Com a atual importância da Polícia
Militar, seja pela ampliação dos poderes dos praças no controle cotidiano, seja
pela influência dos oficiais na administração pública, dificilmente
trabalhadores pobres e com pouca articulação política conseguirão se manter
atuantes em lugares cujo potencial econômico é muito grande.
Daniel Hirata
Quando
o coronel da reserva da Polícia Militar, Rubens Casado, foi nomeado subprefeito
da Mooca, na cidade de São Paulo, em 2008, iniciava-se um processo de alteração
na administração das subprefeituras que seria uma das marcas do segundo mandato
de Gilberto Kassab. Foi dito em diversas oportunidades que se alterava o perfil
mais político dos antigos subprefeitos, normalmente assessores ou possíveis
candidatos a vereador, por um perfil mais técnico. A técnica em questão,
articulação de estratégias securitárias e militares aplicadas ao espaço urbano,
é uma das competências que Casado tem nocurriculum. Logo após o escândalo da
Favela Naval, em 1999, em que um vídeo mostrou policiais torturando e matando
moradores na periferia de São Paulo, o coronel foi designado como novo
comandante do 24° Batalhão da Polícia Militar, participando ativamente de um
processo a que o coronel Luís Carlos Barreto deu continuidade e que
transformaria a cidade de Diadema em um “case” de sucesso internacional. A
coordenação de institutos de pesquisa transnacionais, o auxílio do Banco
Mundial e a estreita parceria da Polícia Militar com a prefeitura de Diadema
fizeram que os indicadores apontassem uma expressiva redução das taxas de
homicídio e criminalidade. Essa diminuição, que emergia no bojo desse modelo de
gestão integrada, foi produzida por medidas que combinavam “participação e
engajamento da população” em fóruns públicos e disque-denúncia, a instalação de
câmeras de vigilância e policiamento ostensivo em lugares considerados
sensíveis, e o carro-chefe, que tornou Diadema mundialmente conhecida: a
introdução piloto da lei seca nos bares da cidade após as 23 horas, medida que
depois seria copiada por diversos municípios brasileiros.1
As
competências que permitiram a participação de Casado em uma experiência de “boa
gestão” urbana parecem indicar que novos elementos passam a fazer parte da
conhecida “cultura policial”, produto da formação institucional e da prática
cotidiana dos policiais militares. Esse perfil renovado de oficial da PM tem
afinidades eletivas com aquele das cidades securitárias, nova composição entre
ordem social, penal e urbana, e nova tecnologia política para a boa gestão das
cidades.2 No caso de São Paulo, essas afinidades eletivas aparecem não
apenas na maneira pela qual a Polícia Militar vem sendo utilizada na
administração pública, por meio de nomeações de oficiais da reserva para ocupar
postos-chave nos governos estaduais e municipais, mas também no uso intensivo e
extensivo da força militar como instrumento governamental privilegiado de
intervenção no meio urbano. Ordem pública e segurança urbana se aproximam
perigosamente de tal maneira que parece ser pertinente estender a área de
atuação da Polícia Militar em suas duas pontas: por cima, em seu trabalho na
Secretaria de Segurança Pública e na administração das subprefeituras, os
oficiais controlam o planejamento, a operacionalização e a avaliação dos
resultados das operações; por baixo, os praças têm seu poder ampliado por meio
de uma legislação de exceção, que lhes confere plenos poderes discricionários
na execução cotidiana dessas operações. Esse circuito interligado de controle
social transforma a corporação policial e, claro, os partidos que compõem a
aliança governo/prefeitura em um grupo político de grande importância na
cidade. O controle do comércio ambulante no bairro do Brás, nos últimos quinze
anos, não por acaso parte da subprefeitura da Mooca, é muito representativo da
militarização dos instrumentos civis de fiscalização e do surgimento desse novo
grupo político em São Paulo.
