terça-feira, 29 de outubro de 2013

Pnad 2012: mais de 40% dos domicílios brasileiros ainda não têm saneamento


Maior carência continua na região Norte, onde apenas 13% têm acesso a redes coletoras e de tratamento de dejetos.

Redação RBA
São Paulo – O número de domicílios brasileiros com acesso a rede coletora de esgoto passou de 55% para 57,1% de 2011 para 2012. O crescimento foi registrado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2012, divulgada hoje (27) pelo IBGE.
O maior aumento ocorreu na região Sul, que passou de 35,7% para 42,3%. A região Norte manteve-se estável em relação a 2011 (13%) e com um percentual bem menor que o Sudeste (84,1%).
A Pnad é realizada desde 1967 e traz informações sobre população, migração, educação, trabalho, rendimento e domicílios para Brasil, grandes regiões, estados e regiões metropolitanas.
A pesquisa apurou ainda dados referentes ao acesso da população a outros serviços básicos. Se o acesso à coleta de esgoto continua baixo, o número de domicílios com iluminação elétrica atingiu 99,5% em 2012, atingindo 62,5 milhões de moradias – pequeno crescimento em relação aos 99,3% registrados em 2011.
Na região Norte, a parcela dos que tinham esse serviço era de 96,2% em 2011 e, em 2012, passou para 97,3%. Nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, os percentuais de atendimento encontram-se muito próximos de 100%.
No caso da rede de abastecimento de água, a porcentagem de domicílios beneficiados é significativamente maior, chegando a 85,4% em 2012 (53,6 milhões de domicílios). O número representa um aumento de 0,8 ponto percentual em relação a 2011 ou mais 1,8 milhão de unidades atendidas.
Na região Norte houve um acréscimo de 2,4 pontos percentuais na proporção de domicílios com rede geral de água em relação ao ano anterior (de 55,9% para 58,3%).
O número de domicílios atendidos por coleta de lixo passou de 54,4 milhões para 55,8 milhões, 88,8% do total em 2012, mesma participação apurada em 2011. Todas as regiões contribuíram para a expansão, sendo que a Sudeste, onde a coleta beneficiava 96% dos domicílios, ampliou o atendimento a 585 mil novas unidades, o maior aumento.
O menor crescimento ocorreu na Centro-Oeste, com 87 mil unidades, onde atingia 91,3%. Nas regiões Norte, Nordeste e Sul, esse serviço era ofertado a 77,3%, 76,6% e 93,0% dos domicílios, respectivamente.

Redação RBA – 27.09.2013







Saneamento básico no Brasil: ‘Um cenário
 alarmante’. Entrevista com Édison Carlos

"O governo federal pretende universalizar o saneamento básico no Brasil em 20 anos (2014 a 2033) e para isso estima a necessidade de 302 bilhões de reais somente para obras de água e esgotos. Teríamos de investir em média 15 a 16 bilhões/ano, mas ainda não passamos dos 9 bilhões de reais por ano”, adverte o presidente executivo do Instituto Trata Brasil.

IHU Online
A situação do saneamento básico no Brasil é "alarmante” e compromete "a meta do governo federal de universalizar o saneamento em 20 anos”, diz Édison Carlos, ao comentar os dados do Ranking do Saneamento realizado pelo Instituto Trata Brasil, o qual avalia a situação do saneamento e da água nas 100 maiores cidades brasileiras. Segundo ele, em 2011, as 100 maiores cidades do país "geraram mais de 5,1 bilhões de m³ de esgoto. Desses, mais de 3,2 bilhões de m³ não receberam tratamento. Significa que as 100 maiores cidades jogaram cerca de 3.500 piscinas olímpicas de esgoto por dia na natureza”.
Apesar do cenário preocupante, o presidente Executivo doInstituto Trata Brasil assegura que houve avanços na última década, principalmente no acesso à água potável. Nas 100 cidades monitoradas, 92,2% da população tem acesso à água tratada, "bem acima da média nacional — que é de 82,4%”. Em relação à coleta de esgotos, os dados são mais precários. "Chega a 61,40% da população nas 100 maiores cidades e a 48,1% no país. Significa que mais de 100 milhões de brasileiros ainda não possuem esse serviço mais básico”, assinala em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
De acordo com ele, os investimentos do PAC destinados para melhorias do saneamento básico ainda não foram utilizados na sua totalidade. "O Trata Brasil monitora 138 obras de esgotos do PAC, e constatamos que somente 14% delas estão prontas após cinco anos. A maioria, 65% das obras, está atrasada, paralisada ou sequer começou”, lamenta.
Édison Carlos é químico industrial graduado pelas Faculdades Oswaldo Cruz e pós-graduado em Comunicação Estratégica. Atuou por quase 20 anos em várias posições no Grupo Solvay, sendo que, nos últimos anos, foi responsável pela área de Comunicação e Assuntos Corporativos da SolvayIndupa. Em 2012, Édison Carlos recebeu o prêmio "Faz Diferença - Personalidade do Ano”, do Jornal O Globo - categoria "Revista Amanhã”, que premia quem mais se destacou na área da Sustentabilidade em todo o país.

Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como foi elaborado o Ranking do Saneamento realizado pelo Instituto Trata Brasil? Quais as principais constatações em relação ao saneamento básico nas 100 maiores cidades brasileiras?
Édison Carlos - O Ranking do Saneamento do Instituto Trata Brasil é elaborado a partir de dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento - SNIS, do Ministério das Cidades, que fornece anualmente os números de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, perdas de água, investimentos e outros; todos estes providos das próprias empresas ou municípios operantes. Vale ressaltar que o Ministério das Cidades divulga números com dois anos de defasagem, ou seja, os dados fornecidos este ano — e consequentemente usados para o Ranking do Instituto Trata Brasil — são de 2011. Com os números do SNIS, a GO Associados, parceira do Trata Brasil, se encarrega de elaborar o método que definirá a posição de cada município.
As principais constatações são preocupantes, e a lenta evolução dos indicadores nas grandes cidades compromete a meta do governo federal de universalizar o saneamento em 20 anos. Nós temos um cenário alarmante no Brasil, mesmo em grandes capitais, como Macapá, Belém, São Luís, Teresina, Natal, entre outras, onde os serviços de coleta e tratamento de esgoto ainda são muito precários.
Em 2011, as 100 maiores cidades geraram mais de 5,1 bilhões de metros cúbicos (m³) de esgoto. Desses, mais de 3,2 bilhões de m³ não receberam tratamento. Significa que as 100 maiores cidades jogaram cerca de 3.500 piscinas olímpicas de esgoto por dia na natureza.

