Alexandre
de Freitas Barbosa – “Além
do crescimento econômico e de seu reflexo no mercado de trabalho, o governo
reforçou a política de elevação do poder de compra do salário mínimo,
impactando os níveis de renda da mão de obra menos qualificada e dos
beneficiários da previdência social. Resta perguntar agora qual o padrão
de emprego que essas pessoas têm, se contribuem para previdência social, se têm
acesso à saúde, à educação de qualidade – que são indicadores de
desenvolvimento no sentido mais amplo”.
Roldão Arruda
Após dez anos no poder, o PT ainda não venceu o
desafio de reduzir substancialmente as desigualdades no País. É isso o que
sinaliza o estudo O Brasil Real: A Desigualdade para Além dos
Indicadores, lançado pela editora Outras Expressões.
Encomendado pela organização européia Christian Aid
e realizado por um conjunto de seis pesquisadores, ligados ao Centro Brasileiro
de Análise e Planejamento (Cebrap), o estudo não nega os avanços ocorridos nos
governos dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Procura,
no entanto, ir além do festejado surgimento de uma nova classe média no País.
O coordenador da equipe de pesquisadores, o
professor de história econômica Alexandre de Freitas Barbosa, refuta esse
conceito e afirma que as mudanças ocorridas no Brasil recentemente estão
ligadas sobretudo à valorização real do salário mínimo, que deu maior poder a
uma enorme massa de trabalhadores que ganham de um a três salários e realizam
sobretudo atividades manuais.
“É isso que estamos chamando de nova classe média?”
– pergunta ele em entrevista ao Estado, com a apresentação dos
principais tópicos do estudo. Uma parte reduzida da entrevista foi publicada na
edição impressa do jornal no domingo.
A seguir, uma versão mais longa do que disse o
estudioso:
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva
tem sido festejado como um ponto histórico de inflexão na redução da pobreza. O
senhor concorda?
Alexandre de Freitas
Barbosa –
Não há como negar que houve uma redução substancial
da pobreza no Brasil. Diferentes tipos de indicadores apontam isso. Ela começou
um pouco antes do governo Lula, mas a inflexão mais forte ocorreu entre 2004 e
2009. Pela primeira vez na história, o Brasil viveu um processo de crescimento
econômico com democracia e redução da desigualdade de renda.
A que atribui isso?
Os motivos são vários: melhoria do quadro externo,
redução dos juros, retomada dos investimentos do governo federal, gastos
populares – em razão do emprego, do crédito e do salário mínimo em elevação – ,
programas de transferência de renda e outros. Houve uma retomada do papel do
Estado como indutor da demanda, inclusive por meio do investimento – o que
atiçou as expectativas de retorno por parte dos empresários, permitindo a
aceleração do crescimento econômico, especialmente entre 2006 e 2008.
Mas o estudo que o senhor coordenou relativiza esse
avanço, destacando a permanência da desigualdade.
Alexandre de Freitas
Barbosa –
O grupo que eu coordenei tentou agregar, de maneira
mais substantiva, algumas questões a esse debate. Para começar: o que é pobreza
e o que é desigualdade? Os indicadores comemorados são os que apontam a redução
da pobreza absoluta. E como eles funcionam? Você define um patamar, abaixo do
qual todos os indivíduos são pobres. Quando um desses indivíduos ou família
consegue avançar meio centavo acima desse patamar, deixa de ser pobre. No caso
da desigualdade, o indicador é relativo, construído a partir da comparação
entre os ganhos dos 10% mais ricos e os dos 10% mais pobres, utilizando dados
da Pnad, que mede a renda do trabalho.
Não teria havido redução da desigualdade?
Alexandre de Freitas
Barbosa –
O Índice de Gini, uma das medidas mais comuns para
a abordagem das desigualdades sociais, revela uma redução expressiva dessas
desigualdades. Não há dúvida. O que estou querendo entender é como isso ocorreu
e qual é a sustentabilidade do processo. Ao contrário do que é divulgado, não
foram os programas sociais os principais responsáveis pelas mudanças. Os
estudos do Ipea apontam que elas estão relacionadas em grande medida ao mercado
de trabalho. O Brasil, num período de crescimento econômico, conseguiu fazer
com que a renda do trabalho crescesse.
Do ponto de vista da desigualdade, portanto, a
questão salarial pesou mais que os programas sociais?
