Militares de hoje temem pelos atos cometidos por seus pares no passado,
pois pesquisas históricas comprovam que a ditadura nada teve de “branda”,
afirma Edson Teles. Casos do Chile, Argentina e África do Sul servem como
inspiração para o Brasil.
Márcia Junges
Considerada a mais violenta da
América Latina pelos pesquisadores Edson Teles e Vladimir
Safatle, a ditadura brasileira precisa ser mensurada não pelos
desaparecidos que produziu, “mas pelo impacto que gerou no país, o que se
percebe pela herança autoritária vivida em democracia”, acentua Teles na
entrevista que concedeu por e-mail àIHU On-Line. Entre os inúmeros
“restos” deixados por esse regime autoritário em nosso país, o maior deles é a
cultura da impunidade “que privilegia a violência e os que detêm o poder
político em detrimento da ideia de uma cidadania plena”. Tal impunidade vale,
inclusive, para aqueles que pensam que podem torturar “bandidos” e pessoas
“perigosas”. Já que torturadores da ditadura não receberam a devida punição,
por que alguém que tortura presos e menores infratores a receberia? Teles
analisa, também, o motivo pelo qual as Forças Armadas de hoje não querem que se
apurem crimes de ontem. Para ele, trata-se de uma questão de poder político:
“as instituições militares detêm um poder abusivo em nossa democracia,
garantido pela Constituição Federal, e a apuração da verdade do período
ditatorial apontaria com clareza algo que já está comprovado pelas pesquisas
históricas: a ditadura não foi ‘branda’ e sua ação repressiva não foi fruto de
um setor radicalizado dos militares”. E ressalta: “A reforma institucional,
fruto da apuração da verdade, é o grande medo das instituições militares”.
Teles foi o mais jovem preso político brasileiro, com apenas dois anos de idade, quando foi detido com seus pais, César Augusto Teles e Maria Amélia de Almeida Teles, bem como a irmã Janaína, na época da ditadura militar. Em 2007, junto com os pais, a irmã e sua tia, processou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, para que ele fosse declarado torturador, tendo obtido ganho de causa na primeira instância.
Teles foi o mais jovem preso político brasileiro, com apenas dois anos de idade, quando foi detido com seus pais, César Augusto Teles e Maria Amélia de Almeida Teles, bem como a irmã Janaína, na época da ditadura militar. Em 2007, junto com os pais, a irmã e sua tia, processou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, para que ele fosse declarado torturador, tendo obtido ganho de causa na primeira instância.
Graduado, mestre e doutor em
Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP, escreveu a tese Brasil
e África do Sul: Memória política em democracias com herança autoritária.
Leciona na Universidade Federal de São Paulo e é um dos organizadores das
seguintes obras: O que resta da ditadura: A exceção brasileira (São
Paulo: Boitempo, 2010),Desarquivando a Ditadura: memória e justiça no Brasil (São
Paulo: Hucitec, 2009) e Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos
políticos no Brasil (1964-1985) (São Paulo: Impressa Oficial, 2009).
Confira a entrevista.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que resta da
ditadura em nosso país? Qual é a pior herança deixada pelos torturadores?
Edson Teles - Há uma série de
"restos" da ditadura militar. Poderíamos dizer que a maior delas
encontra-se na imposição de uma cultura de impunidade, que privilegia a
violência e os que detêm o poder político em detrimento da ideia de uma
cidadania plena. Apesar de sairmos da ditadura com uma Assembleia Constituinte
(1986-1988) e a nossa Constituição ser considerada liberal e democrática, uma
série de aspectos, especialmente aqueles que se referem às estruturas jurídicas
e institucionais do sistema de segurança pública e das Forças Armadas em quase
nada foram alterados em relação à Constituição outorgada pelos militares em
1967. A ingerência das Forças Armadas na política brasileira e os privilégios
que os militares têm indicam que a nossa Lei em democracia ainda fez a opção
pela consolidação de cidadãos que são "melhores" e mais poderosos do
que a maioria de nós.
IHU On-Line - Por que você e
Vladimir Safatle afirmam que a ditadura brasileira foi a mais violenta da
América Latina?
