Ministra da Inclusão
Econômica e Social, Doris Soliz Carrión explica as razões da reeleição do
presidente Rafael Correa.
Leonardo
Wexell Severo e Felipe Biancchi
Os avanços do governo do presidente
Rafael Correa e de sua Revolução Cidadã saltam a olhos vistos, cobrindo a
cegueira de agências internacionais. Nesta entrevista, a ministra da Inclusão
Econômica e Social, Doris Soliz Carrión esquadrinha as vitórias obtidas contra
a miséria, a partir de um compromisso com o “Bem-Viver”. Doris denuncia a
dolarização – uma bomba ainda a ser desarmada – como herança deixada pelo
neoliberalismo, que ceifou empregos, achatou salários e desapareceu com
poupanças, fazendo com que milhões de equatorianos tivessem de abandonar o país
à procura de trabalho. Firme, fala de mais-valia, de salários dignos, de
construção coletiva, de planificação, e descortina novos horizontes para a
integração latino-americana. Confira a entrevista abaixo.
De forma breve, contextualize o antes e o depois da Revolução Cidadã.
Dóris Soliz Carrión
– É importante conhecer o processo
para compararmos o antes e o depois de 2006 e 2007. Naqueles anos o Equador
havia tocado o fundo do poço com a aplicação do modelo neoliberal, que
privilegiou os interesses do sistema financeiro e socializou as perdas da crise
bancária com todo o seu povo. Dolarizou-se a economia, gerando impactos
desastrosos para a grande maioria dos equatorianos, gerando o êxodo de milhões
de pessoas como migrantes, que tiveram de buscar condições de vida fora, já que
o país não lhes oferecia esta oportunidade.
Milhares de aposentados viram diminuir enormemente
seus benefícios pela dolarização e houve até gente que se suicidou porque
perdeu todos os seus depósitos nos bancos. Creio que a crise bancária colocou a
descoberto uma velha institucionalidade, a de que o Estado estava absoluta e
cinicamente a serviço de pequenos grupos de poder econômico e político.
De aí surgiu a tese defendida pelo jovem Ministro
da Economia e logo candidato a presidente, Rafael Correa, de que devíamos
caminhar para uma Constituinte com o objetivo de refundar o país. Correa
visibilizou que não havia condições do povo equatoriano fazer as transformações
que necessitava dentro de um marco da velha Constituição, pois ela privilegiava
o modelo neoliberal e estava claramente a serviço dos bancos. A lei era feita
para eles, para assegurar seus lucros. A Assembleia servia a eles e as
entidades, como o poder eleitoral, também. Tudo estava a serviço da
“partidocracia”, termo que foi cunhado para designar esse velho sistema de
partidos que abarcava todo tipo de interesses minoritários e particulares da
sociedade, gerando a enorme exclusão da grande maioria. Isso explica também o
alto índice de pobreza que herdamos: quase 40% de pobreza e 17% de pobreza
extrema. Números que temos revertido nos últimos seis anos.
Virando o jogo.
Dóris Soliz Carrión
– Em 2007 Correa não apresenta
candidatos à Assembleia porque dizia que, naquele parlamento, não havia
sentido, pois sob essas regras do jogo não se conseguiria realizar os avanços
que o povo precisava. Assim, defendia, vamos à Constituinte. Esta foi a tese
central deste jovem movimento político Alianza País, que agrupou o melhor dos
movimentos sociais, da esquerda e de um movimento cidadão totalmente
inconformado com esse sistema.
Em 2008, 83% da população votou para que houvesse a
Assembleia Constituinte e este foi o nosso primeiro grande triunfo. Uma
demonstração de que nossas propostas estavam absolutamente sintonizadas com o
anseio popular.
Construímos a nova Constituição, a qual precisamos
dar a importância estratégica que tem. Ela é uma rota de longo alento para
construir esse horizonte compartilhado, um novo consenso social. O país que
queremos, com outro modelo de desenvolvimento, se cunhou com um termo tão
lindo, tão sugestivo que vem dos povos indígenas: Bom Viver, (Buen Vivir) que é
muito mais que crescimento econômico: é o equilíbrio entre o bem-estar material
e o desenvolvimento pleno da vida de todos num horizonte de bem-comum. Logo
depois vamos ao segundo processo eleitoral, já com as novas regras do jogo, em
2009, quando ganha também o presidente Correa.
Não tivemos neste momento uma assembleia 100%
favorável, majoritária, daí que tivemos de 2009 a 2013 problemas de obstrução,
problemas inclusive de lógicas conspirativas, como foi o 30 de setembro, onde
um setor de oposição da Assembleia se aliou aos policiais insurretos para por
fim ao processo de mudanças de forma totalmente antidemocrática, mas felizmente
não conseguiram. Quero repetir: A força deste projeto é a força do apoio
popular. O apoio de um povo cada vez mais maduro, mais consciente, que vem passando
do desespero à esperança, da desconfiança à confiança em si mesmo.
