A campanha abolicionista, em fins do
século XIX, mobilizou vastos setores da sociedade brasileira. No entanto,
passado o 13 de maio de 1888, os negros foram abandonados à própria sorte, sem
a realização de reformas que os integrassem socialmente. Por trás disso, havia
um projeto de modernização conservadora que não tocou no regime do latifúndio e
exacerbou o racismo como forma de discriminação.
Gilberto
Maringoni
A campanha que culminou com a abolição da escravidão, em 13 de maio de
1888, foi a primeira manifestação coletiva a mobilizar pessoas e a encontrar
adeptos em todas as camadas sociais brasileiras. No entanto, após a assinatura
da Lei Áurea, não houve uma orientação destinada a integrar os negros às novas
regras de uma sociedade baseada no trabalho assalariado.
Esta é uma história de tragédias, descaso, preconceitos, injustiças e
dor. Uma chaga que o Brasil carrega até os dias de hoje.
Uma das percepções mais agudas sobre a questão foi feita em 1964 pelo
sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995). Em um livro clássico, chamado A
integração do negro na sociedade de classes, ele foi ao centro do problema:
“A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil,
sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de
assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de
trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção
e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra
instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los
para o novo regime de organização da vida e do trabalho. (...) Essas facetas da
situação (...) imprimiram à Abolição o caráter de uma espoliação extrema e
cruel”.
As razões desse descaso ligam-se diretamente à maneira como foi
realizada a libertação.
Várias causas podem ser arroladas como decisivas para a Abolição, algumas episódicas e outras definidoras. É possível concentrar todas numa ideia-mestra: o que inviabilizou o escravismo brasileiro foi o avanço do capitalismo no País. Longe de ser um simplismo mecânico, a frase expressa uma série de contradições que tornaram o trabalho servil não apenas anacrônico e antieconômico, mas sobretudo ineficiente para o desenvolvimento do País. Com isso, sua legitimidade passou a ser paulatinamente questionada.
Várias causas podem ser arroladas como decisivas para a Abolição, algumas episódicas e outras definidoras. É possível concentrar todas numa ideia-mestra: o que inviabilizou o escravismo brasileiro foi o avanço do capitalismo no País. Longe de ser um simplismo mecânico, a frase expressa uma série de contradições que tornaram o trabalho servil não apenas anacrônico e antieconômico, mas sobretudo ineficiente para o desenvolvimento do País. Com isso, sua legitimidade passou a ser paulatinamente questionada.
Acelerada transformação
O Brasil das últimas três décadas do século XIX era uma sociedade em
acelerada transformação. A atividade cafeeira vinha ganhando o centro da cena
desde pelo menos 1840. O setor exportador torna-se o polo dinâmico da economia,
constituindo-se no principal elo do País com o mercado mundial. Havia outras
atividades de monta ligadas à exportação, como a borracha e a cana. Mas, a essa
altura, a supremacia do café era incontestável.
A partir de 1870, com o fim da Guerra do Paraguai (1864-1870), a
agricultura de exportação vive uma prosperidade acentuada. Um expressivo fluxo
de capitais, notadamente inglês, foi atraído para as áreas de infraestrutura de
transportes – ferrovias, companhias de bonde e construção de estradas – e
atividades ligadas à exportação, como bancos, armazéns e beneficiamento, todos
garantidos pelo Estado.
O período marca a supremacia incontestável do império britânico. A
expansão da economia internacional e a demanda crescente por matérias primas
por parte dos países que viviam a Segunda Revolução Industrial resulta em um
ciclo de investimentos nos países periféricos. O historiador inglês Eric
Hobsbawm assinala o seguinte em seu livro A Era dos Impérios:
“O investimento estrangeiro na América Latina atingiu níveis assombrosos
nos anos 1880, quando a extensão da rede ferroviária argentina foi
quintuplicada, e tanto a Argentina como o Brasil atraíram até 200 mil
imigrantes por ano”.
A campanha abolicionista
Embora rebeliões, fugas e a organização de quilombos já existissem no
Brasil desde o século XVI e várias rebeliões regionais já tivessem a
emancipação dos cativos em pauta, uma campanha organizada só acontece nas
últimas décadas do século XIX.
