivência internacional.

Tullo Vigevani
A crise na relação entre Brasil e EUA não é um raio em céu azul. Resulta de condições nacionais e internacionais propícias a fortes questionamentos da política americana. É certo que a espionagem de governos e territórios estrangeiros é milenar. Há episódios na mitologia grega, há fatos citados na Bíblia. Isso não elimina a obrigação de, quando descoberta, ser vigorosamente denunciada e combatida.
No Brasil, a decisão de reagir de modo forte à espionagem conta com apoio quase unânime, ainda que com diferenças de tons. Portanto, o que parece ser uma decisão tomada a partir da vontade da presidente Dilma Rousseff tem como subproduto seu fortalecimento popular e mesmo entre as elites. Isso tem diferentes motivos, lembremos a tradição brasileira de prezar o direito internacional, a autonomia, a soberania.
No plano internacional, essa tensão se entrelaça com o forte questionamento da política do governo Obama na Síria. Como acabamos de ver na ONU e no G20, a posição daquele governo é bastante isolada. Além de perder apoios históricos, da Grã-Bretanha e da Alemanha, sua força no Congresso é duvidosa e boa parte da população americana rejeita a intervenção.
Consequentemente, a reação brasileira se dá em momento favorável ao fortalecimento ao menos parcial de objetivos de longo prazo: multilateralismo, respeito às regras da convivência internacional. A crise e as consequentes exigências brasileiras se inserem nessa trajetória.
Os EUA são ainda o país mais importante na ordem mundial. Interessam ao Brasil boas relações, fortalecimento do comércio, cooperação em geral. Para isso, ainda que essa crise seja de algum modo superada, é importante deixar claro que soberania e autonomia não podem ser barganhadas e que os tempos do unilateralismo vão se encurtando. Nessa perspectiva se insere a projetada viagem da presidente aos EUA.


Tullo Vigevani – Professor da UNESP, membro do Instituto Nacional de Ciência, Tecnologia de Estudos dos EUA e do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais – 09.09.2013




Em resposta a espionagem americana, Dilma defenderá na ONU internet livre


da rede e governança multissetorial da rede mundial estarão entre os temas defendidos pela presidenta em seu discurso na abertura da assembleia geral das Nações Unidas na próxima semana.

Redação Rede Brasil Atual
São Paulo – A defesa de uma internet livre será um dos destaques do discurso da presidenta Dilma Rousseff na abertura da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, na próxima semana. Será mais uma demonstração da importância que o tema ganhou na agenda do Planalto após as denúncias de que o esquema de espionagem da NSA, agência de segurança da Casa Branca, rastreou comunicações pessoais de Dilma.
Esse foi um dos pontos mais abordados pela presidenta durante a reunião que realizou na segunda-feira (16) com membros do Comitê Gestor da Internet (CGI), entidade de governança da internet brasileira que reúne representantes de governo, setor empresarial, sociedade organizada e da comunidade acadêmica.
Ainda antes do encontro, Dilma afirmou a jornalistas que iria abordar em seu discurso a espionagem norte-americana, que a levou a cancelar a visita que faria a Barack Obama em outubro. Em entrevista concedida na sala VIP do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, Dilma destacou que seu discurso vai salientar a necessidade de se manter a neutralidade da rede mundial de computadores e a proibição de usar a internet para ações de espionagem. Segundo ela, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, já foi informado do teor do discurso.
De acordo com Veridiana Alimonti, uma das representantes da sociedade civil no CGI, Dilma se mostrou muito interessada nos detalhes do modelo apresentado e nas discussões sobre governança internacional da internet que ocorrem em diversos fóruns. “Ressaltamos a importância de uma governança da internet que contemple todos os setores e que leve em conta a experiência que o CGI já tem aqui no Brasil há tanto tempo. Também há a necessidade de que a internet seja regida por princípios, como o próprio decálogo que o CGI aprovou, em 2009, que chegou a inspirar o Marco Civil da Internet”, relata a conselheira.
Veridiana destacou que já existe uma discussão para o estabelecimento de uma governança multissetorial em nível internacional para a internet, iniciada na Cúpula Mundial sobre a Sociedade de Informação da ONU. “Tem um processo que acontece em fóruns organizados dentro do sistema ONU de pensar uma governança da internet multissetorial e que também seja mais equilibrada entre os países”, explica.