IHU On-Line - Em que estados se concentram as cidades em que há melhor e pior condições de saneamento?
Édison Carlos - São Paulo, Minas Gerais e Paraná são os estados que têm números expressivos de municípios, mais especificamente 18 entre as 20 melhores cidades no ranking. Em contrapartida, as regiões Norte e Nordeste, no geral, têm os piores índices, principalmente o estado do Pará, que contém seus três grandes municípios (Belém, Santarém e Ananindeua) nas cinco últimas posições, além de Amapá, Pernambuco e Maranhão. Apesar de estar no Sudeste, o estado do Rio de Janeiro também possui algumas cidades da Baixada Fluminense entre as piores do país.

IHU On-Line - Que percentual da população brasileira é atendida com água tratada e coleta de esgoto?
Édison Carlos - Nas 100 maiores cidades monitoradas pelo Instituto Trata Brasil, são 92,2% da população que têm atendimento em água tratada, bem acima da média nacional — que é de 82,4%. Já a coleta de esgotos chega a 61,40% da população nas 100 maiores cidades e a 48,1% no país. Significa que mais de 100 milhões de brasileiros ainda não possuem esse serviço mais básico.

IHU On-Line - Qual o destino dado ao esgoto gerado pelas 100 maiores cidades brasileiras?
Édison Carlos - Estas 100 maiores cidades, em 2011, geraram mais de 5,1 bilhões de m³ de esgoto; mais de 3,2 bilhões de m³ não receberam tratamento, isto é, as 100 maiores cidades jogaram cerca de 3.500 piscinas olímpicas de esgoto por dia na natureza. São lançamentos de esgotos em córregos, rios e lagos, a céu aberto ou em fossas rústicas que, se não cuidadas, geram contaminação nos lençóis freáticos.

IHU On-Line - Que avanços foram possíveis constatar no setor de saneamento desde 2003?
Édison Carlos - Houve avanços, principalmente no acesso à água potável, mas muito pouco em coleta e tratamento dos esgotos. Quase nada se avançou também na redução das perdas de água.
Os investimentos do setor federal, através do Programa de Aceleração e Crescimento - PAC, por exemplo, ainda não conseguiram ser usados em sua totalidade. O Trata Brasil monitora 138 obras de esgotos do PAC, e constatamos que somente 14% delas estão prontas após cinco anos. A maioria, 65% das obras, está atrasada, paralisada ou sequer começou.

IHU On-Line - Quais são as metas do Plano Nacional de Saneamento Básico – PLANSAB para 2030? A partir da pesquisa realizada pelo Instituto Trata Brasil, quais as expectativas na tentativa de alcançar a meta do PLANSAB?
Édison Carlos - O governo federal pretende universalizar o saneamento básico no Brasil em 20 anos (2014 a 2033) e, para isso, estima a necessidade de 302 bilhões de reais somente para obras de água e esgotos. Teríamos de investir em média 15 a 16 bilhões/ano, mas ainda não passamos dos 9 bilhões de reais por ano. Precisamos, portanto, investir o dobro para atingir a universalização que o governo federal propõe. OPLANSAB exige que os municípios entreguem um plano de saneamento até dezembro deste ano, porém sabemos que muitos prefeitos não irão cumprir com o pedido, dessa forma, estas cidades poderão não mais receber recurso federal para novas obras. Quem perde com isso é o cidadão.

IHU On-Line - Quais são as principais dificuldades para alcançar a meta de universalizar o saneamento básico em 20 anos no Brasil?
Édison Carlos - Primeiramente, saneamento básico tem que ser prioridade número 1 dos entes públicos e da população. Devido aos 20 anos que o país passou sem recursos para esgotamento sanitário, criou-se um grande déficit nestes serviços. Hoje o setor enfrenta dificuldade por conta da gestão dos municípios e da atuação das empresas de saneamento na elaboração de projetos, no uso dos recursos, ao mesmo tempo em que há uma grande burocracia para a chegada dos recursos federais às obras, dificuldade e lentidão nas licenças ambientais e despreparo das prefeituras para com essas obras.

IHU On-Line - Quais são hoje as principais políticas públicas federais para garantir melhorias no tratamento da água e melhores condições de saneamento básico?
Édison Carlos - O governo federal, em 2007, sancionou a lei de Diretrizes Nacionais para o Saneamento Básico (nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007). Esta lei preconiza que todos os municípios precisam elaborar seus Planos Municipais de Saneamento Básico e promover a Regulação dos Serviços de Saneamento. Estes são instrumentos de planejamento fundamentais para que as cidades organizem seu futuro no campo sanitário. Infelizmente, a implementação dessas diretrizes está muito lenta no país.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Édison Carlos – Em 2014 temos eleições, e é momento de o brasileiro manifestar sua vontade de que esta realidade mude. Temos que cobrar soluções de nossos candidatos a deputado, senador, governador e presidente. Somente através da mobilização conseguiremos mostrar que saneamento é importante.


Édison Carlos – Químico industrial, presidente executivo do Instituto Trata Brasil– 16.10.2013
IN Adital (Agência de Notícias Frei Tito para a América Latina) e IHU Online– http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=78212

sábado, 26 de outubro de 2013

Os crimes do Estado se repetem como farsa


Integrante da Comissão Nacional da Verdade interpreta a investigação sobre crimes do Estado à luz da busca psicanalítica por verdades reprimidas. Assim como na teoria freudiana, a tentativa do Estado totalitário de cassar o direito à informação se mostrou inútil diante de sintomas sociais que acabaram por revelá-la.

