Mais de
cinco milhões de pessoas ajudaram a formular, implementar ou fiscalizar as
políticas públicas no Brasil
Simone
Biehler Mateos
Pouca
gente, além dos diretamente envolvidos, sabe que boa parte do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC), todo o Programa Nacional de Habitação, o plano
de expansão das universidades públicas, o ProUni, a criação do Sistema Único de
Assistência Social (Suas), as políticas afirmativas contra a discriminação
racial, de mulheres e minorias sexuais e o amplo conjunto de medidas que
impulsionaram enormes avanços na agricultura familiar nos últimos anos foram
formulados e decididos com a participação direta de milhões de brasileiros, por
meio de inúmeros canais criados ou ampliados para consolidar a democracia
participativa no país.
Só
as 73 conferências nacionais temáticas realizadas para debater políticas
públicas envolveram, em seus vários níveis, cerca de cinco milhões de pessoas.
Mais da metade dos conselhos nacionais de políticas públicas que contam com
participação popular foram criados ou ampliados nos últimos oito anos.
A
participação popular na elaboração, implementação e fiscalização das políticas
públicas ganhou amplitude sem precedentes, contribuindo para aumentar tanto a
eficácia e abrangência das ações públicas, como a capacidade de formulação dos
movimentos sociais.
Durante
esse período, programas estruturantes como as medidas conjunturais relevantes
foram decididos e implementados por meio de diálogo direto e da mais ampla
negociação com os movimentos sociais. Para isso foram criados ou ampliados
diversos canais de interlocução do Estado com os movimentos sociais -
conferências, conselhos, ouvidorias, mesas de diálogo etc. -, que já configuram
o embrião de um verdadeiro sistema nacional de democracia participativa.
Políticas
de desenvolvimento, geração de emprego e renda, inclusão social, saúde,
educação, meio ambiente, segurança pública, defesa da igualdade racial, dos
direitos das mulheres ou de minorias sexuais, dentre tantas outras, foram
discutidas nas 73 conferências nacionais sobre políticas públicas. Elas
representam 64% do total desses encontros (114) realizados no Brasil nos
últimos 60 anos, e abrangeram um leque de temas nunca antes levados ao amplo
debate popular pelo poder público (ver tabela 1 pág. 22). Os assuntos abordados
e deliberados vão desde saneamento e habitação à políticas de geração de renda,
reforma agrária, reforma urbana, direitos humanos, política científica e
tecnológica, de uso das águas, estratégias para o desenvolvimento de Arranjos
Produtivos Locais (APLs), passando por temas específicos como saúde indígena ou
defesa dos direitos das minorias sexuais.
A
maior mudança nesse processo democrático, segundo Roberto Pires, técnico de
planejamento e pesquisa do Ipea,
é que "estes espaços de participação têm gerado oportunidades para atores
sociais, grupos, movimentos, associações localizarem suas demandas. São grupos
que, frequentemente, por representarem minorias políticas, têm grande
dificuldade de levar suas demandas aos legisladores e formuladores de políticas
públicas".
Com
formato congressual, algumas conferências começam com debates por bairro ou
escola (como as de educação), todas têm etapas municipais que discutem teses de
um documento base e elegem representantes para o encontro regional ou estadual,
de onde saem os delegados nacionais. Delegados dos ministérios participam
ativamente de seus grupos de trabalho e das plenárias das conferências
nacionais, trazendo dados, opinando, divergindo e interagindo com os
participantes desses encontros, boa parte dos quais contou com a participação
do próprio presidente da República.
Esses
encontros nacionais, em sua maioria realizados em Brasília, costumam reunir
entre 600 e cinco mil pessoas anualmente ou a cada dois ou quatro anos,
dependendo do tema. Até brasileiros que vivem no exterior já puderam participar
de duas conferências, de Comunidades Brasileiras no Exterior, realizadas
em julho de 2008 e outubro de 2009.
As
diretrizes aprovadas nas diversas conferências nortearam políticas públicas
elaboradas, fiscalizadas e avaliadas pelos 61 conselhos de participação social
que - integrados por representantes do governo e da sociedade civil - hoje
assessoram as ações de todos os ministérios. Muitas das suas deliberações já se
tornaram decretos, portarias ou projetos de lei aprovados ou em tramitação no
Congresso Nacional.
Mas
as conferências nacionais não foram os únicos canais de participação ampliados
nos últimos anos. Dos 61 conselhos nacionais de políticas públicas com
participação popular existentes, 33 foram criados ou recriados (18), ou
democratizados (15) desde 2003. Hoje, 45% de seus membros são do governo e 55%
da sociedade civil, incluindo, dependendo do caráter do conselho,
representantes do setor privado e dos trabalhadores em geral ou de dado setor,
da comunidade científica, de instituições de ensino, pesquisa ou estudos
econômicos, assim como por organizações de jovens, mulheres e minorias.