Apoio à neutralidade da rede
O governo brasileiro também trabalha para desenvolver o tema internamente, como demonstra o pedido de urgência na tramitação do projeto de lei que cria o marco civil da internet, emitido pelo Planalto na semana passada. A própria reunião com o CGI, que contou com a presença de sete ministros, foi uma demonstração da virada na pauta.
“Nós não tínhamos, até então, tido uma reunião com a presidenta no governo Dilma”, conta Veridiana. “Essa movimentação, em si, já foi muito importante para que nós pudéssemos apresentar algumas questões sob a nossa perspectiva. Isso mostra que o governo está tratando as diversas questões com relação à internet como prioridade, e é claro que tem relação com os recentes acontecimentos.”
Segundo a conselheira, a presidenta afirmou que o governo está disposto a defender a neutralidade da rede, mas destacou a importância de ter o apoio do CGI, porque há desafios pela frente, como a possibilidade de emendas que alterem o texto a pedido das empresas de telecomunicações.
Os conselheiros criticaram o parágrafo segundo do artigo 15 do Marco Civil, que cria uma exceção para que as violações de direitos autorais sejam retiradas do ar sem necessidade de decisão judicial. “No momento em que falamos que o artigo estimulava a retirada de conteúdo sem ordem judicial, ela não gostou muito”, relata Veridiana.
Os membros do CGI defenderam que o tema não seja tratado no marco civil, que já define que sejam seguidas legislações em contrário. “No caso de responsabilidade de conteúdos por terceiros, não é só direitos autorais que é uma questão. Tem outros casos de legislações específicas com relação a racismo, crime contra a honra etc.”
Outra preocupação manifestada foi em relação à proposta de incluir no marco civil a obrigatoriedade de armazenamento de dados em servidores localizados no território brasileiro. “Existe alguma controvérsia em relação a isso, primeiro porque, em termos de espionagem, isso não é muito efetivo porque há outras formas de se capturar dados. Pelo próprio tráfego dos pacotes na rede as empresas de telecomunicações conseguem fazer isso. Ou se os dados estiverem armazenados aqui e espelhados fora as empresas também conseguem”, explica.
Além disso, há preocupação a respeito da lei brasileira, que não é clara em relação à privacidade dos usuários. “Você estaria guardando os dados aqui, só que nós não temos muitos parâmetros definidos para a proteção de dados pessoais. Nesse sentido, nós colocamos na reunião que seria mais interessante que essa discussão do armazenamento de dados não fosse feita no marco civil, mas em um outro projeto de lei que ainda está no governo, que é o anteprojeto de lei de proteção de dados pessoais. Nele, ela poderia ser feita com mais cuidado, com questões mais técnicas, e também porque viria, junto com ele, um regime de proteção de dados”, defende Veridiana.


Redação Rede Brasil Atual – 18.09.2013

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Joaquim Barbosa condenaria Lincoln?


É preciso ressaltar que os meios utilizados por Lincoln objetivavam a consecução de bem-estar para ampla coletividade injustiçada há séculos e não a vantagens pessoais para si.(...) 
Não dá para igualar Lincoln e Genoino a Renan Calheiros e José Roberto Arruda.