Maria Rita Kehl
Que tudo "continue assim", isto é a catástrofe.
Walter Benjamin
Hoje se comemora o Dia Internacional do Direito à Verdade. A data foi escolhida pela ONU em dezembro de 2010 para lembrar o assassinato do defensor de direitos humanos em El Salvador, monsenhor Oscar Romero, em 24 de março de 1980. A relação estabelecida pela resolução da ONU entre dignidade humana e direito à verdade fez com que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) decidisse comemorá-la nas ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro.
"A verdade liberta", proclamou ao telefone meu amigo, o psicoterapeuta Nelson Motta Mello, ao saudar a formação da CNV, em maio de 2012. Poupo o leitor do debate sobre o estatuto ontológico da verdade, que nem Cristo (nem Lacan) respondeu a contento.
Se não nos é possível estabelecer com precisão o que é a verdade, não há dificuldade em entender os efeitos da sua falta --ou da sua interdição-- tanto na vida psíquica quanto na dinâmica social. A psicanálise freudiana poderia ser entendida, "lato sensu", como uma metapsicologia do direito à verdade psíquica.
Foi no final do século 19, quando a moral da nova classe emergente na Europa impunha o silêncio sobre as representações da vida sexual, que Freud anunciou sua hipótese a respeito do sofrimento histérico: "A histérica sofre de reminiscências". As enigmáticas crises de conversão das histéricas não passavam, para o inventor da psicanálise, de tentativas de dizer com o corpo verdades que estavam impedidas de recordar em pensamento e anunciar na fala.
O discurso corporal da histeria é composto de fragmentos recalcados de lembranças e/ou fantasias sexuais interditadas, que buscam expressão através do sintoma. Aos poucos, Freud compreendeu que o estatuto da "verdade" de suas pacientes histéricas nem sempre correspondia ao senso comum: o que o tratamento psicanalítico revela são fragmentos da verdade psíquica, cujas conexões com os fatos objetivos da vida passam por caminhos singulares e tortuosos.
É que o recalcado só pode chegar à consciência através das formações secundárias, que deformam a marca primordial do vivido (inacessível ao próprio sujeito) para se adequar às formas corriqueiras da linguagem. Apesar das dificuldades de interpretação e das limitações da técnica nos primórdios da psicanálise, a possibilidade de expressar a fantasia recalcada revelou que a verdade psíquica é capaz de libertar o neurótico das repetições sintomáticas.
Em 1914 Freud estabeleceu, em "Recordar, Repetir, Elaborar", uma importante relação entre o esquecimento promovido pelo recalque e a repetição do sintoma neurótico: a compulsão à repetição seria a maneira enviesada que o neurótico encontra para tentar trazer à consciência uma cena, uma fantasia ou um pensamento, recalcado.
O sintoma seria movido pela compulsão à repetição de um trauma e/ou de um gozo interditado, a cumprir duas funções antagônicas, a de promover um retorno em ato do que foi esquecido e permitir, ao mesmo tempo, um simulacro do prazer proibido. Ao dar vazão ao recalcado, os sintomas constituem o "modo de recordar" encontrado pelo neurótico. Contra a dobradinha patológica esquecimento/sintoma, Freud propôs a elaboração do trauma.
Tal necessidade de elaboração pode ser observada tanto nas modalidades individuais de retorno do sofrimento psíquico individual quanto nas repetições de fatos violentos e traumáticos que marcam as sociedades governadas com base na supressão da experiência histórica.

Totalitarismo
Todos os Estados totalitários se apoiam na supressão do direito à informação. Só assim conseguem silenciar, pelo menos por um tempo, a propagação das violações, dos abusos, das violências contra o cidadão praticadas em "nome da ordem", a revelar que na vida social não há direito perdido que não tenha sido usurpado por alguém. Falta de liberdades, de direitos e de acesso à informação são elementos fundamentais na consolidação do terrorismo de Estado.
Se o estabelecimento da verdade histórica, nas democracias, está sujeito a permanente debate, o direito de acesso a ela deve ser incontestável. A garantia do direito à verdade opõe-se à imposição de uma versão monolítica, característica dos regimes autoritários de todos os matizes. Ela exige a restauração da memória social, estabelecida no debate cotidiano e sempre exposta a reformulações, a depender das novas evidências trazidas à luz por ativistas políticos e pesquisadores.
Este é o estatuto da verdade buscada pela CNV: além da revelação objetiva dos crimes praticados por agentes do Estado contra militantes políticos, estudantes, camponeses, indígenas, jornalistas, professores, cientistas, artistas e tantos outros --cuja prova está documentada em arquivos públicos, muitos deles considerados ultrassecretos--, o relatório final produzido pela comissão pode restaurar um importante capítulo da experiência política brasileira.
A verdade social não é ponto de chegada, é processo. Sua elaboração depende do acesso a informações, mesmo as mais tenebrosas, mesmo aquelas capazes de desestabilizar o poder e que, por isso, se convencionou que deveriam ser mantidas em segredo. Se o reconhecimento dos fatos que um dia se tentou apagar não costuma trazer boas notícias, em contrapartida a supressão da verdade histórica produz sintomas sociais gravíssimos --a começar pela repetição patológica de erros e crimes passados.
Melhor encarar as velhas más notícias e transformar a vivência bruta em experiência coletiva, no sentido proposto por Walter Benjamin. Para isso é preciso construir uma narrativa forte e bem fundamentada, capaz de transformar os restos traumáticos da vivência do período ditatorial em experiência coletiva. "Para que se (re)conheça, para que nunca mais aconteça."
Freud poderia ter lido Marx a respeito das repetições farsescas dos capítulos mal resolvidos da história. Se o sintoma neurótico é a verdade recalcada que retorna como uma espécie de charada que o sujeito não decifra, o mesmo vale para os sintomas sociais. O Brasil ainda sofre com os efeitos da falta de acesso à verdade dos períodos vergonhosos de sua história, desde a escravidão até a ditadura militar. O modo como a ditadura negociou sua dissolução com a sociedade brasileira --uma negociação entre quem tinha as armas na mão e quem até então estivera sob a mira delas-- funcionou como um verdadeiro convite ao esquecimento.
O apagamento rápido (e forçado) dos crimes da ditadura lembra os efeitos perversos do esquecimento dos crimes da escravidão. No segundo caso, a falta de reconhecimento do estatuto criminoso de três séculos de escravidão impediu a promoção de políticas de reparação às populações afrodescendentes recém-libertas do cativeiro. Os sintomas do esquecimento estão aí até hoje, na perpetuação muitas vezes impune do trabalho escravo em fábricas e fazendas, a lembrar a advertência de Nabuco de que a prática continuada da escravidão perverteria a elite brasileira.
Não é absurdo pensar que o Brasil, país do esquecimento fácil, do perdão concedido antes por covardia e complacência do que por efeito de rigorosas negociações, seja um país incapaz de superar sua violência social originária. Os sintomas da brutalidade consentida ressurgem nas execuções policiais que vitimam jovens nas periferias de São Paulo, nas favelas do Rio e em todas as outras grandes cidades brasileiras. Ressurge nos assassinatos de defensores da floresta e pequenos agricultores, por jagunços e policiais a mando de grandes grileiros de terras.
E se repete como farsa em episódios recentes, como o da bomba lançada no dia 7 contra a sede da OAB do Rio de Janeiro, acompanhada das mesmas ameaças sinistras com que agentes da repressão tentaram intimidar os que articulavam, na década de 1980, a volta do Estado de Direito. Ou nas acusações de militares da reserva contra investigações conduzidas pela CNV, como se fosse o trabalho da comissão, e não os abusos cometidos no passado, o que mancha a imagem das Forças Armadas.
Ou ainda em artigos como os de Contardo Calligaris, colunista da Folha, que conjeturou sobre a suposta conveniência de torturar alguém, sem levar em consideração que a comunidade internacional já decidiu que a tortura é crime de lesa-humanidade.