A
primeira experiência de militarização da fiscalização do comércio ambulante
precede a nomeação do novo subprefeito por Gilberto Kassab. A então prefeita
Marta Suplicy já havia transferido as atribuições de fiscalização dos fiscais
das subprefeituras para a Guarda Civil Metropolitana (GCM) por meio de uma
série de leis e decretos (especialmente a Lei n. 13.866/04), como tentativa de
“recrudescer o controle do comércio ambulante”. A avaliação dessa experiência
não foi muito positiva porque, apesar da GCM paulista ser uma das mais
militarizadas do país, não se considerou sua atuação bem-sucedida no controle
do comércio ambulante. Mas a conquista efetiva do controle coercitivo foi
garantida legalmente alguns meses depois da nomeação de Casado, com a aprovação
em 2 de dezembro de 2010 de um convênio firmado entre o governo do estado de
São Paulo, por meio da Polícia Militar, e a prefeitura municipal, por meio da
Coordenadoria de Subprefeituras, que ficou conhecido como “operação delegada”.
A Operação Delegada (Lei n. 14.977/09 e Decreto n. 50.994/09) permitia que
policiais em dias de folga trabalhassem até 96 horas por mês para a prefeitura,
ganhando uma gratificação extra pela municipalidade.
Contudo,
mais decisivo que o pagamento pelas horas extras aos policiais militares, e
ausente na lei e no decreto que a regulamentam, foi a delegação de funções que
nomeia a operação e estabelece uma transferência das atribuições de controle do
comércio informal dos fiscais das subprefeituras e policiais da GCM para a
Polícia Militar, ou seja, a “gambiarra jurídica” que fere a divisão
constitucional dos papéis de cada órgão de controle, diluindo as
especificidades das atribuições de fiscalização em prol da ampliação do espaço
de atuação da PM. Foi por meio dessa extensão dos poderes da Polícia Militar
que a poderosa estrutura da corporação foi mobilizada para atuar no bairro do
Brás: tropa de choque, cavalaria, bases móveis e unidades especiais em grande
número foram deslocadas para realizar a ocupação do bairro. Sem a visibilidade
que outras ocupações, voltadas para a “pacificação” de favelas, ganharam nos
últimos anos, o bairro se encontrou cercado pela polícia, sem resistência
possível de ser esboçada pelos camelôs. A operação “de caráter técnico” incidiu
sobre os principais líderes dos camelôs, como Afonso Camelô e Alemão, que foram
identificados, presos e mantidos em cárcere durante os primeiros meses da
megaoperação, dificultando qualquer tentativa de mobilização por parte desses
trabalhadores.
Além
da ocupação no bairro, o cotidiano da fiscalização mudou completamente quando
operacionalizada pela Polícia Militar. Centralizando na atuação da PM
atribuições anteriormente divididas nos diversos agentes do controle de
ambulantes, a delegação permite uma maior agilidade e eficácia do controle no
dia a dia do bairro. O major Wagner Rodrigues, chefe da Divisão de
Administração e Operação do Centro, em entrevista concedida a esta reportagem,
relatou que essa maneira de conceber a fiscalização foi feita a partir da
experiência de diversas operações anteriores que ele próprio comandou, em que
se percebia que a divisão de atribuições impedia a eficiência do controle.
Exemplifica que era impossível prender os chamados “paraquedas” − vendedores
que estendem suas mercadorias sobre panos no chão para conseguir fugir da
fiscalização, fechando-os − porque, quando o pano se encontrava esticado, a
atribuição de fiscalização de pontos na rua cabia à GCM e, quando fechado e
transformado em “bolsa”, somente a Polícia Militar poderia revistar o pertence
pessoal. Após o convênio entre governo do estado e prefeitura, essa pequena
cena interativa do controle social altera-se completamente: de um lado, os
poderes discricionários de um policial durante seu “bico” são mais extensos que
aqueles que ele tem quando trabalha oficialmente, pois, durante a Operação
Delegada, o soldado concentra as atribuições da GCM e as dos fiscais da
subprefeitura, ampliando seu poder na rua; de outro, essa ampliação é garantida
por seus superiores, os policiais no comando das subprefeituras, que organizam
todo o planejamento e operacionalização da fiscalização, da apreensão e da
possível prisão dos camelôs por meio de uma espécie de insulamento
administrativo.