Mudanças democráticas, dentro do marco constitucional.
Dóris Soliz Carrión
– Um dos êxitos da Revolução Cidadã é
não sair da rota da Constituição e, contra vento e maré, enfrentando todas as
dificuldades, materializar esse novo marco constitucional. Essa coerência é a
capacidade de cimentar com fatos o que temos proposto, concretizando tudo o que
dizemos em termos de políticas sociais: educação e saúde públicas, moradias
sociais, política para os migrantes. São ações que configuram uma aposta desde
a área social para gerar oportunidades. Esta é a chave para combater a pobreza.
Não são dádivas.
O “bônus do desenvolvimento humano”, por exemplo, é
uma alavanca para gerar oportunidade para o povo equatoriano, para as
comunidades, para os mais pobres. Além disso, há também um bom manejo econômico
das relações internacionais baseado na soberania. Havia uma série de maus
augúrios quando o presidente decidiu renegociar os contratos petroleiros. Se o
petróleo continuasse subindo de preço, o aumento do lucro seria para as
empresas estrangeiras.
O presidente reviu isso e passamos a utilizar
contratos de prestação de serviços, pelos quais pagamos o que temos de pagar
pela exploração do petróleo. Porém as altas e os benefícios adicionais devem ir
todas para o povo equatoriano. Diziam que não íamos conseguir isso, que todas
as empresas petrolíferas sairiam do país. Pois elas ficaram e agora temos uma
relação mais justa onde o grosso dos benefícios do petróleo está financiando a
política social. Este é um olhar histórico, panorâmico, que explicaria o resultado
desta nova eleição onde tivemos uma ratificação contundente desta confiança do
povo equatoriano em Rafael Correa, na proposta da Revolução Cidadã, e eu diria
em si mesmo. Porque para além das escolas, rodovias e hospitais, este é um
crescimento da autoestima e da confiança dos equatorianos, de que somos capazes
de dirigir o nosso próprio destino.
Houve uma enorme multiplicação dos investimentos do Estado, particularmente nas áreas sociais. De que forma a luta política garantiu que este seja mais do que o êxito de uma política de governo, mas de uma política de Estado?
Dóris Soliz Carrión
– A própria Constituição estabelece
prioridades para o Orçamento: investimentos em saúde, educação, nos setores
sociais - se destina 25% do Orçamento a todas estas áreas. Mas, além disso, é
um tema de políticas públicas, de racionalização e bom investimento dos
recursos do Estado. Antes de 2007, boa parte dos recursos do Estado era
direcionada ao pagamento da dívida externa. Este é um ponto muito importante. O
presidente nomeou uma comissão de auditoria da dívida externa que determinou o
que, de alguma forma, sabíamos, mas que nos deu muito mais certeza: a dívida
estava praticamente paga e muito desta dívida era ilegal e imoral.
Isso nos deu a base técnica e política para
renegociar e para comprar parte desta dívida e aliviar a carga orçamentária que
tínhamos comprometida.
O Equador foi pioneiro e sem medo nesta questão da
auditoria. Essa força moral tinha claro de que o primeiro que tínhamos de fazer
era colocar os recursos do país para saldar a dívida histórica com o nosso
povo. E temos investido nisso, incrementando em mais de 300% os investimentos
em educação.
As escolas do nosso país caiam aos pedaços. A
chamada escola pública e gratuita simplesmente não existia. Todos os pais de
família tinham que dar, no mínimo, a chamada “quota voluntária” de 20 dólares
para a matrícula. Logo, tinham que investir nos uniformes escolares, nos
livros, apostilas, e tudo era cobrado na escola pública. Para um lar pobre, com
dois ou três filhos, era impossível matricular os filhos, porque uma família
que vive com 200 ou 300 dólares não podia assumir este tipo de gastos de mais
de 100 dólares mensais para a educação.
Havia um grande contingente de crianças fora da escola...
Dóris Soliz Carrión
– Havia muitíssimas crianças fora da
escola. Hoje já cumprimos o Objetivo do Milênio para a educação básica e
universal, com equidade de gênero: praticamente 100% dos meninos e meninas
estão estudando. Mas garantir a gratuidade e a qualidade da educação pública
não é tão fácil. Para isso houve a valorização e a dignificação da atividade
docente. Antes os professores ganhavam 300 dólares, quando muito. Hoje o
professor que recebe menos, aquele que recém
ingressa na carreira docente, ganha 700 dólares, recebe capacitação e é
avaliado periodicamente para assegurar a evolução do nível e da qualidade.