Edson Teles - Há um forte aspecto de
violência da ditadura brasileira que é justamente sua herança. Além dos limites
apontados anteriormente, há uma ação política no país cuja marca é o
autoritarismo. Hoje se governa mais com decretos e medidas provisórias do que
em qualquer outra época da história de nossa República, mais inclusive do que
no período militar. Um bom exemplo é o desejo do Executivo atual de decidir por
decreto o valor do salário mínimo. O grave problema que este tipo de
instrumento jurídico implica é o descumprimento dos procedimentos democráticos
de decisão sobre o futuro do país, alijando da política a grande maioria da
sociedade civil.
A ideia forte que eu e Vladimir procuramos
mostrar é a de uma ditadura não se mede pelo número de mortos e desaparecidos
que produziu (cerca de 500 no Brasil, 20 mil na Argentina e 5 mil no Chile),
mas pelo impacto que gerou no país, o que se percebe pela herança autoritária
vivida em democracia.
IHU On-Line - Há uma espécie
de consenso em calar, abrandar ou negar o que houve nos anos de chumbo. Qual é
o papel da memória e da resistência nesse sentido?
Edson Teles - Este consenso favorece
não só os setores diretamente envolvidos com a repressão política (militares e
sistema policial), mas uma boa parte dos partidos e instituições políticas que
obtém vantagens com a democracia nos dias atuais. Vejamos um exemplo: se os
torturadores da ditadura não são punidos, qual o receio em praticar a tortura
por parte de certos funcionários das antigas Febens (instituições para adolescentes
infratores) ou das delegacias de polícia? Muito pequeno. Cria-se e dissemina-se
uma ideia na sociedade de que a tortura é algo permitido, desde que seja para
os "bandidos", pessoas "perigosas", como foram os
"subversivos" de então.
Contudo, a memória não se
configura como um instrumento de bloqueio da política autoritária. Ela é um
significante modo de articulação das relações sociais e políticas e seu
benefício está em permitir a nossa sociedade refletir sobre o que ocorreu e o
que ocorre e, a partir dos debates produzidos, propiciar a criação de
mecanismos democráticos de garantia de direitos e de justiça. O que quero dizer
é que a memória deve ser livre, não deve ser nem um dever, nem um direito, mas
ser exercida e praticada livremente em uma esfera pública democrática.
IHU On-Line - Por que as
Forças Armadas de hoje temem a punição dos torturadores de ontem?
Edson Teles - Certamente boa parte dos
membros das Forças Armadas de hoje não foram torturadores na ditadura.
Entretanto, ainda assim, a instituição não aceita a apuração dos crimes
praticados pelos generais daquela época. Isto se deve, ao que parece,
principalmente a uma questão de poder político. Como já disse, as instituições
militares detêm um poder abusivo em nossa democracia, garantido pela
Constituição Federal, e a apuração da verdade do período ditatorial apontaria
com clareza algo que já está comprovado pelas pesquisas históricas: a ditadura
não foi "branda" e sua ação repressiva não foi fruto de um setor
radicalizado dos militares (a chamada "linha dura). Ela foi muito bem
organizada e sofisticada; a tortura e o desaparecimento serviram a uma política
decidida no mais alto escalão militar. De posse desta verdade, a sociedade
brasileira necessariamente terá que rever a função dos militares, ou ao menos
refletir se são estas Forças Armadas que queremos para o futuro do país. A
reforma institucional, fruto da apuração da verdade, é o grande medo das
instituições militares.
IHU On-Line - Quais são as
semelhanças e diferenças entre as democracias com heranças autoritárias do
Brasil e da África do Sul?
Edson Teles - A África do Sul fez a opção
pela narrativa e publicidade dos crimes do Apartheid. O Brasil escolheu o
silêncio. A anistia sul-africana foi individual, caso a caso, crime a crime, e
só foi concedida depois da confissão pública do ato criminoso e do
esclarecimento do que foi feito com o corpo das vítimas. No Brasil, como vocês
sabem, a anistia foi genérica e, simbolicamente, acabou por tornar inimputáveis
os autores de crimes bárbaros praticados enquanto eram funcionários do Estado,
com salários pagos pelo contribuinte e sem qualquer motivação política.
IHU On-Line - A África do Sul
parece ter lidado melhor com as questões do período ditatorial do que o Brasil.
A que se deve isso?
Edson Teles - Há uma série de fatores.