Alexandre de Freitas
Barbosa –
Sim. Além do crescimento econômico e de seu reflexo
no mercado de trabalho, o governo reforçou a política de elevação do poder de
compra do salário mínimo, impactando os níveis de renda da mão de obra menos
qualificada e dos beneficiários da previdência social. Resta perguntar
agora qual o padrão de emprego que essas pessoas têm, se contribuem para
previdência social, se têm acesso à saúde, à educação de qualidade – que são
indicadores de desenvolvimento no sentido mais amplo. Você pode reduzir a
pobreza mantendo altos índices de desigualdade e dificuldades de acesso a
políticas públicas. Não basta mostrar ganhos monetários. Outra pergunta a ser
feita é: com a configuração atual do mercado de trabalho, tenho margem para
continuar reduzindo a desigualdade?
Ao apontar o peso salarial nas mudanças, o senhor
deduz que as áreas mais beneficiadas foram as mais ricas. Como?
Alexandre de Freitas
Barbosa –
O Brasil é um País muito complexo. A queda mais
significativa das desigualdades ocorreu nas regiões mais ricas, onde existem
mais assalariados, onde a massa salarial é maior. Isso contraria aqueles que
afirmam que os Estados mais ricos estariam sustentando a queda na desigualdade
com transferência de renda para os pobres do Nordeste. Foram os segmentos mais
pobres regidos pelo salário mínimo que conseguiram mais avanços.
Como definiria esses segmentos? É a tal nova classe
média?
Alexandre de Freitas
Barbosa –
Trata-se da típica classe trabalhadora que teve um
aumento do poder de consumo. O que se deve pensar agora é como ela pode
continuar acompanhando os ganhos de produtividade. O crescimento do nível de
emprego no País ocorreu principalmente nos segmentos de baixos salários. Em
cada dez postos criados no setor formal, nove têm remuneração inferior a três
salários mínimos. No Brasil, 50% da estrutura ocupacional é constituída por
pessoas que não têm direitos trabalhistas, nem previdenciários, e que realizam
atividades manuais. É isso que está sendo chamado de nova classe média?
Os indicadores apontam que nesse meio a renda
aumentou, as condições de vida melhoraram , o nível de emprego subiu.
Alexandre de Freitas
Barbosa –
Isso é o que se diz. O que não se diz é que o nível
de renda usado na comparação é o de 2003, o mais baixo da história brasileira
desde 1990. O que não se discute é qual tipo de inserção ocupacional está
ocorrendo, em que tipo de habitação as pessoas vivem, que tipo de formação
profissional possuem, que tipo de escola matriculam suas crianças, que tipo de
serviço de saúde podem acessar.
Essas questões estão relacionadas à medição da
desigualdade?
Alexandre de Freitas
Barbosa –
Sim. Para afirmar que houve redução substantiva da
desigualdade, teria que se comprovar que houve uma ampliação substantiva das
políticas universais. Não houve. Essas políticas são muito caras do que as
transferências de renda.
Pode-se concluir que os programas sociais não são
tão importantes?
Alexandre de Freitas
Barbosa –
Eles são fundamentais, mas não suficientes para
promover alterações mais profundas na questão da desigualdade. O que me preocupa
é que o problema até tende a se agravar se o governo continuar achando que, ao
atacar a pobreza extrema, está automaticamente atacando a desigualdade.
Concentrar recursos naqueles que mais precisam, de forma isolada, no intuito de
melhorar suas condições é a linha de atuação mais confortável: evita atritos
com a ampla coalizão política que apoia o governo, propicia estatísticas
positivas e garante dividendos eleitorais. Atacar a desigualdade não é uma
coisa estática, de tirar do rico para entregar ao pobre. O padrão de
desenvolvimento é que permite acumular mais capital, gerar mais produtividade,
permitir que os ganhos do trabalho avancem à frente dos ganhos do capital. O
padrão de desenvolvimento tem que assegurar continuamente o aumento da renda dos
de baixo a partir da dinâmica do trabalho, das negociações coletivas, e de
mudanças estruturais.
Quais mudanças?