Arte
Só a arte nomeia os crimes silenciados no Brasil. As instalações de Cildo Meireles e Nuno Ramos. O teatro da Companhia do Latão, d'Opovoempé e outros grupos corajosos. O rap de Mano Brown e outros manos; faixas dos últimos CDs de Caetano Veloso e de Chico Buarque. Os filmes de Sérgio Bianchi, Rubens Rewald e, recentemente, do pernambucano Kleber Mendonça Filho.
Muitos comentários elogiosos a "O Som ao Redor" se referiram ao contato inevitável que a vida urbana promove com os ruídos emitidos pelos vizinhos, que nem as muralhas protetoras dos grandes condomínios conseguem isolar. Sim, os barulhos inconvenientes da vida na cidade geram tensão e desconforto num filme de enredo aparentemente banal.
Mas essa não é a razão da grandeza do filme, que a crítica foi unânime em elogiar. Poucos críticos compreenderam o tema do retorno do recalcado, revelado na cena final, em que os dois seguranças da rua são chamados cordialmente pelo patriarca para executar um desafeto na fazenda --à antiga maneira dos senhores de engenho-- e, na contramão da lógica da dominação cordial, revelam ter vindo cobrar o antigo assassinato de seu pai ("por causa de uma cerca...").
A última cena ilumina as razões da inclusão de uma foto de representantes das ligas camponesas, organizada nas décadas de 50 e 60 e dizimadas pela ditadura, inserida entre as imagens que compõem a abertura do filme. No último segundo do filme, um estampido forte --foi tiro ou o rojão da moça insone contra o cachorro do vizinho?-- vem revelar a verdadeira natureza do incômodo som ao redor, metáfora de velhas brutalidades, jamais elaboradas ou reparadas, que estão na origem da história da luta pela terra e na base do eterno poder do mais forte no Brasil.


Maria Rita Kehl – Psicanalista e membro da Comissão da Verdade – 24.03.2013
IN Folha de São Paulo – http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1250962-os-crimes-do-estado-se-repetem-como-farsa.shtml

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Pobreza, produto do agronegócio


Segundo pesquisa, regiões da Alta Mogiana e Pontal do Paranapanema registraram aumento da industrialização do campo e crescimento da pobreza.

Aline Scarso 
Uma pesquisa de mestrado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) mostrou que existe uma relação entre a expansão de atividades do agronegócio e o crescimento da pobreza em áreas específicas do estado de São Paulo. Segundo o estudo, regiões reconhecidas pela força agroindustrial estão passando por um processo de concentração de renda, de terras e de pobreza. O levantamento sinaliza ainda que o agronegócio aproveita a vulnerabilidade das regiões para se instalar e criar raízes. Intitulado São Paulo Agrário: representações da disputa territorial entre camponeses e ruralistas de 1988 a 2009, o estudo é do pesquisador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera), Tiago Cubas. Ele trabalha com dados como o Índice de Pobreza Relativa, Índice de Gini e de Concentração de Riqueza para revelar uma situação de contradição.
Hoje a população rural do estado é de 1,7 milhões de habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 1980 era de 2,9 milhões. De acordo com a pesquisa, a região do entorno da cidade de Ribeirão Preto, a chamada Califórnia Brasileira, é uma das que mais aumentaram o abismo econômico entre a população durante os anos de 1988 a 2009. Situação semelhante também ocorreu no entorno das cidades de Araraquara e Campinas e nas regiões do Pontal do Parapanema – principalmente no entorno dos municípios de Presidente Prudente e Araçatuba, e do Vale do Ribeira, entorno do litoral sul paulista e de Itapetininga (veja mapa abaixo). Dos 645 municípios paulistas cadastrados para mapeamento, apenas 228 municípios conseguiram amenizar a intensidade da pobreza no período pesquisado. No restante, a miséria aumentou.
O autor mostra que as regiões onde isso ocorreu são espaços do desenvolvimento do agronegócio, especialmente da monocultura da cana-de-açúcar. É o caso da Região da Alta Mogiana (Ribeirão Preto, Araraquara e Campinas), onde a cana é preponderante. A área do Pontal do Parapanema, tradicionalmente reduto da pecuária no estado paulista, também sofreu com a expansão da monocultura. “Isso pode significar que o agronegócio escolhe as áreas mais vulneráveis para se instalar e, assim por diante, acirrar as desigualdades sociais e degradar o meio ambiente”, explica o pesquisador.
Além de terem se tornado mais desiguais socialmente, essas regiões são as que mais registram conflitos e assassinatos contra trabalhadores rurais e camponeses. “Quando acoplamos as análises, a representação da expansão da cultura da cana-de-açúcar no período mais recente com os outros elementos é possível ver uma relação com maior incidência de violência”, explica Cubas ao Brasil de Fato.

Incentivo dos governos
A cultura da cana-de-açúcar é exercida em grandes extensões de terra e associada ao trabalho precarizado, à expulsão de pequenos proprietários rurais e ao conflito com acampados e assentados da reforma agrária.
De acordo com Cubas, a expansão da cana iniciada pela ditadura civil-militar na década de 1970 – na época, como alternativa diante do crescimento do preço do petróleo - ganhou forte impulso de continuidade no estado de São Paulo graças à presença do PSDB no comando do governo estadual e a entrada do PT na esfera federal. Os ex-ministros do governo Lula, João Roberto Rodrigues (Agricultura) e Antonio Palocci Filho (Fazenda) teriam sido, segundo ele, grandes articuladores do governo com o setor canavieiro.
O crescimento expressivo do setor no estado ficou registrado no número de toneladas produzidas e na exigência de terra, cada vez maior, para plantio. Apenas no estado paulista, a produção em toneladas da monocultura passou de 138 em 1990 para 239 em 2004 e 426 em 2010. A produção em milhões de hectares para os mesmos anos foi de 1,8; 2,9 e 4,9, respectivamente. Um crescimento bem superior a 100% nos dois casos. O destaque ficou por conta da região de Ribeirão Preto que, em 2010, concentrou as três maiores produções: Morro Agudo (com a produção de 7,9 milhões de toneladas). Barretos e Guaíra - cada qual produzindo 5,8 milhões de toneladas.