Pascoal Vaz
O filme “Lincoln”, excelente, nos transporta para o âmago do conflito entre os que consideravam os negros como humanos e os que os tratavam como animais domesticados. Lincoln era encharcado de humanismo, que ia além da causa dos negros. O filme não toca no assunto, talvez para preservar a imagem de Lincoln, figura maior de seu povo, mas o presidente era simpático a ideias centrais de Marx (Nota 1), como o direito do trabalhador sobre sua força de trabalho e a salário compatível com o esforço dispendido. A relação com Marx era afinada a ponto deste ter escrito carta à Lincoln manifestando a satisfação dos trabalhadores europeus pela sua reeleição (Nota 2). 
Diálogo de Lincoln com singelo soldado negro, parece lhe ter aguçado a urgência de apresentar ao senado americano sua emenda constitucional propondo o fim da escravidão. Lincoln, contando voto a voto, via que o resultado lhe seria desfavorável. A decisão de enfatizar argumentos éticos pouco adiantou. A esta altura, um membro da equipe, desanimado, sugeriu não apresentar a emenda, porquê seria fatalmente reprovada. Lincoln, num ataque de fúria, deu um estrondoso tapa na mesa: lhe era insuportável a ideia de que a escravidão permanecesse amparada em lei. 
Se os argumentos humanistas eram insuficientes, então que os inimigos fossem derrotados pelas mesmas armas que usavam, a hipocrisia, o desprezo pela ética e o poder econômico. Assim, os fins justificando os meios. Com cargos e/ou dinheiro foram comprados os votos que faltavam. A escravidão, uma das mais escabrosas situações de selvageria do homem contra o homem, chegara legalmente ao fim. 
Não é possível fazer uma prospecção contra-factual e imaginar a quantas décadas ou séculos sobreviveria a escravidão, com seu séquito de sofrimentos, se Lincoln não tivesse decidido utilizar as mesmas armas dos inimigos. Igualmente, não dá para saber quanto pior estaria o atraso ético e moral da sociedade americana. É preciso ressaltar que os meios utilizados por Lincoln objetivavam a consecução de bem-estar para ampla coletividade injustiçada há séculos e não a vantagens pessoais para si.
Impossível não imaginar o que teria acontecido a Lincoln se, então, o presidente da Corte Suprema dos EUA fosse Joaquim Barbosa. Teria sido condenado como chefe de quadrilha, sofreria o “impeachment” e a aprovação da emenda teria sido anulada. Exatamente o feito a alguns “mensaleiros”, como Genoino que, em momento algum da vida, usufruiu de sua condição de político em causa própria. 
Não que os “mensaleiros” não devam ser punidos, inclusive Genoino, se utilizaram meios ilícitos ou foram omissos em permiti-los. Um dia precisaria começar a punição a tais práticas, já que é necessário evoluir para impedir o uso de meios espúrios, mesmo que em nome de fins nobres, pois uma tal sociedade acaba descambando para o uso, pelos poderosos, de meios ilícitos para fins injustos.
Mas não dá para aceitar a hipocrisia incriminadora e covarde de boa parte dos políticos municipais, estaduais e nacionais, de líderes religiosos, empresariais e sindicais, da mídia comercial e de indivíduos em geral que fazem uso igual ou pior de meios sórdidos em causa própria, nada importando o bem comum. Não dá para igualar Lincoln e Genoino a Renan Calheiros e José Roberto Arruda.


Nota 1 - Artigo de Vincenç Navarro em http://www.cartamaior.com.br de 21/01/13.
Nota 2 - A Mensagem da Associação Internacional dos Trabalhadores ao presidente Abraham Lincoln dos Estados Unidos, por ocasião da sua reeleição, foi redigida por Marx por decisão do Conselho Geral (ver carta no “blog Luis Nassif on line”, postagem de 09-02-13)



José Pascoal Vaz - Economista e professor na UniSantos e na UniSanta e ex-Secretário de Economia e Finanças de Santos no Governo David Capistrano (PT) – 02.03.2013
IN Carta Maior – http://www.cartamaior.com.br/templates/analiseMostrar.cfm?coluna_id=5994





A Monalisa e o Supremo Tribunal

continuam inexistindo as provas de que havia de fato um projeto partidário de perpetuação no poder, comandado por José Dirceu, e de que seriam cúmplices banqueiros nacionais e estrangeiros, publicitários, funcionários públicos, empresários e políticos em cargos de elevada responsabilidade e visibilidade. Só um articulador incompetente imaginaria que um golpe político com tantos cúmplices em grande parte desconhecidos entre si poderia obter sucesso. E sem deixar rastros.