A questão entra na agenda institucional a partir do final de agosto de
1880, quando é fundada a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão. Começavam,
no Parlamento, os debates sobre o projeto de libertação geral, apresentado pelo
deputado pernambucano Joaquim Nabuco (1849-1910).
Uma intensa pressão popular resulta na libertação dos negros no Ceará,
em 1884. Uma aguda crise na lavoura e reflexos da seca de 1877, além da ação de
grupos urbanos, inviabilizaram o regime de cativeiro na região. Incentivado por
esse desenlace, o abolicionismo toma ares de movimento em diversas províncias,
como Rio Grande do Sul, Amazonas, Goiás, Pará, Rio Grande do Norte, Piauí e
Paraná.
A essa altura, a libertação total dos escravos já era uma possibilidade
real. A perda de legitimidade da escravidão acentuava-se especialmente nas
grandes cidades. A reação vinha de setores da oligarquia cafeeira, temerosos de
um solavanco nos negócios com a previsão de perda de seu “capital humano” da
noite para o dia. Como as evasões tornavam- -se frequentes, aumentou a
repressão contra escravos fugidos em vários municípios da província do Rio de
Janeiro.
Escravidão e modernidade
A escravidão concentrava-se nas partes mais modernas da economia e
tornara-se menos relevante nos setores atrasados ou decadentes. Em 1887, o
Ministério da Agricultura, em seu relatório anual, contabilizava a existência
de 723.419 escravos no País. Desse total, a Região Sudeste (São Paulo, Rio de
Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo), produtora de café, abarcava uma
população cativa de 482.571 pessoas. Todas as demais regiões respondiam por um
número total de 240.848.
Ao mesmo tempo, o País passara a incentivar, desde 1870, a entrada de
trabalhadores imigrantes – principalmente europeus – para as lavouras do
Sudeste. É um período em que convivem, lado a lado, escravos e assalariados. Os
números da entrada de estrangeiros são eloquentes. Segundo o IBGE, entre 1871 e
1880, chegam ao Brasil 219 mil imigrantes. Na década seguinte, o número salta
para 525 mil. E, no último decênio do século XIX, após a Abolição, o total soma
1,13 milhão.
A implantação de uma dinâmica capitalista – materializada nos negócios
ligados à exportação de café, como casas bancárias, estradas de ferro, bolsa de
valores etc. – vai se irradiando pela base produtiva. Isso faz com que parte da
oligarquia agrária se transforme numa florescente burguesia, estabelecendo
novas relações sociais e mudando desde as características do mercado de
trabalho até o funcionamento do Estado.
Para essa economia, o negro cativo era uma peça obsoleta. Além de seu
preço ter aumentado após o fim do tráfico, em 1850, o trabalho forçado
mostrava-se mais caro que o assalariado. Caio Prado Jr. (1907-1990), em seu
livro História econômica do Brasil, joga luz sobre a questão:
“O escravo corresponde a um capital fixo cujo ciclo tem a duração da
vida de um indivíduo; assim sendo, (...) forma um adiantamento a longo prazo do
sobretrabalho eventual a ser produzido. O assalariado, pelo contrário, fornece
este sobretrabalho sem adiantamento ou risco algum. Nestas condições, o
capitalismo é incompatível com a escravidão”.
O economista João Manuel Cardoso de Mello escreve em seu O capitalismo
tardio que:
“O trabalho assalariado se tornara dominante e o abolicionismo, a
princípio um movimento social amparado apenas nas camadas médias urbanas e que
fora ganhando para si a adesão das classes proprietárias dos Estados
não-cafeeiros, na medida em que o café passara a drenar para si escravos de
outras regiões, recebera, agora, o respaldo do núcleo dominante da economia
cafeeira. Abolicionismo e Imigrantismo tornaram-se uma só e mesma coisa”.
Cara e obsoleta
Esta condição – da escravidão ser uma relação de trabalho obsoleta –
acentuou a necessidade de sua superação, tanto no plano econômico quanto no
social e político.
A Abolição não era apenas uma demanda por maior justiça social, mas uma
necessidade premente da inserção do Brasil na economia mundial, que já
abandonara em favor do trabalho assalariado, mais barato e eficiente.