Pobreza
“A monocultura da cana-de-açúcar é a que transmite os valores atuais do capitalismo agrário paulista através da expansão indiscriminada de todo o seu aparato”, afirma Cubas, ressaltando que essa pressão tem obrigado assentados a arrendarem seus lotes para o plantio da cana e alugaram sua força de trabalho para o corte nas fazendas.
A assentada da Comuna da Terra Mario Lago, localizada no município de Ribeirão Preto, e integrante da Direção Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Kelli Mafort, diz que é possível acompanhar o desenvolvimento da pobreza gerada pela cultura da cana-de-açúcar na região. Segundo ela, muitos acampados e trabalhadores rurais trabalham no corte por falta de outra oportunidade de emprego. “Não só eles, mas muitas famílias assentadas também trazem uma amarga relação com a cana pois carregam até hoje graves problemas de saúde devido ao trabalho exaustivo na atividade”.
Já o acampamento Alexandra Kollontai, localizado no munícipio de Serrana, conta com trabalhadores do corte de cana que se queixam dos poucos postos de trabalho, cada vez mais raros em razão do incentivo à mecanização. Segundo Mafort, o acampamento tem famílias há quase cinco anos acampadas e a paralisia da política de criação de novos assentamentos também contribui para o aumento da pobreza. 

Nas mãos de poucos
A pesquisa São Paulo Agrário mostrou ainda que o agronegócio no interior do estado está afetando a concentração de renda e de terra entre a população. Tiago Cubas aponta que a renda apropriada pelos 10% mais ricos vem aumentando nas regiões do Pontal do Paranapanema e da Alta Mogiana, nas quais há o crescimento intenso do agronegócio sucroalcooleiro. “Em 1991 eram 23% dos municípios do estado que tinham a apropriação de 40 a 44% da renda do município para os 10% mais ricos. Esse número chega em 2010, com a mesma amplitude de concentração, em quase 30% dos municípios”, destaca.
E não é somente a renda, a concentração fundiária também cresceu. De acordo com dados do Censo Agropecuário do IBGE, em 1995, as propriedades acima de 200 hectares contabilizavam 61% (10.659.891 hectares) do total, enquanto as propriedades igual ou abaixo de 200 hectares chegavam a 39% (6.709.313 hectares). Já em 2006, as propriedades acima de 200 hectares já eram 71% (14.332.546 hectares) do total, ao passo que as propriedades igual ou abaixo de 200 hectares eram 29% (5.840.727 hectares). 
Uma das áreas mais desiguais do estado de São Paulo em relação à concentração de renda e terra é o Pontal do Paranapanema. O drama é grande entre as famílias acampadas na região, em torno de 2 mil que esperam ansiosamente por serem assentadas. De acordo com o assentado e integrante da Direção Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Delwek Mateus, apesar de farta oferta de terras devolutas, não há sinalização do avanço da reforma agrária. “No Pontal há grande quantidade de terras públicas de responsabilidade do governo do estado, mas griladas por latifundiários. E o governo estadual, ao invés de transformar essas áreas em assentamentos da reforma agrária, quer regularizar as grilagens”, explica Mateus, em referência ao projeto de lei 687/2011 apresentado pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), que legaliza terras griladas no Pontal.
O setor canavieiro no Pontal cresce em extensão e na implantação de usinas para a produção de etanol e açúcar. A falta de oferta de outro tipo de emprego na zona rural também obriga acampados e assentados a viverem da atividade. Segundo Mateus, o agronegócio traz pobreza principalmente para as cidades pequenas que dependem do trabalho no campo. “Cada vez que aumenta a mecanização no campo, há a perda de postos de trabalho. Com diminuição dos postos de trabalho, consequentemente há aumento da oferta de mão-de-obra, o que acarreta na diminuição dos salários e exige uma maior produtividade para que o trabalhador tenha um preço digno. Todo esse conjunto de fatores leva a um processo de empobrecimento da população”, argumenta o assentado.
Para Mateus e Cubas, a reforma agrária é uma saída para acabar com a pobreza no campo brasileiro. Mas a julgar pelos investimentos, os governos ainda não enxergam a situação dessa forma. Um exemplo disso é a destinação de recursos diferenciados para a agricultura familiar e para o agronegócio. Enquanto o Plano Safra do Agricultor Familiar de 2011/12 recebeu um investimento total de R$ 16,2 bilhões, o Plano Agrícola da Agricultura e da Pecuária de 2011/12 conquistou R$ 107,21 bilhões, 7,2% a mais em relação ao valor dos recursos do plano passado. 

A postura “natural” de criminalizar
Durante os últimos três anos, Tiago Cubas também analisou a cobertura impressa sobre as ocupações, assentamentos e outras manifestações de luta pela reforma agrária no estado de São Paulo. Foram estudados mais de 30 mil recortes dos periódicos O Estado de S. Paulo Folha de S. Paulo, de repercussão nacional, e O Imparcial Oeste Notícia, com abrangência na região de Presidente Prudente. Uma das conclusões do pesquisador é que a mídia corporativa totaliza a visão das relações capitalistas no campo, estereotipa e não aceita sujeitos e modos de produção alternativos.
O quadro que encontrou é desolador do ponto de vista do acesso à informação sobre as causas dos movimentos sociais. Cubas mostra que notícias e artigos promovem interpretações binárias, nas quais ruralistas são comumente tratados como vítimas e camponeses como assaltantes. Enquanto a luta pela terra é identificada como ação contra a ordem estabelecida, o agronegócio é mostrado pela ótica do progresso, modernização e tecnologia. Não há nuances nem explicações mais profundas capazes de explicar a existência de dois projetos distintos para o desenvolvimento do campo.
Para Cubas, a formação de uma opinião pública desfavorável aos sem-terra contribui para diminuir o estímulo à elaboração e à implantação de planos e programas de reforma agrária no estado. Nada diferente do esperado de uma imprensa que tem fortes ligações políticas e econômicas com o setor industrial do campo. O jornal Oeste Notícias, por exemplo, pertence é coordenado por Paulo Lima, proprietário da TV Fronteira filiada à Rede Globo e filho de Agripino Lima, ex-prefeito de Presidente Prudente e latifundiário ligado a UDR (União Democrática Ruralista). Já O Imparcial tem como proprietários Mário Peretti, Adelmo Vaballi e Deodato Silva que, segundo Cubas, fazem parte da elite histórica de Presidente Prudente. “Em nossas análises, esses dois jornais regionais mostram uma íntima ligação entre os seus proprietários e o conteúdo das notícias que revelaram uma memória histórica dos dominadores”, afirma o pesquisador. Já O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo são historicamente reconhecidos pela defesa dos interesses do setor ruralista.
O orientador de Cubas no mestrado, Cliff Welch, acentua que os jornais da grande imprensa contribuem para o processo de aperfeiçoamento do capitalismo industrial no controle sobre a terra. “A partir do final do século 19, podemos documentar o curso paralelo do jornal O Estado de S. Paulo, o então Província de S. Paulo, com a cobertura de Euclides da Cunha das múltiplas campanhas de repressão do arraial de Canudos. Hoje em dia, quando o Estadão apoia a repressão e a criminalização dos sem terra, está tomando uma postura 'natural' da perspectiva da burguesia, para qual a predominância do reino da lei é crucial para manter a ordem dos forasteiros e o progresso (da burguesia)”, ressalta Welch, que é integrante da pós-graduação da Cátedra da Unesco para Educação do Campo e Desenvolvimento Territorial.