Finalmente,
como última consequência da introdução da Operação Delegada e do controle das
subprefeitura pela PM, o Fórum Permanente dos Ambulantes foi esvaziado de suas
funções de mediação política. Num bairro em disputa como o Brás, a instituição
foi sempre vista como uma conquista democrática resultante do primeiro
escândalo da máfia dos fiscais e um espaço de interlocução entre camelôs e a
prefeitura.3 Ao perceberem que as decisões mais importantes relativas ao
trabalho na rua passavam ao largo das deliberações do fórum, ainda que este
existisse formalmente, e com as repetidas ausências de Casado e seu chefe de
gabinete, o tenente Altino José Fernandes, futuro chefe do conselho gestor da
feira da madrugada, os representantes dos camelôs passaram a não mais
frequentar essas reuniões. Eles dizem que, atualmente, são os lojistas os
interlocutores privilegiados dos oficiais que comandam a subprefeitura e
realizam a fiscalização nas ruas. Em entrevista com a Associação Alô Brás,
entidade que representa os interesses dos donos de lojas no bairro, foi dito
que os lojistas discutiram, em reuniões com policiais representantes da
subprefeitura e encarregados da Operação Delegada, decisões relativas ao
bairro, como o embelezamento do Largo da Concórdia, cujo custo estimado de R$ 2
milhões foi inteiramente pago com o dinheiro da Alô Brás, ou ainda o ambicioso
projeto de reforma da Rua Oriente, cujos recursos, de mesma proveniência, já se
encontram disponíveis, somando um total de R$ 5 milhões.
Essa
aproximação entre lojistas e prefeitura, na figura dos policiais encarregados
da administração e do comando das operações, ampliou-se e intensificou-se no
projeto do chamado “corredor de compras” apresentado no final dos anos 2010
pela administração municipal, resultado das reuniões com a associação de
lojistas do Brás. Trata-se de uma tentativa de afirmação da vocação comercial
de boa parte da região central, por meio de uma ligação dos bairros do Bom Retiro,
Santa Ifigênia, Sé e Brás, onde se localizam os principais centros comerciais
da cidade. No meio desse circuito interligado, encontra-se a feira da
madrugada, onde se planeja a construção, sob o regime de parceria
público-privada (PPP), de um empreendimento com prédios comerciais,
residenciais, estacionamento para ônibus e carros, áreas de alimentação e
alguns prédios de serviços públicos.4
Ao que
parece, o horizonte que emerge dessa nova maneira de conduzir a política em São
Paulo deve ser mais um “case” de sucesso. A prova disso é que atualmente 30 das
31 subprefeituras são comandadas por policiais da reserva da PM, além de
estarem à frente da Secretaria de Segurança Pública do Estado, da Secretaria de
Transportes, presentes na Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), no serviço
funerário, no serviço ambulatorial e na defesa civil, totalizando mais de 55
policiais na administração pública.5Além disso, a Operação Delegada já se
encontra em andamento em diversos outros municípios do estado, e técnicas operacionais
similares começam a ser cogitadas em outros estados. A tecnologia securitária
como modo de gestão do espaço urbano é uma técnica contemporânea eficaz.
