Só em São Paulo há uma política de
encarceramento tão agressiva; só no estado há uma única facção na regulação
tanto de condutas criminais quanto dos preços nos mercados ilegais; só em SP
isso redundou na redução de 70% dos homicídios; só no estado a “guerra” entre
crime e governo pode ter a magnitude vista em 2012.
Gabriel de Santis Feltran
Em São Paulo não é apenas o governo que produz “políticas de segurança”.
Há vinte anos, o mundo do crime também reivindica
para si o papel de garantidor da ordem e operador da justiça em diferentes
situações, grupos e territórios das periferias. Tenho estudado essa dinâmica em
pesquisa de campo e em diálogo estreito com uma rede de pesquisadores.
Apresento aqui uma interpretação das relações entre as políticas estatais e
as políticas do crime, que, coexistindo em São Paulo,
conferem os limites atuais da ordem urbana. Para tanto, conto uma história
telegráfica dos vinte anos de Primeiro Comando da Capital (PCC).
O PCC teve origem em 1993, dentro de uma cadeia, um ano depois do
Massacre do Carandiru. Reivindicava reação a qualquer opressão do sistema
contra os presos,mas tambémdo preso contra o preso.Legitimou
sua autoridade no cárcere por aplicar políticas expressas de interdição do
estupro, do homicídio considerado injusto e, posteriormente, do crack dentro
das prisões sob seu regime. Firmou-se como interlocutor entre os gestores e
funcionários dos presídios, porque a disciplina estrita que introduzia nas “suas”
unidades prisionais lhes era funcional. Durante os anos 1990, a guerra
sangrenta contra grupos rivais e desrespeito ao procederassociou-se
ao ideal de “paz entre os ladrões” do Partido. Quanto mais o PCC se
expandia, mais o governo investia na ampliação do sistema que o nutria: metas
crescentes de encarceramento, construção de dezenas de novas unidades e
interiorização das prisões. A reforma dos anos 1990 quadruplicou a população
carcerária paulista na década seguinte, impulsionada pela equivalência do tráfico
de drogas a crime hediondo, que jogou dezenas de milhares de jovens nas
cadeias. As prisões passaram a ser chamadas de “faculdades”. O PCC construiu
sua hegemonia no crime.
Em 2001, o Comando mostrava força promovendo uma
“megarrebelião”, simultânea em mais de vinte presídios. As políticas estatais
reagiram, radicalizando a lógica da punição: criou-se o Regime Disciplinar
Diferenciado. A imprensa deixou de utilizar a sigla PCC nos noticiários; o que
os olhos não leem, a política não sentiria. Mas, entre 2001 e 2006, a facção
foi cada vez mais comentada nas periferias do estado. Negociava-se ativamente,
em cada “quebrada”, a presença local dos “irmãos”, integrantes da facção, que
zelariam ali por uma justiça específica, baseada em debates e deliberações rápidas,
exemplares. O PCC tornava-se instância de poder instituinte nos bairros pobres;
os moradores admitiram, temeram, consentiram, aprovaram. O tráfico de drogas
foi instado a desarmar seus vendedores no varejo, o preço da droga foi
congelado para evitar concorrência. Não se podia mais matar, por ali, sem o
aval do Partido; as vinganças estavam interditadas, a bandeira
branca, hasteada. “A fórmula mágica da paz”, cantada pelo rap. Políticas docrime.
Em maio de 2006, as novas dimensões do Comandoforam conhecidas.
Ataques coordenados em todas as periferias de São Paulo somaram-se a rebeliões
em mais de oitenta prisões. Dezenas de policiais foram assassinados numa só
noite. A vingança oficial aos “ataques” foi exemplar: 493 homicídios cometidos
por policiais nas periferias, em uma semana. Mais quinhentos outros
assassinatos nas três semanas seguintes. Em vez de um descalabro, esse
extermínio foi acolhido publicamente como seu contrário: a retomada do Estado
democrático de direito e da ordem pública em São Paulo.
De 2006 a 2011, na esteira dessa nova configuração de forças, a tensão
entre PCC e polícias foi latente. A trégua nos enfrentamentos violentos foi
baseada na significativa inflação dos “acertos” entre policiais e ladrões. Uma
geração de trabalhadores da droga viveu a adolescência sem contabilizar colegas
mortos, como fez a anterior. As taxas de homicídio caíram, agora, ainda mais
intensamente. Nas periferias de São Paulo, em 2011 os homicídios de jovens
foram cerca de um décimo das taxas de 2000. Os gestores da segurança estatal
celebraram o sucesso de suas políticas, e as mães da periferia agradeceram ao
PCC. Não importava se o “crime” estivesse cada vez mais infiltrado na
sociabilidade dos bairros pobres nem que latrocínios crescessem. A taxa de homicídios
seria um indicador unívoco de sucesso do governo. Os argumentos de que o PCC
atuava nessa redução demoraram a ser escutados publicamente, e a política
estatal seguiu intocada: encarceramento maciço, repressão ostensiva,
criminalização do pequeno trabalhador da droga, militarização da gestão
pública. O encarceramento foi mesmo pensado como desenvolvimento (das pequenas
cidades que recebem presídios, dos grandes empresários que não pagam pela mão
de obra dos presos).
Em junho de 2012, entretanto, por uma série de fatores – acúmulo de
“acertos” descumpridos, extorsão abusiva, extermínio de “irmãos”, possível
deslegitimação do PCC em setores criminais – a latência terminou. Execuções
sumárias passaram a ser rotina nos noticiários. A imprensa voltou a falar do
PCC, da “guerra” com a polícia. A coexistência de regimes de políticas de
controle social – estatais e do crime – se mostrou como nunca
antes. A especificidade de São Paulo nos temas que, de modo muito reducionista,
se consideram exclusivos da “segurança pública”, igualmente: só em São Paulo há
uma política de encarceramento tão agressiva; só no estado há uma única facção
hegemônica na regulação tanto de condutas criminais quanto dos preços nos
mercados ilegais; só em São Paulo isso redundou na redução de mais de 70% dos
homicídios; só em São Paulo a “guerra” entre crime e governo pode
ter a magnitude vista no segundo semestre de 2012.
Importa notar que, analiticamente, e ao contrário do que pode parecer à
primeira vista,governoe crimenão produzem políticas
necessariamente opostas. Construiu-se, mais rigorosamente, um repertório de
regimes normativos, legitimados situacionalmente, que, como nos ensinou Machado
da Silva, coexistem em tensão nesses cenários. Se eles promovem muita
insegurança, funcionam muitas vezes de modo complementar. Há vinte anos o
“crime” funcionaliza as políticas estatais para se fortalecer: o encarceramento
maciço e a difusão das prisões pelo interior, por exemplo, favoreceram muito a
expansão do PCC. O contrário também é verdadeiro: a queda das taxas de
homicídio, promovidas pela intervenção do “crime” na regulação de conflitos nas
periferias, é muito funcional aos administradores da segurança pública. É essa
funcionalidade que fortalece ambos os regimes de “segurança” e, portanto, perpetua
o crime, quando se pensa que a punição dos pobres e a militarização
das políticas sociais “defenderiam a sociedade”.
Gabriel de Santis Feltran – Professor do
Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e
pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM). Coordenador do NaMargem –
Núcleo de Pesquisas Urbanas – 01.02.2013