Um artigo publicado no semanário abolicionista Revista
Illustrada, em 30 de abril de 1887, argumenta que a economia brasileira
àquela altura já não dependia majoritariamente do trabalho servil:
“Pelos dados do Ministério da Agricultura, calcula-se que a cifra dos
escravizados não chegue a 500 mil. Tirem-se as mulheres (50%), tirem-se os
escravos das cidades, que nada produzem, e ver-se-á que o que fica para
auxiliar a produção nacional é uma cifra tão irrisória, que podemos, com
orgulho, afirmar, que a produção do nosso país já é devida aos livres”.
Os números não são exatamente iguais aos do Relatório do Ministério da
Agricultura, já mencionado. Mas o comentário é digno de nota.
O fim do regime de cativeiro em São Paulo, em fevereiro de 1888, por
exemplo, é ilustrativo. Às rebeliões de escravos ao longo da década de 1880
vieram se somar o formidável fluxo de mão-de-obra imigrante que chegava para a
lavoura e para a incipiente indústria, inaugurando o regime de trabalho livre.
A província já iniciara uma arrancada econômica – com a construção de ferrovias,
instalação de casas bancárias e aumento das exportações – que a colocaria, na
segunda década do século XX, na dianteira do desenvolvimento nacional. A
libertação não representou nenhum abalo de monta para a economia regional.
A situação era diversa na província do Rio de Janeiro. A região
enfrentava uma crise, com vários produtores rurais endividados em bancos. A
libertação poderia representar um sério abalo. Com isso, os fazendeiros
fluminenses ficaram contra a libertação.
Limites do Abolicionismo
Apesar da ênfase abolicionista de setores das camadas médias e mesmo das
elites em alguns centros urbanos, a pregação libertária tinha limites. Eles
tornam-se perceptíveis quando examinamos que tipo de campanha os ideólogos da
elite pretendiam realizar. Vale a pena conhecer as ideias do mais importante
intelectual da emancipação, Joaquim Nabuco. Como deputado, ele liderou a
jornada no parlamento.
Um trecho de sua obra mais importante, O abolicionismo,
escrita em 1882, é esclarecedor. Nesta, Nabuco alega ter um “mandato da raça
negra” (embora escravos não votassem):
“O mandato abolicionista é uma dupla delegação, inconsciente da parte
dos que a fazem, (...), interpretada pelos que a aceitam como um mandato a que
não se pode renunciar. Nesse sentido, deve-se dizer que o abolicionista é o
advogado de duas classes sociais que de outra forma não teriam meios de
reivindicar seus direitos, nem consciência deles. Essas classes são: os
escravos e os ingênuos. Os motivos pelos quais essa procuração tácita impõem-nos
uma obrigação irrenunciável não são puramente - para muitos não são mesmo
principalmente - motivos de humanidade, compaixão e defesa generosa do fraco e
do oprimido”.
Rico, filho do senador José Tomás Nabuco de Araújo (1813-1878), o
parlamentar é membro de uma importante família pernambucana que teve entre seus
membros altos funcionários do Império. Sigamos suas concepções:
“A propaganda abolicionista (...) não se dirige aos escravos. Seria uma
covardia, inepta e criminosa e, além disso, um suicídio político para o partido
abolicionista, incitar à insurreição, ou ao crime, homens sem defesa e que a
lei da Lynch, ou a justiça pública, imediatamente, haveria de esmagar”.
Por que Nabuco pensa assim? Acompanhemos:
“A escravidão não há de ser suprimida no Brasil por uma guerra servil,
muito menos por insurreições ou atentados locais. (...) A emancipação há de ser
feita entre nós por uma lei que tenha os requisitos, externos e internos, de
todas as outras. É, assim, no Parlamento, e não em fazendas ou quilombos do
interior, nem nas ruas e nas praças das cidades que se há de ganhar ou perder a
causa da liberdade”.
Sintetizemos: para Nabuco, o negro não tem consciência nem voz. Precisa
de alguém para defendê-lo. É natural que quem o faça seja um branco, culto e
influente. Mesmo assim, o negro não pode participar das mobilizações que visem
mudar sua sina, sob pena de termos um cenário imprevisível.