Aprovamos na Assembleia uma nova lei de educação, intercultural, que permite
também ganharmos em eficiência e excelência com a aplicação de todos os
princípios da educação pública.
O que também pode se comprovar na questão da saúde pública.
Dóris Soliz Carrión
– Sim, o mesmo acontece na saúde. Os
hospitais caiam aos pedaços. O enfermo que precisava ser hospitalizado tinha de
levar a seringa, o gás e o medicamento, porque a linha neoliberal era a
privatização total da saúde, o que excluía milhões de equatorianos do serviço
de atenção pública. Junto com a Seguridade Social, os hospitais do Ministério
da Saúde são cada vez melhores.
Estamos também tapando os buracos históricos de um
modelo territorializado que começa com o nível básico. Recuperamos o conceito
de médico da família, com subcentros nos bairros para a medicina de atenção
primária, a medicina preventiva, além de hospitais especializados da mais alta
qualidade. Por isso alguns serviços públicos estão colapsados pelo crescimento
da procura, porque hoje as pessoas estão buscando o serviço público. Há
portanto uma recuperação significativa do público como sinônimo de qualidade,
como sinônimo do direito que temos cada um dos equatorianos a estes serviços.
Os 100 maiores êxitos da Revolução Cidadã foram sintetizados num pequeno livro em que compara o antes e o depois do governo de Rafael Correa. O que consideras mais importante?
Dóris Soliz Carrión
– Poderia citar nesta pequena síntese
das 100 conquistas da nossa revolução o investimento forte em moradias sociais,
construímos mais de 200 mil, número que supera a todos os últimos governos
juntos. Também para resolver o déficit em infraestrutura, houve investimento
junto aos governos locais em água potável, saneamento, serviços básicos... E
projetamos que o país possa fechar as brechas para as necessidades básicas
insatisfeitas até 2021, se seguir mantendo este ritmo de investimento em
políticas sociais, o que significaria baixar em 20 pontos a pobreza.
Devemos ressaltar que a pobreza se mede por necessidades
básicas insatisfeitas, carência de moradias, serviços básicos, educação, saúde.
A outra forma de medir a pobreza é pelos salários. Esta é uma grande conquista
que o presidente sempre destaca com justa razão: não é que diminuímos a pobreza
com bônus ou medidas assistenciais, vamos diminuindo com redistribuição dos
recursos, diminuindo a desigualdade e gerando oportunidades, que é o que
assegura um país focado em políticas públicas voltadas ao bem comum e não para
pequenos grupos.
Como está a questão da seguridade social?
Dóris Soliz Carrión
– Este é um dos méritos do esforço do
Equador: combater a pobreza fechando as brechas da desigualdade. Aí entra a
questão da geração de emprego digno. O presidente chegou inclusive a defender
que entre as perguntas da consulta popular estivesse o fato de que fosse um
delito penal o fato da não vinculação dos trabalhadores à seguridade social.
Porque aqui isso era negado por muitas empresas.
Havia muitos empregados domésticos a quem
seus patrões simplesmente não pagavam a seguridade social, barrando o acesso a
esse direito básico. Graças ao apoio popular, que disse um sim rotundo na
consulta, agora esse é um delito penal e milhares de trabalhadores recuperaram
esse direito, contando com a proteção do seguro social. Foram gerados mais empregos,
mas dignos, em boas condições, não mais precários ou terceirizados. A
Constituinte nisso foi bastante radical: eliminou a terceirização. O presidente
tem uma filosofia bem clara, para nós vem primeiro o trabalho, depois o
capital. Para essa revolução o ser humano está em primeiro lugar.
O Equador utiliza dois conceitos: o do salário mínimo e o do salário digno. Explique o seu significado.
Dóris Soliz Carrión
– Esta é outra mudança bem
interessante. Antes as empresas declaravam sua mais-valia, que era
posteriormente repartida entre os trabalhadores. Entre as mudanças normativas
importantes está o de que nenhuma empresa redistribua essas ganâncias sem antes
haver assegurado um salário digno. Hoje o salário básico está em 329 dólares e
o salário digno está em 351. Vamos chegando a este salário com a repartição dos
lucros, porque não é justo que acionistas, empresários e trabalhadores recebam
a participação nos lucros e resultados sem antes garantir o salário digno.
Estamos realmente orgulhosos de que o aparato produtivo equatoriano vai
melhorando a qualidade de vida das pessoas porém com trabalho decente, com
direitos sociais.
Leonardo Wexell Severo e Felipe Biancchi – 28.02.2013
Dóris Soliz Carrión – Ministra da Inclusão Econômica
e Social do Equador