Essa política — altiva e ativa — tinha —
e tem — como horizonte estratégico a construção de um pólo de poder em um mundo
em transição.
Sebastião Velasco e Cruz
Não preciso dizer de minha satisfação em estar
nesta mesa, como participante de uma conferência histórica como já é a nossa.
Agradeço os companheiros que empenharam o melhor de seus esforços para torná-la
possível e passo diretamente ao tema que nos ocupa agora.
Desafios e perspectivas da política externa.
Desafios. Eles são muitos e o tempo que temos para falar deles, muito reduzido.
Por isso, ao invés de falar em “desafios”, no plural, vou centrar minha
exposição em um macro desafio, reservando os minutos finais para uma palavra a
respeito das perspectivas.
Peço licença para começar com uma citação.
“Poucos países experimentaram na última década uma melhoria
na sua estatura internacional tão notável quanto o Brasil. … Ainda em 2002, o
Brasil estava lutando com uma instabilidade financeira crônica, e a eleição de
um presidente de passado esquerdista gerou temores de colapso macroeconômico e
dos conflitos políticos do passado.
Desde então, porém, o presidente brasileiro Luiz
Inácio Lula da Silva ganhou elogios generalizados por suas iniciativas
econômicas e sociais. Baseando-se nas iniciativas de seu antecessor, o
presidente Lula tem procurado canalizar a crescente confiança nacional derivada
da consolidação democrática e da estabilidade macroeconômica em uma diplomacia
mais forte.”
Não há nenhuma novidade na afirmativa. Todos nós
partilhamos esse ponto de vista, e é por isso que estamos reunidos nesta
conferência singular. Começar a minha exposição com a leitura dessa passagem
justifica-se porque ela não foi escrita por ninguém do Itamaraty, nem por
nenhum articulista simpático ao governo Lula e à sua política externa. Esse
trecho saiu de um longo relatório preparado para o Instituto de Estudos
Estratégicos da Escola de Guerra do Exército dos Estados Unidos. Sua origem
insuspeita nos permite tomar a afirmativa como uma constatação de fato. Contra
tudo que repetiram incansavelmente políticos de oposição e ex-diplomatas
despeitados, o Brasil descreveu na década passada uma trajetória ascendente no
plano internacional com poucos paralelos.
O trecho citado é útil também porque aponta para
elementos importantes que ajudam a entender aquele fato. O Brasil reúne
condições para ocupar um papel relevante no cenário internacional: a dimensão
de seu território; o tamanho de sua população; a solidez e a diversidade de seu
sistema produtivo, para citar apenas os mais óbvios. Em passado não tão
distante, porém, essas virtualidades — e as aspirações que alimentavam — foram
sistematicamente frustradas por três condicionantes: nos anos 70, o caráter
ditatorial do sistema político, que mesmo em tempos de guerra fria manchava o
país como uma nódoa. Depois, pela crise econômica estrutural que se estendeu
por cerca de quinze anos, cuja expressão mais dramática foi a escalada do
processo inflacionário; por fim — traço de união entre os dois períodos — a
desigualdade obscena que é a marca de origem de nossa sociedade.
É uma conquista do povo brasileiro a superação,
ainda que muito parcial, de tais condicionantes: a construção de uma democracia
política que padece de muitos problemas, mas que já se prolonga por quase três
décadas — uma ordem política com muitos vícios, mas que permitiu a resolução de
crises agudas, sem o concurso de intervenções militares; ordem cuja expressão
maior é uma carta constitucional também cheia de defeitos, mas que tem a
virtude de consagrar uma lista generosa de direitos sociais e de manter sempre
aberta a porta para o reconhecimento de direitos novos.
A estabilização monetária resulta de processos
muito complexos — internos e externos — mas sem o compromisso de preservá-la,
cujos fundamentos estão plantados também no período conturbado de nossa
transição política, ela teria se perdido facilmente, como ocorreu em outros
países, e em outras fases históricas.
E é na transição democrática que tem origem o
terceiro elemento de nossa equação: a ascensão das forças populares na política
brasileira, expressa emblematicamente na trajetória extraordinária de seu líder
maior, e do partido que ele formou.
As políticas sociais do governo Lula, que tanto
contribuíram para projetar o Brasil na cena internacional na última década não
seriam possíveis em outro contexto. Menos plausível ainda seria a eleição de
alguém como Lula à Presidência da República, e, portanto, o seu governo.
O reconhecimento internacional crescente do Brasil
na última década apóia-se em bases objetivas. Mas ele não teria havido — ou
teria sido muito menor — se os dados antes referidos não tivessem encontrado
tradução em uma política externa distinta, perseguida de forma brilhante, com
destemor.
Estamos debatendo os mais diferentes aspectos dessa
política nos três últimos dias. É desnecessário insistir no que já sabemos.