Aline Scarso – 17.12.2012
Colaborou Eduardo Sales de Lima
IN Brasil de Fato – http://www.brasildefato.com.br/node/11408

domingo, 20 de outubro de 2013

Os BRICS – Ainda uma grande incógnita


A emergência desses novos atores aponta para mudanças importantes no equilíbrio global de poder e na ordem multilateral construída no pós-guerra sob a hegemonia dos Estados Unidos. Não é por outra razão que os países ricos temem a consolidação do bloco e, portanto, de diversas maneiras procuram miná-lo. Entretanto, muitas dúvidas pairam no ar.

Nathalie Beghin
A ideia dos BRICS nasceu no começo da década de 2000, mas foi materializada somente em 2009 com a primeira cúpula de chefes de Estado, realizada em Ecaterimburgo, na Rússia. Há poucos dias atrás, em finais de março, ocorreu a V Cúpula, em Durban, na África do Sul.
O bloco, integrado por cinco países – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – representa potência econômica e política que não pode ser desprezada. Com quase metade da população mundial, 20% da superfície terrestre, recursos naturais abundantes e economias diversificas com elevado ritmo de crescimento, o clube já tem participação no PIB mundial equivalente à dos Estados Unidos ou da União Europeia. Segundo dados da revista The Economist, os BRICS foram responsáveis por 55% do crescimento global nos últimos três anos. Desde o final de 2009, quando a economia mundial cresceu pouco mais de 2%, até o último trimestre de 2012, os 23 países considerados desenvolvidos contribuíram com apenas 20% para o crescimento da economia global.
O desempenho recente destas economias e seus indicadores macroeconômicos auxiliaram na mudança de perspectiva em relação às suas potencialidades de crescimento. Sobretudo porque, em comum, estas economias apresentam grandes mercados internos e volumes de exportação que lhes conferem um espaço maior de participação nas relações internacionais. Alguns estudos chegam a apontar que os nos próximos 50 anos os BRICS poderão superar o G-6 (Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França e Itália) como principal força propulsora da economia global.
Os BRICS se articularam buscando formas de aumentar sua participação nos rumos econômicos do planeta, bem como uma maior inserção na política internacional, seja por meio de uma participação mais relevante em organismos multilaterais, em instituições financeiras internacionais e no Conselho de Segurança da ONU, seja reforçando entre si posicionamentos e parcerias comerciais, tecnológicas e de cooperação. Há também um esforço de por em marcha mecanismos próprios que os tornem mais independentes das chamadas economias do Norte, como criação de fundos de reserva para se proteger de ataques especulativos, a implementação de banco de desenvolvimento e o desenvolvimento de atividades comerciais em moedas locais.
A emergência desses novos atores aponta para mudanças importantes no equilíbrio global de poder e na ordem multilateral construída no pós-guerra sob a hegemonia dos Estados Unidos. Não é por outra razão que os países ricos temem a consolidação do bloco e, portanto, de diversas maneiras procuram miná-lo.
Entretanto, muitas dúvidas pairam no ar. Uma delas diz respeito às competições intra-bloco. Com efeito, enquanto a China, por exemplo, se converteu no principal parceiro comercial do Brasil (a frente dos Estados Unidos), setores completos da indústria brasileira sofrem pela competição da barata manufatura chinesa. O mesmo ocorre em diferentes escalas em outros países da América do Sul e da África. A China tem contribuído para a desindustrialização nos dois continentes, que exportam suas matérias-primas e importam os produtos com maior valor agregado.
Ademais, até agora, o que se tem visto é pouco alvissareiro. O fortalecimento dos BRICS vem dando a impressão de que se trata mais bem de transferência de poder de um grupo de países para outro, com poucas melhorias para a vasta maioria de seus cidadãos. Um bom exemplo disso é que, com exceção do Brasil, as desigualdades sociais têm aumentado no Bloco, ao invés de diminuir. E se o Brasil dá sinais positivos nesse campo, não deixou de ser um dos países mais desiguais do mundo. Outra dramática constatação diz respeito à atuação das transnacionais dos BRICS, todas apoiadas com recursos de seus governos, em países em desenvolvimento: as obras de infraestrutura por elas operadas ou as iniciativas no campo agrícola, entre outras, estão resultando em sistemáticas violações de direitos humanos, em privatização dos bens comuns e em financeirização da natureza.
O que também assusta e dificulta um pensamento otimista é a recusa dos BRICS de dialogar com os que são diretamente afetados pelas suas ações, isto é, agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais, sindicatos de trabalhadores, mulheres, jovens, pessoas em situação de vulnerabilidade, entre outros grupos sociais. Com efeito, ainda que aberto à concertação com acadêmicos e empresários, os países integrantes do Bloco sistematicamente barram a presença de representantes de organizações e movimentos sociais em seus encontros – sejam eles preparatórios ou de chefes de Estado. A violação do direito de todos de participar na tomada de decisões associada a uma intervenção comercial e econômica geradora de exclusão, de destruição da natureza e de incremento do aquecimento global deixar, por hora, pouca margem para esperança.
Nesse sentido, antes de realmente se tornar um contrapeso decisivo na geopolítica internacional, os BRICS precisam reduzir suas desigualdades estruturais e promover maior participação social. Precisam, ainda, por em marcha um modelo de desenvolvimento inédito, construído a partir de novos conceitos e métricas. Precisam, por fim, promover a integração dos povos de suas regiões bem como apostar no multilateralismo para, assim, contribuir para a formação de um mundo efetivamente multipolar, justo e democrático.
Em Durban, pela primeira vez, organizações e movimentos sociais dos BRICS e de outros países, se reuniram num evento paralelo à V Cúpula de Chefes de Estado, batizado de “Os BRICS vistos de baixo” ou os “BRICS-from-Below”, em inglês. Ali debatemos, de forma crítica, os impactos da atuação dos países integrantes do clube de modo a mostrar para o mundo que não aceitamos mais do mesmo. O desafio agora é manter esse debate vivo na sociedade para pressionar nossos governos na direção de uma verdadeira mudança na governança global. Como brasileiros, nossa responsabilidade aumenta uma vez que a próxima Cúpula será realizada no Brasil, em 2014. Nos cabe liderar a organização de eventos e mobilizações que resultem, no mínimo, na maior visibilização da atuação dos países e na construção de mecanismos de concertação com organizações e movimentos sociais. Esperamos que o governo brasileiro, que se apresenta para o mundo como um país democrático, popular e aberto ao diálogo, inaugure esta nova fase dentro dos BRICS.