Alexandre de Freitas
Barbosa –
Uma delas é a reforma tributária. No Brasil a
concentração em impostos indiretos, mais regressivos, contribui para baixar a
renda disponível dos pobres e elevar a dos ricos. Também é preciso desonerar a
folha de pagamento, para aumentar a competitividade. É preciso, como já disse,
discutir habitação, saneamento, educação, saúde, todas as políticas de
infraestrutura, porque todas elas podem contribuir para reduzir a desigualdade
de oportunidades.
Para alguns analistas, o investimento na educação é
o melhor caminho para a redução das desigualdades.
Alexandre de Freitas
Barbosa –
Se analisar os índices que medem o prêmio salarial
de acordo com o nível de educação, verá que eles caíram em todos os lugares.
Como a desigualdade em grande medida se reduziu pelo aumento do salário mínimo,
quem mais ganhou foi quem tinha menor escolaridade. Nesse caso, a redução da
desigualdade não esteve relacionada à melhoria da educação.
Mas ela pode trazer vantagens.
Alexandre de Freitas
Barbosa –
Pode trazer se a economia gerar postos de trabalho
que exijam uma melhor qualificação. Para absorver mais engenheiros é preciso
construir mais usinas hidrelétricas, mais aviões. Os países que tiveram mudança
expressiva na sua estrutura ocupacional relacionada à educação tiveram uma
política industrial de desenvolvimento acoplada. A Coreia do Sul é o exemplo
mais típico. No Brasil, o pouco que está acontecendo na área industrial são
movimentos espasmódicos, comandados pelo curto prazo.
O estudo sugere que, se não forem acoplados a
políticas mais amplas, programas sociais podem agravar desigualdades.
Alexandre de Freitas
Barbosa –
Exatamente. Imagine uma região pobre do Nordeste,
com um grande número de famílias beneficiadas pelo Bolsa Família. Se não houver
uma alteração no mercado de trabalho, nas possibilidades de acesso a empregos
melhores e de mobilidade social, o programa pode acentuar as desigualdades.
Quem já controla o comércio, tende a ficar mais rico, porque há mais gente
consumindo.
Mas o aumento do consumo também não eleva a
produção local?
Alexandre de Freitas
Barbosa –
Não necessariamente. Com os padrões de consumo
nacionalizados, eles podem estar consumindo bens produzidos nas regiões Sul e
Sudeste.
O governo garante que está atento a isso.
Alexandre de Freitas
Barbosa –
Essa não é a lógica do governo federal, embora
existam programas isoladas, como o Pronaf, que vem dinamizando a produção de
alimentos em pequenas propriedades. Estamos chegando aqui à raiz do problema. Vejamos:
só a valorização do salário mínimo não é capaz de alterar a profunda
desigualdade do País; diante disso, programas como o Bolsa Família se tornam
necessários; mas é preciso associar a ele outras ações, como a formação de
cooperativas, assistência técnica aos pequenos produtores, garantia de compra
da produção.
Pode-se dizer que o PT ainda está longe de
transformar o Brasil num País menos desigual?
Alexandre de Freitas
Barbosa –
Os governos de Lula e Dilma deram um passo
importante ao colocar a questão da pobreza no centro da agenda, mas isso
ofuscou a agenda maior, do desenvolvimento e da redução da desigualdade. São
agendas que deveriam se completar. O combate duradouro e eficiente à pobreza
exige uma agenda do desenvolvimento e do combate à desigualdade.
Em termos mais específicos, o que recomendaria?
Alexandre de Freitas
Barbosa –
É preciso fazer avançar os setores industriais de
maior produtividade, maior processamento, maior agregação de valor, maior
tecnologia. Isso poderia fazer com que a massa de trabalhadores que vive do
salário mínimo passasse para níveis salariais melhores, o aumento da renda
ficaria casado com o aumento da produtividade. Todo esse oba oba sobre os
avanços não leva em conta que pouco mudou na estrutura ocupacional do Brasil
nesse período. O trabalhador que teve aumento de renda, que passou a ser
formalizado, ganha entre um e dois salários mínimos. O que eu quero saber é o
seguinte: mudou o tipo de atividade que exerce? É requisitada dele maior
formação profissional?
Alexandre de Freitas Barbosa – pesquisador do Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) – 15.01.2013
IN
Blog do Roldão – http://blogs.estadao.com.br/roldao-arruda/combate-a-pobreza-ofuscou-agenda-do-desenvolvimento-e-da-reducao-da-desigualdade-diz-pesquisador/