Wanderley Guilherme dos Santos
É supérfluo o debate sobre a influência das ruas na opinião dos juízes do Supremo Tribunal Federal, em nova etapa da Ação Penal 470. Não é matéria de livre arbítrio. Os juízes são tão influenciáveis quanto qualquer um de nós. Outra coisa é o caráter que revelam (e o real livre arbítrio de que dispõem) ao resistir submeter suas decisões à inescapável pressão da opinião pública e da publicada.
Acresce um complicador: os votos que deram anteriormente, aspecto ausente das aflições jurídicas de Luiz Roberto Barroso e Teori Zavaski. A veemência que acompanhou todas, sem exceção, todas as manifestações dos meritíssimos durante o julgamento original estará presente entre as variáveis que deverão ponderar, agora, na etapa dos embargos.
Com que argumentos os ministros Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Marco Aurélio convencerão a si próprios que os votos que proferiram – e em especial as justificativas que os acompanharam, posteriormente apagadas do Acórdão – estavam equivocados, quer na tipificação, quer na dosimetria?
Esses mesmos ministros, além do aposentado Ayres de Brito, promoveram o primeiro desfile de discursos de ódio na política brasileira, superando de longe as diatribes contra Getúlio Vargas na década de 1950. E as ministras Carmen Lúcia e Rosa Weber que, aparentemente, só na metade do caminho se deram conta da enorme ficção de que estavam sendo involuntariamente co-autoras, irão reler os volumes do processo instruído e mal comunicado pelo relator Joaquim Barbosa?
Nada de novo aconteceu do final do julgamento até agora. A demonstração de que os fundos supostamente utilizados para a compra de parlamentares não eram públicos e que, ademais, foram pagos a empresas de publicidade em troca de serviços efetivamente prestados, todas as comprovações desses momentos decisivos para a montagem do fabuloso projeto de perpetuação no poder atribuído ao Partido dos Trabalhadores já estavam disponíveis nos volumes originais do processo.
Assim como está no processo a evidência da falsidade da informação prestada pelo relator Joaquim Barbosa ao ministro Marco Aurélio sobre a data da morte de personagem político, tão relevante no enredo fabricado pelo procurador Roberto Gurgel.
Pelo outro lado, continuam inexistindo as provas de que havia de fato um projeto partidário de perpetuação no poder, comandado por José Dirceu, e de que seriam cúmplices banqueiros nacionais e estrangeiros, publicitários, funcionários públicos, empresários e políticos em cargos de elevada responsabilidade e visibilidade. Só um articulador incompetente imaginaria que um golpe político com tantos cúmplices em grande parte desconhecidos entre si poderia obter sucesso. E sem deixar rastros.
Pois essa é a situação atual, já pré-figurada no processo original: não há evidência que garanta a existência de tal projeto. Mais do que isso, nas alegações de diversos acusados são inúmeras as demonstrações de que um projeto de tal natureza não poderia existir, mostrando-se incompatível com o comportamento geral da maioria dos acusados. Ou seja, comprovou-se o oposto da ficção do procurador: não existia e nem era possível a existência de um projeto dessa magnitude.
Em lugar de provas, indícios. Indícios transformados em evidências pela ginástica mental do Procurador e o Relator, graças à mirabolante premissa de um plano de apropriação indébita do poder, premissa engolida por todos os ministros. Isto aceito, bastava ao então presidente do STF, Ayres Brito, remeter o valor dos indícios ao “conjunto da obra” para que se transformassem em formidáveis petardos de acusação. A rigor, desde que aceitaram a fantasia de um projeto de perpetuação no poder, os ministros estavam logicamente obrigados a aceitarem todos os argumentos do Procurador e do Relator, eis que eram derivados desse mesmo projeto. Daí que, hoje, parece-me que os únicos votos coerentes foram os daqueles ministros que acolheram, sem exceção, as tipificações e veredictos enunciados pela dupla Procurador-Relator.
Abrigados sob uma premissa absolutamente despropositada, os ministros do Supremo Tribunal Federal foram enredados por indícios. Ora, indícios, como se sabe, são prenhes de significados, os quais, muitas vezes, dizem mais dos intérpretes do que de si mesmos. Está aí o sorriso da Mona Lisa à disposição de todas as fábulas. O conjunto de indícios amarfanhados pela Procuradoria da República, aceito e oficializado pelo Relator, constitui o sorriso de Mona Lisa do Supremo Tribunal Federal.


Wanderley Guilherme dos Santos - Cientista político – 20.08.2013