Mesmo José do Patrocínio (1853-1905), tido como um abolicionista
radical, não apresenta visão muito distinta. Pregava, no entanto, a necessidade
de a campanha ganhar as ruas. O chamado Tigre da Abolição falava
em “revolução”. Mas apontava ressalvas, dizendo ser necessária uma “aliança do
soberano com o povo”:
“É uma revolução de cima para baixo. O povo não teria força por si só
para realizar a abolição da escravidão”.
Legalidade monárquica
As pregações de Nabuco e de Patrocínio envolviam duas vertentes
principais.
A primeira é que o abolicionismo deveria ser conduzido nos estreitos
limites da legalidade monárquica e escravocrata, no Parlamento e, no máximo, em
salões e saraus. Deveria ser fruto de uma solução negociada entre o Estado e os
fazendeiros, no espaço institucional e não no espaço social e público, sem
risco de perda de controle.
A segunda é que os negros seriam sujeitos passivos nesse conflito. A
essência da campanha abolicionista da chamada elite branca era clara: a
emancipação deveria libertar os cativos sem tocar na ordem econômica vigente,
centrada no latifúndio. Para isso, havia ao receio de que o movimento ganhasse
as ruas, envolvendo seus principais interessados, os negros, e tivesse
contornos de desobediência civil.
Em seu livro Onda negra, medo branco, Celia Maria Marinho de
Azevedo chama a atenção para algumas decorrências dessa situação:
“Tudo se passa, enfim, como se os abolicionistas tivessem dado o impulso
inicial e dirigido os escravos nestas rebeliões e fugas (...).Quanto aos
escravos, tem-se a impressão de que são vítimas passivas, subitamente acordadas
e tiradas do isolamento das fazendas pelos abolicionistas; ou então (...) a
ideia que se passa é a de que o negro, apesar de toda a sua rebeldia, estava
impossibilitado de conferir um sentido político às suas ações”.
Foi com esse caldo de cultura que se preparou a Abolição como uma
intervenção restrita à libertação, sem medidas complementares, como reforma
agrária, ampliação do mercado de trabalho, acesso à educação, saúde etc.
O que estava em jogo para a elite branca não era principalmente uma
reforma social, mas a liberação das forças produtivas dos custos de manutenção
de um grande contingente de força de trabalho confinada. A escravidão, no final
do século XIX, tornara-se um obstáculo ao desenvolvimento econômico.
A libertação
Em maio de 1888 veio a Lei Áurea e, 16 meses depois, como consequência
direta das contradições que vivia o País, a República.
Com a abundância de mão de obra imigrante, os ex-cativos acabaram por se
constituir em um imenso exército industrial de reserva, descartável e sem força
política alguma na jovem República.
Os fazendeiros – em especial os cafeicultores – ganharam uma
compensação: a importação de força de trabalho europeia, de baixíssimo custo,
bancada pelo poder público. Parte da arrecadação fiscal de todo o País foi
desviada para o financiamento da imigração, destinada especialmente ao Sul e
Sudeste. O subsídio estatal direcionado ao setor mais dinâmico da economia
acentuou desequilíbrios regionais que se tornaram crônicos pelas décadas
seguintes. Esta foi a reforma complementar ao fim do cativeiro que se
viabilizou. Quanto aos negros, estes ficaram jogados à própria sorte.
A esse respeito, Celia Maria Marinho de Azevedo lembra que:
“A força de atração destas propostas imigrantistas foi tão grande que,
em fins do século, a antiga preocupação com o destino dos ex-escravos e pobres
livres foi praticamente sobrepujada pelo grande debate em torno do imigrante
ideal ou do tipo racial mais adequado para purificar a ‘raça brasílica’ e
engendrar por fim a identidade nacional”.
As teorias do branqueamento
A libertação trouxe ao centro da cena, além do projeto de modernização
conservadora para a economia, o delineamento social que a elite desejava para o
País. Voltemos a Joaquim Nabuco, em O abolicionismo:
“O principal efeito da escravidão sobre a nossa população foi
africanizá-la, saturá- -la de sangue preto. (...) Chamada para a escravidão, a
raça negra, só pelo fato de viver e propagar-se, foi se tornando um elemento
cada vez mais considerável na população”.
Nabuco não pregava no deserto. O mais importante defensor da imigração
como fator constitutivo de uma “raça brasileira” foi Silvio Romero (1851-1914).