Nathalie Beghin – Coordenadora da Assessoria do Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC – 18.04.2013

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O bacharelismo e os ecos do Brasil Colônia no Judiciário


A naturalidade com a qual os magistrados de São Paulo recebem “presentes” de empresas privadas e com que um ministro do STF fala do lobby que executou para “conquistar” esse cargo são exemplos de um problema que nasce com a própria formação do Estado brasileiro. Uma das faces desse problema é a baixa qualidade intelectual e cultural que atravessa uma parte importante do Judiciário. Na cultura do bacharelismo, ainda presente, os futuros magistrados são ensinados que não são servidores públicos, mas sim “membros do poder”.

Marco Aurélio Weissheimer
A Associação Paulista de Magistrados (Apamagis) distribuiu, dia 1º de dezembro, presentes oferecidos por empresas públicas e privadas para juízes estaduais, numa festa para mais de mil pessoas promovida no Clube Atlético Monte Líbano, em São Paulo. A revelação foi feita em uma matéria da Folha de S.Paulo nesta segunda-feira (10). 
Segundo a reportagem assinada por Frederico Vasconcelos, entre os brindes e presentes oferecidos aos juízes havia “automóveis, cruzeiros, viagens internacionais e hospedagens em resorts, com direito a acompanhante”. Entre as empresas públicas e privadas que participaram do evento estão a Volkswagen (houve um sorteio de um Fox zero quilômetro), a Caixa Econômica Federal (R$ 10 mil para divulgação e infraestrutura do evento), operadora de Planos de Saúde Qualicorp.
Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Em 2010, ainda segundo a reportagem da Folha de São Paulo, a festa dos magistrados contou com o patrocínio do Banco do Brasil, da cervejaria Itaipava, da seguradora MDS, da Agaxtur (o ministro Sidnei Benetti, do Superior Tribunal de Justiça, ganhou um cruzeiro de cinco dias para duas pessoas no navio Grand Mistral, oferecido por essa empresa) e da TAM (que doou duas passagens de ida e volta para Paris).
Questionados pela reportagem do jornal, o presidente da Apamagis, desembargador Roque Mesquita, e o ministro Sidnei Benetti, do STJ, não quiseram se pronunciar sobre o evento e os presentes recebidos pelos juízes. Já o corregedor nacional de Justiça, ministro Francisco Falcão, anunciou que levará o assunto ao plenário do CNJ, nesta semana. Falcão disse à Folha que tentará desengavetar proposta de sua antecessora, Eliana Calmon, para “regulamentar patrocínios privados em eventos de juízes”. “Saímos inteiramente dos padrões aceitáveis. Recompensa material de empresas não está de acordo com a atuação do magistrado, um agente político”, criticou Eliana Calmon. Na mesma linha, Cláudio Weber Abramo, da ONG Transparência Brasil, questionou: “Como se pode confiar as decisões de juízes que recebem presentes?”.


O “sonho” de Luiz Fux
No dia 2 de dezembro deste ano, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luis Fux, revelou, em entrevista à jornalista Monica Bergamo, da Folha de S.Paulo, o lobby que executou para garantir o “sonho” de uma vaga no STF, no último ano do governo Lula. “Fux grudou em Delfim Netto. Pediu carta de apoio a João Pedro Stedile, do MST. Contou com a ajuda de Antônio Palocci. Pediu uma força ao governador do Rio, Sergio Cabral. Buscou empresários. E se reuniu com José Dirceu, o mais célebre réu do mensalão. Eu fui a várias pessoas de SP, à Fiesp. Numa dessas idas, alguém me levou ao Zé Dirceu porque ele era influente no governo Lula" – relata a surpreendente entrevista. Fux diz a Monica Bergamo que não lembra quem foi o “alguém” que o apresentou a José Dirceu. 
O hoje ministro disse ainda à jornalista que, na época, “não achou incompatível levar currículo ao réu de um processo que ele poderia julgar no futuro”. E garantiu que nem lembrou da condição de “mensaleiro” de José Dirceu quando foi pedir o apoio do mesmo para ser indicado ao STF.


O bacharelismo e os ecos do Brasil Colônia
A naturalidade com a qual os magistrados de São Paulo recebem “presentes” de empresas privadas e com que um ministro do STF fala do lobby que executou para “conquistar” esse cargo são exemplos de um problema que nasce com a própria formação do Estado brasileiro. Uma das faces desse problema é a baixa qualidade intelectual e cultural que atravessa uma parte importante do judiciário brasileiro. No Brasil, a criação dos cursos jurídicos foi uma imposição que parece nunca ter sido superada, naquilo que tem de mais provinciano, autoritário e medíocre. Os cursos de direito de Olinda e de São Paulo tiveram de ser criados para que o país que acabara de decretar a independência tivesse a sua própria elite burocrática a administrar e operar o sistema jurídico do país que acabara de nascer como estado formalmente soberano. 
Não havia escolas públicas ou mesmo boas escolas no Brasil, no século XIX, quando os primeiros alunos, oriundos das classes altas, passaram a frequentar as faculdades de direito de Olinda ou de São Paulo, e não mais as classes da Universidade de Coimbra. Esses jovens, alfabetizados ou formados sabe-se lá como foram os primeiros juízes, advogados e burocratas que conformaram o Brasil independente, dos impérios à proclamação da república. A história não justifica, mas ajuda a entender como mecanismos arcaicos de apropriação do Estado fincaram raízes e se espalharam pelas instituições públicas. 
O bacharelismo que ainda se vê judiciário brasileiro parece ecoar o mesmo bacharelismo lá dos anos vinte do século XIX. Sob vários aspectos, tem-se uma repetição: jovens ou nem tão jovens, muitas vezes subletrados, pouco formados, preenchem provas de múltipla escolha e de pouca exigência intelectual e cultural e, da noite para o dia, passam a ganhar altos salários (no mínimo, em início de carreira, o dobro, em valores líquidos, do que o que um doutor, isto é, alguém com doutorado, recebe, já com a carreira em andamento). São ensinados, no mais das vezes, que não são servidores públicos, mas “membros do poder”. Essas aberrações têm história e um tenebroso presente. 
É claro que há juízes alfabetizados, talvez existam até juízes leitores de Dostoiévski e Machado de Assis. Mas as exibições ao vivo das sessões do STF mostraram comportamentos que só podem ser inteligíveis em função do salário que ganham e do tipo de formação de muitos de nossos magistrados. Somente salários mais altos do que as qualificações intelectuais autorizam permitem demonstrações constrangedoras de arrogância e tacanhice.