Mas preciso referir brevemente um ponto, sem o qual
não poderia construir o meu argumento. Essa política — altiva e ativa — tinha —
e tem — como horizonte estratégico a construção de um pólo de poder em um mundo
em transição.
Ora, o centro da ordem internacional nesse mundo em
transição é ocupado pelos Estados Unidos. Ao contrário de alguns países amigos,
o governo Lula evitou cuidadosamente antagonizar a superpotência. Mas pela
orientação de sua política externa e, mais ainda, pelo sucesso na condução
dessa política ele estava fadado a colidir com a superpotência em muitos momentos.
Essa afirmação me leva ao outro lado da moeda.
As condições do mundo na década passada formam
outro elemento indispensável para entender o movimento descrito pelo Brasil no
cenário internacional nesse período.
Do ponto de vista econômico, tivemos o auge de um
ciclo de crescimento alimentado pelos déficits gêmeos dos Estados Unidos —
déficit fiscal e comercial — cuja contrapartida eram os superávits acumulados
pela China, que aplicava suas reservas em dólares na compra maciça de títulos
do Tesouro dos Estados Unidos. Alimentado ainda por uma bolha especulativa,
esse ciclo levou a uma alta generalizada no preço das commodities — petróleo,
metais, gêneros alimentícios — que trouxe para o Brasil, a curto prazo, enormes
benefícios.
Depois, como sabemos, sobreveio a crise. Mas ainda
aqui o cenário internacional não foi de todo negativo. Tendo rejeitado
liminarmente a receita recessiva oferecida pelos gênios da oposição, o governo
Lula tomou medidas corajosas para garantir o crédito e estimular a atividade
econômica. O que desejo destacar é que ao fazer isso, ele recebia o respaldo
dos países centrais, que lançados na crise redescobriam as virtudes do estímulo
keynesiano à demanda, e contavam com o dinamismo dos países emergentes para recuperar
as suas combalidas economias.
Em outro plano, a política externa assertiva do
governo Lula realizou-se em um contexto geopolítico condicionado pelo passivo
resultante das aventuras militares da superpotência. Com efeito, atolados na
guerra inglória em que se meteram no Iraque, com suas mãos nas brasas que ainda
ardiam no Afeganistão, os Estados Unidos não tinham muito ânimo para abrir
novas frentes. Sua reação muito contida ao enterro da ALCA e a paciência
demonstrada face aos percalços enfrentados na rodada Doha têm muito a ver com
essas circunstâncias.
Em suma, a ascensão do Brasil na década passada
ocorreu na confluência de influxos favoráveis, que provinham do dinamismo da
sociedade e da política brasileiras, de um lado, e do contexto internacional,
de outro.
Pois bem, este contexto, no presente, se apresenta
sob outra figura. A crise financeira global transformou-se rapidamente em crise
econômica, que se arrasta desde então, mantendo a Europa em estado de longa
letargia. Os emergentes, entre eles o Brasil, que foram fonte de dinamismo no
primeiro momento, têm suas previsões de crescimento revistas para baixo, e a
China – também afetada por essa tendência — toma medidas para reestruturar sua
economia segundo um padrão mais introvertido. Enquanto isso, apesar das taxas
renitentes de desemprego, os Estados Unidos ficam bem na foto, com a retomada
da expansão em níveis comparativamente elevados, e uma onda de otimismo criado
pelo desenvolvimento de tecnologias não convencionais para a exploração de suas
vastas reservas de gás e xisto betuminoso.
Por outro lado, o reposicionamento empreendido pelo
governo Obama altera significativamente o quadro geopolítico, com o
desengajamento de tropas no Afeganistão, a recusa de comprometer tropas do
exército em novas ocupações territoriais, e a redução do custo humano para o
seu aparato militar de sua política agressiva, através da terceirização da
guerra e do emprego crescente de aparelhos eletronicamente guiados, como os
veículos aéreo não tripulados, os chamados drones. A contrapartida desse
movimento é o investimento material e político incrementado que passa a fazer
na Ásia, com vistas à contenção da China.
Em outro plano, os Estados Unidos parecem voltar as
costas para as negociações multilaterais, e se lançam em duas iniciativas de
grande envergadura: a negociação de uma grande área de livre comércio ligando
as duas franjas do Pacífico: a Parceria Transpacífica, e outra, mais recente,
que visa aprofundar, por meios similares, a integração entre a economia norte-americana
e a União Européia: a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento.
São dois grandes vetores de uma estratégia
integrada cujo mote é a restauração do poder americano, abalado pelos
desacertos passados. O episódio Snowden deve ser visto nesta perspectiva. O
importante aí, acredito, não é tanto o fato de que os Estados Unidos se valem
dos meios tecnológicos à sua disposição para monitorar as comunicações
telefônicas e eletrônicas por todo o globo. Isso já era sabido desde meados da
década de 90, quando veio a público a existência do programa Echelon. Mais
significativa é a resposta do governo Obama: a justificativa da ação, para o
público interno, e o empenho obsessivo em aplicar ao denunciante uma punição
exemplar. Empenho ao qual se curvam os países da União Européia — eles mesmos
vítimas da espionagem denunciada, a qual responderam com proclamações iradas
logo desmentidas por gestos vergonhosos de subserviência.