Porém, o principal deles é a coragem e determinação dos que assumiram a
construção da nova democracia multirracial. Eles sabiam que a maioria negra não
iria aderir ao novo regime se não houvesse atos de justiça consistentes. No
Brasil, a maior parte dos democratas, dos que vivenciaram a transição política,
escolheram a composição com os antigos criminosos. Como podemos ter uma
democracia plena se o presidente de um dos três poderes da República
encontra-se nas mãos de um dos maiores líderes civis da ditadura, José Sarney
(lembre-se que ele liderava a Arena, partido do governo militar, quando da
aprovação da Lei de Anistia em 1979).
IHU On-Line - O recurso da
anistia também foi usado na África do Sul? Por que essa foi a medida tomada no
caso de nosso país? No caso da África do Sul a questão da ditadura foi
resolvida em função de Nelson Mandela ter sido preso político e primeiro
presidente eleito democraticamente?
Edson Teles - Não. O passado de alguém
é muito importante na compreensão de seu presente, mas não garante que ele vá
agir de algum modo determinado. Os dois primeiros presidentes eleitos de nossa
democracia que terminaram o mandato foram vítimas da ditadura. Contudo, nem FHC
e nem Lula tiveram a coragem (aquela que teve Mandela) de abrirem os arquivos
militares e localizarem os desaparecidos políticos. Ao contrário, como
dissemos, preferiram compor com os setores herdeiros da ditadura.
IHU On-Line - Nessa lógica,
Dilma Rousseff, por ter sido presa política, irá dar um tratamento diferenciado
às questões relacionadas à ditadura?
Edson Teles - Novamente não. É claro
que conhecer tão bem quanto ela o que se passou no período abre uma chance de
ouro para a nossa democracia. Mas ela sofre e sofrerá as maiores pressões para
que nada se modifique. O que poderá garantir um tratamento diferenciado é a
pressão política e social para que aprofundemos nossa democracia. Cito um
exemplo: faz mais de 10 anos que os movimentos de direitos humanos ligados ao
tema exigem uma Comissão da Verdade e da Justiça no país. Somente agora, do ano
passado para cá, é que nossa democracia começou a tocar no assunto. Por que
será? Certamente se deve ao fato de a Corte Interamericana de Direitos Humanos,
da Organização dos Estados Americanos - OEA, ter condenado o Estado brasileiro
a responsabilizar penalmente os criminosos, apurar as circunstâncias dos
crimes, localizar os restos mortais dos desaparecidos, entre outras medidas.
IHU On-Line - O que uma
possível abertura dos arquivos da ditadura por Dilma Rousseff pode mudar em
relação à memória que temos do período militar, e em relação às gerações
futuras?
Edson Teles - A mudança será extrema.
Veremos que o país ainda vive sob instituições autoritárias que devem ser
reformadas para que a democracia e a justiça ganhem um valor maior. Poderemos,
inclusive, começar a transformar a cultura de violência e impunidade, não só em
relação aos crimes do passado, mas em relação à violência dos dias atuais. Há
um estudo da socióloga Kathryn Sikkink , da Universidade de Minnesota (EUA),
demonstrando que os países da América Latina que puniram os torturadores do
passado e apuraram a verdade de suas ditaduras sofreram uma considerável
redução da violência atual se comparados com os países que quase nada ou nada
fizeram como o Brasil.
IHU On-Line - Como as
experiências do Uruguai, Argentina, Chile e El Salvador com suas ditaduras
ajudam a redesenhar o mapa dos direitos humanos e da memória na América Latina?
Edson Teles - A Argentina nos mostra
que é possível e, mais do que isto, desejável, que nossas democracias apurem os
crimes. Hoje, temos no banco dos réus naquele país dois ex-presidentes
generais, um dos quais já condenado em outro processo à prisão perpétua, e
nenhum golpe ou instabilidade foi provocado por isto.
O Chile, ao começar seus
processos pela punição dos crimes de desaparecimento, levou em consideração que
este é um crime de sequestro continuado, já que o corpo não foi localizado.
Isto permite ao ordenamento jurídico não levar em consideração anistias como a
brasileira de 1979, na medida em que estes crimes continuaram após a aprovação
destas leis. No Brasil, podemos julgar e condenar os responsáveis pelos
desaparecimentos mesmo sem reinterpretação da lei de anistia, como fez o Chile.
Márcia Junges – 18.04.2011
Edson Teles – Professor de Filosofia da
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
IN Revista do Instituto
Humanitas Unisinos – http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3781&secao=358