De
outro lado, e ao mesmo tempo, parece ser uma maneira muito eficiente de
produzir mercados ou disputá-los. A aprovação aberta ou velada de parte da
sociedade comprova que a troca de liberdades civis por uma demanda de ordem e
segurança é um caminho que pode ser trilhado politicamente, ou seja, que pode
ter resultados econômicos e eleitorais expressivos. Com a importância que a
Polícia Militar apresenta atualmente, seja pela ampliação dos poderes dos
praças no controle cotidiano, seja pela influência dos oficiais na
administração pública, dificilmente trabalhadores pobres e com pouca
articulação política conseguirão se manter atuantes em lugares cujo potencial
econômico é muito grande. Essa parece ser a técnica e a racionalidade política
que mais se encaixa ou conflui na direção da articulação de antigos e novos
grupos de poder na cidade. Resta entender quais são os grupos que se articulam
ao redor do uso desse tipo de tecnologia de governo: trata-se de uma
autonomização da PM como novo grupo político, ou a aliança instável do prefeito
e do governador do estado ainda tem o controle da corporação e está
estruturando suas bases nesses termos? Em ambos os casos, a centralização do
poder e a falta de real participação da população nas decisões relativas à
cidade parecem se conjugar com a concentração econômica da riqueza produzida em
solo urbano.
1 Ver uma descrição do “case” de Diadema no site do
Instituto Fernand Braudel: pt.braudel.org.br.
2 Sobre a emergência das cidades securitárias, ver Andrea Cavalletti, Mitología de la seguridad: la ciudad biopolítica [Mitologia da segurança: a cidade biopolítica], Adriana Hidalgo, Buenos Aires, 2010. Sobre as experiências que formaram a articulação entre as práticas de intervenção securitárias do urbanismo e da polícia, ver Thierry Oblet, Defendre la ville [Defender a cidade], PUF, Paris, 2008.
3 A região foi palco de disputas da riqueza do comércio popular, que ganharam notoriedade com as denúncias dos camelôs, dando origem à chamada CPI da Propina. Veio à tona uma rede criminosa envolvendo diversas pessoas que trabalhavam na administração de Celso Pitta, que posteriormente viria a ser afastado do cargo. Ver José Eduardo Cardozo, A máfia das propinas, Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2000.
4 As empresas apontadas como parceiras da prefeitura no projeto são alguns dos maiores bancos do país, além de grandes consultorias corporativas nacionais e internacionais de viabilidade logística, jurídica, urbana, financeira e de comunicação. Relatório do projeto “Trabalho informal e direito à cidade”, desenvolvido no Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, 2011.
5 Gabriela Moncau, “Kassab reforça o Estado policial em São Paulo”, Caros Amigos, jul. 2011.
2 Sobre a emergência das cidades securitárias, ver Andrea Cavalletti, Mitología de la seguridad: la ciudad biopolítica [Mitologia da segurança: a cidade biopolítica], Adriana Hidalgo, Buenos Aires, 2010. Sobre as experiências que formaram a articulação entre as práticas de intervenção securitárias do urbanismo e da polícia, ver Thierry Oblet, Defendre la ville [Defender a cidade], PUF, Paris, 2008.
3 A região foi palco de disputas da riqueza do comércio popular, que ganharam notoriedade com as denúncias dos camelôs, dando origem à chamada CPI da Propina. Veio à tona uma rede criminosa envolvendo diversas pessoas que trabalhavam na administração de Celso Pitta, que posteriormente viria a ser afastado do cargo. Ver José Eduardo Cardozo, A máfia das propinas, Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2000.
4 As empresas apontadas como parceiras da prefeitura no projeto são alguns dos maiores bancos do país, além de grandes consultorias corporativas nacionais e internacionais de viabilidade logística, jurídica, urbana, financeira e de comunicação. Relatório do projeto “Trabalho informal e direito à cidade”, desenvolvido no Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, 2011.
5 Gabriela Moncau, “Kassab reforça o Estado policial em São Paulo”, Caros Amigos, jul. 2011.
Daniel Hirata – Doutor
em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é pesquisador do
Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (NECVU-UFRJ), onde estuda mercados informais, ilegais
e ilícitos em São Paulo e no Rio de Janeiro – 07 de Março de 2012
IN Le Monde Diplomatique – http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1123