Republicano e antiescravocrata, ele notabilizou-se como crítico e historiador
literário. Romero preocupa-se em relacionar fatores físicos e populacionais do
País ao desenvolvimento da cultura. Segundo ele, no Brasil, desde o período
colonial, se formou uma mestiçagem original. Este seria um fator decisivo para
a superação de nosso atraso, através da futura constituição de uma “raça”
brasileira, com supremacia branca. Daí a necessidade da imigração europeia.
Vamos às suas palavras, em 1885, na introdução do livro Contos populares do
Brasil (1885):
“Das três raças que constituíram a atual população brasileira a que um
rastro mais profundo deixou foi por certo a branca segue-se a negra e depois a
indígena. À medida, porém, que a ação direta das duas últimas tende a diminuir,
com o internamento do selvagem e a extinção do tráfico de negros, a influência
europeia tende a crescer com a imigração e pela natural tendência de prevalecer
o mais forte e o mais hábil. O mestiço é a condição dessa vitória do branco,
fortificando-lhe o sangue para habilitá-lo aos rigores do clima”.
Essas opiniões evidenciam o pensamento dos abolicionistas sobre a
composição étnica pretendida para o País. Membros das camadas médias e altas
urbanas, cultos, cosmopolitas, alguns ligados diretamente à oligarquia rural –
caso de Nabuco – e em sua maioria defensores do “progresso” (os positivistas)
ou do “desenvolvimento” (os liberais), a eles interessava sobretudo a
modernização do país, a equiparação de hábitos de consumo aos correspondentes
das camadas mais altas dos países ricos e a integração do Brasil, tanto
econômica, como política e ideologicamente, aos parâmetros do liberalismo.
Não havia contradição, em fins do século XIX, em alguém se apresentar
como um acendrado abolicionista e, ao mesmo tempo, manifestar um racismo ou um
elitismo acentuado. Não há vínculo entre ambas as coisas, assim como não havia
compromisso algum entre a grande maioria dos abolicionistas e os negros
cativos. O mais importante era não tocar na ordem institucional, que tinha como
pilar central a grande propriedade da terra.
Raízes do racismo
O preconceito racial abolicionista tinha raízes dentro e fora do País. A
propalada superioridade da raça branca era parte constitutiva da ideia de
“progresso”, lembra o historiador Eric Hobsbawm.
No século XIX, os maiores países europeus passam a ser, com hierarquias
variadas, centros de poder imperial, conquistando colônias na África e na Ásia.
Havia um nó teórico a ser desatado: como regimes liberais, lastreados nas
ideias da Revolução Francesa (1789), poderiam colonizar nações inteiras,
subjugando povos e culturas a seus desígnios?
É nesse ponto que surgem as primeiras teorias racialistas para
justificar a superioridade intelectual, física e moral do europeu branco. O
primeiro grande formulador foi o conde francês Joseph-Arthur Gobineau
(1816–1882).
Diplomata, poeta, romancista e escultor, Gobineau tornou-se conhecido
após a publicação de seu Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1855).
Se os outros povos eram inferiores, como poderiam ter os mesmos direitos dos
europeus?
A noção de superioridade racial passara a ser legitimadora da ordem
imperial, na qual o fornecimento ininterrupto e a bom preço de matérias primas
era o combustível para o funcionamento da economia internacional. As teorias
raciais surgiram para legitimar uma concepção de mundo que pregava liberdade,
igualdade e fraternidade entre brancos e que justificava a superexploração de
outras etnias.
E a ideologia do racismo passou a existir dentro de cada país, mesmo nos
da periferia do sistema, como explicação determinista para a dominação de
classe, o desnível social e a europeização acrítica de suas camadas dominantes.
Indesejados dos novos tempos
Os ex-escravos, além de serem
discriminados pela cor, somaram- -se à população pobre e formaram os
indesejados dos novos tempos, os deserdados da República. O aumento do número
de desocupados, trabalhadores temporários, lumpens, mendigos e crianças
abandonadas nas ruas redunda também em aumento da violência, que pode ser
verificada pelo maior espaço dedicado ao tema nas páginas dos jornais.
Escrevendo sobre esse período, Lima Barreto (1881-1922) ressalta que:
“Nunca houve anos no Brasil em que os pretos (...) fossem mais postos à
margem”.