O macro desafio é claro. Ele se traduz nesta
pergunta singela: como aprofundar as linhas gerais da política externa, dando
resposta, ao mesmo tempo, aos problemas do desenvolvimento econômico e às
demandas crescentes de sua população, em um quadro internacional tão adverso,
sabendo que as forças que articulam este ambiente internacional não são
externas ao Brasil, mas encontram-se muito presentes aqui entre nós, e têm
entre nós um poder ainda mais saliente?
E o que dizer das perspectivas? Que futuro esperar
para a política externa brasileira, na forma como foi concebida e praticada nesses
dez últimos anos?
Não há como responder assertivamente a esta
questão. O futuro mais distante é incerto, e depende de uma série de variáveis
que não controlamos. Como evoluirá a crise européia? Com que grau de sucesso se
efetuará a transição chinesa para um novo modelo de desenvolvimento, com foco
maior no mercado interno e na expansão do consumo? Como dosar realismo e
euforia enganosa nas projeções que pululam a respeito da autonomia energética
futura dos Estados Unidos e seu reaparecimento no cenário global como
exportador de energia?
São apenas alguns exemplos. Poderíamos
multiplicá-los numa série indeterminada de perguntas. A respeito do futuro, o
máximo que podemos fazer é identificar tendências, formular conjecturas e
traçar cenários com base nelas.
Mas, no momento, compensaria o esforço para fazer
isso? Como disse certa vez o economista “a longo prazo, estaremos mortos.” Para
além do efeito jocoso, o que Keynes — o crítico do rentismo especulativo —
pretendia com a boutade não era recomendar o desprezo pelas conseqüências mais
remotas das decisões que tomamos, mas salientar que o futuro se desenha como
somatório das decisões sucessivas que tomamos a cada momento.
Ao discutir as perspectivas de uma determinada
política em uma dada conjuntura, a questão preliminar decisiva é definir o
horizonte de tempo relevante.
No nosso caso, essa operação me parece bem fácil.
Em outubro do ano que vem, teremos eleições gerais, e elas terão incidência
decisiva sobre a política que discutimos.
Mesmo quando os ventos sopravam a seu favor, a
política externa sempre esteve sob ataque cerrado de críticos muito bem
instalado no universo dos partidos políticos, na academia e, sobretudo, nos
meios de comunicação.
Ora, neste momento em que o ambiente internacional
se torna inóspito e as dificuldades internas se acumulam, o ataque à política
externa dos últimos anos será muito mais pesado.
E será mais rigoroso ainda porquanto não terá como
objeto este ou aquele elemento isolado da política, mas os seus eixos centrais,
já agora apontados como uma excrescência.
Esse ataque virá no bojo de uma crítica aos
elementos constitutivos do modelo de política econômica que garantiu durante
vários anos o círculo virtuoso do crescimento razoável, aliado à ampliação
contínua e significativa do emprego formal e da renda, mesmo se com taxas
básicas de juro escandalosas e um câmbio distorcido.
As propostas alternativas estão aí, e os
laboratórios de idéias da direita têm trabalhado com afinco na produção de
argumentos para torná-las persuasivas.
Não importa muito discuti-las no mérito. Sólidas e
realistas, ou não, elas se creditam pelo efeito político que possam gerar.
É aí que o plano externo e interno se cruzam, e se
reforçam mutuamente. Em 2010, a oposição conservadora criticava o Mercosul, mas
não tinha nada de muito concreto a oferecer como substituto. Agora, pode acenar
com a opção de integrar o país nos projetos antes aludidos, acenando com a
perspectiva de engatar o nosso vagão em um comboio em marcha.
Podemos até imaginar o mote: eles falam em
construir cadeias regionais, mas o que precisamos é nos integrar em
cadeias globais já existentes.
Não tenho tempo para desenvolvê-lo, mas gostaria de
concluir salientando um ponto. Quando pleiteamos participação no processo
decisório da política externa, é importante ter em mente que esta política —
tal como a conhecemos hoje — está sob grave ameaça. Mais importante ainda é
tirar as conseqüências práticas devidas
desta constatação.
Sebastião Velasco e
Cruz – Cientista Político, professor
titular da Universidade Estadual de Campinas e Pesquisador do Centro de Estudos
de Cultura Contemporânea – 25.07.2013
Palestra apresentada em evento na UFABC Conferência Nacional 2003-2013: Uma nova política externa do Brasil
Palestra apresentada em evento na UFABC Conferência Nacional 2003-2013: Uma nova política externa do Brasil