O magistrado brasileiro não representa, ele julga
Assim como o Executivo e o Legislativo, o Judiciário tem suas próprias contrapartidas de deveres, e não apenas prerrogativas. Não há, por exemplo, eleição para juiz. Isso é um fator que em tese favorece o institucionalismo republicano. Não é necessário que seja assim, mas no Brasil e em outros países de tradição romano-germânica, no seu sistema do direito, é assim. Pois bem, como servidores públicos, os juízes não podem ser qualquer um que, uma vez eleito, tem na sua investidura no cargo a prerrogativa de representante. O magistrado brasileiro não representa, ele julga. O cargo é vitalício, no entanto, até mesmo casos em que juízes são acusados de pedofilia ou de tentativa de homicídio têm como desfecho a aposentadoria integral, por invalidez, desses senhores. 
O problema não é a estabilidade funcional do juiz, não é o alto salário, não é a exibição pela televisão, ao vivo, de sessões de tribunais superiores. O problema é o baixo nível intelectual acompanhado de um alto poder econômico, com prerrogativas de estabilidade imunes às urnas e ao debate público e político sobre os rumos financeiros, jurídicos e sociais do país, do estado e da sociedade. O problema é que, quando juízes ferem a lei, direta ou indiretamente, eles têm de ser questionados e julgados como qualquer cidadão. E não é isso o que acontece. 
O ministro Luis Fux, por exemplo, não foi submetido a nenhum tipo de investigação em função das declarações que fez a Monica Bergamo. E nenhum dos magistrados de São Paulo parece se sentir na obrigação de prestar contas à sociedade a respeito das contrapartidas que as empresas beneficentes de seus encontros de fim de ano exigem.


O bacharelismo no Brasil e suas profissões
O bacharelismo no Brasil sobrevive em duas profissões, a do juiz e a do médico. Advogado não precisa falar, porque só gente muito desqualificada atende ou chama doutor alguém sem doutorado e o meio da advocacia progressivamente incorpora essas considerações elementares no trato entre os pares. Mas juízes e médicos seguem dispondo de prerrogativas que dão a ver um estado de coisas do Brasil colônia. Os médicos, ao contrário dos juízes, não constituem um dos poderes da República. E os juízes, sim, são parte do Poder Judiciário (e nem por isso menos servidores públicos), mesmo quando desconhecem e alegremente arrotam sobre qualquer republicanismo elementar, quando já chegaram ao STF. 
Juiz pode, sim, escutar seriamente uma dupla sertaneja e encher os olhos de lágrimas, sonhando com aquela noite romântica em Orlando, naquele restaurante com neon azul e palmeiras de plástico. Mas não pode aceitar carro, nem passagem aérea, nem apartamento de amigo advogado emprestado, em Nova York. É uma situação bastante pior que aquela do psicanalista que vive escrevendo em jornal e frequentando vernissage de seus pacientes neuróticos ou psicóticos. Porque, ao contrário dos psicanalistas que eventualmente, como cidadãos, ultrapassem a esfera da tal da transferência, o juiz é um servidor público, no caso brasileiro, de um Estado republicano. Não é mais um bacharel tapa buraco de uma ex-colônia. Pelo menos não com esses salários. Não com esses salários bacharelescos.


Marco Aurélio Weissheimer – 13.12.2012
IN “Carta Maior” – http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21394&boletim_id=1462&componente_id=24794





Juízes resistem a norma que restringe patrocínio 

eventos

Frederico Vasconcelos
Crítico da participação de juízes em eventos patrocinados por empresas em hotéis luxuosos, o corregedor nacional de Justiça, ministro Francisco Falcão, foi chamado recentemente por magistrados de Pernambuco para fazer uma palestra sobre o tema. Local escolhido: um resort na ilha de Fernando de Noronha.
Falcão recebeu o convite como se fosse uma provocação e pediu que o encontro, marcado para um fim de semana de maio, fosse realizado em local mais adequado a um congresso jurídico. O evento foi transferido então para um hotel no Recife, mas o corregedor não compareceu.
O episódio foi narrado pelo próprio Falcão ao ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, como exemplo da resistência imposta pelos juízes diante das tentativas do Conselho Nacional de Justiça de controlar a realização desses eventos.
Mello é relator de dois mandados de segurança impetrados por associações de magistrados que querem derrubar a Resolução nº 170 do CNJ. Aprovada em fevereiro, a resolução impõe limites às contribuições das empresas às associações e restringe a participação de juízes em eventos com financiamento privado.
As associações alegam que a norma viola os direitos de seus associados à liberdade de atividade intelectual e científica, e ofende a liberdade de associação sem interferência estatal. Não há data prevista para o julgamento dos dois mandados pelo STF.

Tempo livre
Antes de cancelar o evento de Fernando de Noronha, a Escola Superior da Magistratura de Pernambuco havia feito reservas para 60 pessoas no Dolphin Hotel -que cobra diárias de até R$ 1.200 - e mais duas pousadas da ilha.
O programa do encontro, para o qual foram convidados juízes de vários Estados, previa reuniões de trabalho apenas entre 16h e 19h, deixando os participantes livres para fazer o que quisessem na ilha no restante dos dias.
A Folha apurou que o gerente de uma agência de um banco oficial no Recife foi consultado sobre a possibilidade de contribuir com R$ 100 mil para o evento. A instituição recusou o pedido.
Falcão também apresentou a Celso de Mello documento que sugere a presença de juízes no Festival Folclórico de Parintins, realizado em junho no Amazonas, a convite do governo estadual, que teria oferecido lugar em camarotes exclusivos e o pagamento de despesas com hospedagem, transporte e alimentação.
Em abril, a Associação dos Magistrados Brasileiros promoveu em São Paulo a sexta edição dos Jogos Nacionais da Magistratura, com patrocínio da operadora de planos de saúde Qualicorp, que ofereceu carros e aparelhos eletrônicos como brindes em eventos anteriores de juízes.
As associações que foram ao STF contra a resolução do CNJ queriam uma liminar para suspender os efeitos da norma, mas o ministro Celso de Mello rejeitou o pedido.
Em sua decisão, o ministro considerou inaceitável a "transgressão a uma expressa vedação constitucional que não permite, qualquer que seja o pretexto, a percepção, direta ou indireta, de vantagens ou de benefícios inapropriados", e recomendou vigilância sobre os juízes.

Frederico Vasconcelos – 29.07.2013