A descrição do historiador Luiz Edmundo (1878-1961), em seu livro O Rio
de Janeiro do meu tempo, sobre morro de Santo Antônio e suas moradias e vielas
miseráveis, poucos anos depois, mostra um pouco da cartografia humana da então
capital:
“Por elas vivem mendigos, os autênticos, quando não se vão instalar
pelas hospedarias da rua da Misericórdia, capoeiras, malandros, vagabundos de
toda sorte: mulheres sem arrimo de parentes, velhos que já não podem mais
trabalhar, crianças, enjeitados em meio a gente válida, porém o que é pior, sem
ajuda de trabalho, verdadeiros desprezados da sorte, esquecidos de Deus...(...)
No morro, os sem- -trabalho surgem a cada canto”.
O novo regime, apesar das promessas, não viera para democratizar a
sociedade ou possibilitar uma maior mobilidade social. Por suas características
acentuadamente oligárquicas, a República brasileira chegara para manter
intocada uma estrutura elitista e excludente.
Por conta disso, as autoridades logo voltam-se para a repressão a diversas
manifestações populares. A partir de 1890, são impiedosamente perseguidos os
capoeiras, valentões, predominantemente negros e pobres, que praticavam essa
modalidade de luta pelas ruas do Rio de Janeiro.
Largados à própria sorte
Em que pesem alguns episódios específicos, a base fundamental da
campanha abolicionista movida por setores da elite econômica dos anos 1880
estava longe de ser um humanitarismo solidário aos negros, ou a busca de
reformas sociais democratizantes. Isso tornou-se evidente com o passar dos
anos, apesar de um discurso contraditório de setores das classes dominantes,
simpáticos à libertação. Havia, por exemplo, o caso do projeto abolicionista de
Joaquim Nabuco. Rejeitado pela Câmara dos Deputados, em fins de 1880, o texto
manifestava alguma preocupação social. Seu artigo 49 definia:
“Serão estabelecidas nas cidades e vilas aulas primárias para os
escravos. Os senhores de fazendas e engenhos são obrigados a mandar ensinar a
ler, escrever, e os princípios de moralidade aos escravos”.
E havia mais. O historiador Robert Conrad assinala que:
“Os abolicionistas radicais, como Nabuco, André Rebouças, José do
Patrocínio, Antonio Bento, Rui Barbosa, Senador Dantas e outros esperavam que a
extensão da educação a todas as classes, a participação política em massa e uma
ampliação de oportunidades econômicas para milhões de negros e mulatos e outros
setores menos privilegiados da sociedade brasileira viessem a permitir que
estes grupos assumissem um lugar de igualdade numa nação mais homogênea e
próspera”.
O mesmo pesquisador assinala ainda o fato de que “durante os anos
abolicionistas, a reforma agrária foi proposta frequente e urgentemente”. E
lembra do plano de André Rebouças, no qual grandes proprietários venderiam ou
alugariam lotes de terras a libertos, imigrantes e lavradores. Trata-se de uma
modalidade de reforma que prescinde da democratização fundiária,
restringindo-se às regras do mercado então vigentes.
Quando a campanha abolicionista tomou vulto, tais propostas foram pouco
a pouco sendo deixadas de lado.
Quais as razões disso? Voltemos a Florestan Fernandes. Talvez a resposta
esteja sintetizada neste trecho de seu livro já citado:
“A preocupação pelo destino do escravo se mantivera em foco enquanto se
ligou a ele o futuro da lavoura. Ela aparece nos vários projetos que visaram
regular, legalmente, a transição do trabalho escravo para o trabalho livre,
desde 1823 até a assinatura da Lei Áurea. (...) Com a Abolição pura e simples,
porém, a atenção dos senhores se volta especialmente para seus próprios
interesses. (...) A posição do negro no sistema de trabalho e sua integração à
ordem social deixam de ser matéria política. Era fatal que isso sucedesse”.
A história que se seguiu confirmou essas palavras.
Gilberto Maringoni – Historiador e jornalista, desde o final de
2013 é professor de Relações Internacionais na UFABC –2012
IN Revista
Desafios do Desenvolvimento/IPEA, ed. 70 – http://desafios.ipea.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2673:catid=28&Itemid=23