Por
meio das conferências, conselhos, mesas de negociação, audiências públicas e
outros canais, tanto os grandes programas do governo - inclusive o PAC
(Programa de Aceleração do Crescimento) e o Minha Casa, Minha Vida -, como as medidas
conjunturais mais importantes - como as de combate à crise - foram previa e
amplamente discutidos com a sociedade civil organizada. Ao mesmo tempo,
projetos polêmicos - como a transposição do rio São Francisco, a construção das
duas usinas do rio Madeira e da BR 163 e o plano de Desenvolvimento Sustentável
da Ilha de Marajó - foram objeto de diversas audiências públicas nos municípios
afetados.
E para temas importantes e específicos - como uma política para a valorização do salário mínimo, a melhoria das condições de trabalho no setor sucro-alcooleiro, as reivindicações das mulheres camponesas, do funcionalismo, dos atingidos por barragens, da moradia popular - foram criadas mesas de negociação permanente.
"Todas
as medidas de maior impacto econômico e social do governo foram decididas e
implementadas com ampla participação social", frisa Luiz Soares Dulci,
ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República. Tradicionalmente
um órgão de assessoramento das articulações políticas do governo com o
Congresso, com algumas tarefas administrativas relacionadas ao Planalto, a
partir de 2003 a Secretaria ganha formalmente a função de articular uma
estreita comunicação do governo com a sociedade civil organizada. A partir daí,
todas as políticas importantes passam a ser formuladas junto com os movimentos
sociais nas conferências, conselhos e mesas de diálogo.
Processo
ignorado
Apesar
do amplo alcance destas políticas, poucos dos afetados sabem que também o Plano
Nacional de Habitação, a Lei Nacional de Saneamento e a de Resíduos Sólidos (já
aprovadas) ou o Marco Regulatório da Mobilidade Urbana (em tramitação) refletem
essencialmente formulações feitas pelos movimentos sociais no Conselho Nacional
das Cidades e nas quatro conferências nacionais que este realizou desde que foi
criado, em 2003.
Outra
conquista do conselho e das conferências nacionais das cidades foi a criação do
Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. O fundo contempla
financiamento para a faixa de renda de zero a três salários mínimos e, pela
primeira vez, abriu a possibilidade de projetos habitacionais autogestionados,
nos quais os recursos para casas que serão construídas em mutirão são
repassados a entidades comunitárias. A Caixa Econômica Federal conta hoje com
uma subgerência social para fazer essa interface com os projetos dos movimentos
sociais.
"A
Caixa nos trouxe vários projetos de habitação popular que foram refeitos na
base da negociação. Graças a esse debate, o Minha Casa Minha Vida 2 prevê, por
exemplo, o uso de energia solar para o aquecimento de água, e janelas para o
máximo aproveitamento da luz natural", conta Bartira da Costa, presidente
da Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam).
Ela
lembra que a própria criação do Ministério das Cidades, no primeiro dia do
primeiro mandato do presidente Lula, era reivindicação antiga do Fórum Nacional
da Reforma Urbana. "Claro que essas leis e programas não refletem 100% das
nossas reivindicações. Mas hoje podemos dizer que o Brasil tem políticas para a
reforma urbana que foram elaboradas com ampla participação social, e que os
movimentos sociais colocaram na pauta desse debate os temas necessários para
construirmos uma cidade mais justa, mais democrática e com mais qualidade de
vida", analisa Bartira.
Consenso
contra a crise
Grande
parte das medidas adotadas para combater os efeitos da crise econômica foram
decididas através de um amplo diálogo com a sociedade civil organizada. Foi
numa mesa de negociação integrada por empresários, centrais sindicais e governo
que se decidiu promover a desoneração tributária condicionada à manutenção do
emprego, e a orientação para que os bancos públicos suprissem toda a demanda
nacional por crédito.
O
presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Artur Henrique, destaca o
papel decisivo que teve nesse processo o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (CNDES), criado em 2003 e integrado por trabalhadores,
empresários, movimentos sociais, governo e lideranças de vários setores.
"Ali
estabelecemos a agenda positiva para combater a crise, baseada não em
demissões, mas em aumento de investimentos, redução de impostos e ampliação do
crédito para manter a demanda", conta Henrique, lembrando que nos meses
seguintes à eclosão da crise, o conselho apresentou suas propostas aos bancos
públicos e aos empresários da construção civil e do setor automotivo.
Ainda
mirando o combate à crise, o governo convocou no mesmo período as quatro
maiores organizações nacionais de luta pela moradia para discutir o lançamento
de um grande programa habitacional que previa construir 1 milhão de habitações
populares para combater os efeitos da crise, o Minha Casa, Minha Vida.
"O
governo nos chamou para discutir sua proposta e nós apresentamos as nossas.
Como resultado, a lei que regulamenta o programa reflete, na íntegra, a
discussão acumulada no conselho e no Ministério das Cidades. Graças ao debate
passou a incluir, por exemplo, a regularização fundiária. A primeira edição do
programa teve de ser decidida rapidamente para ser usada como medida anticrise,
mas suas edições posteriores continuaram a ser aprimoradas pela
discussão", explica Bartira, da Conam.
Maior
acordo coletivo do mundo
A
política de valorização permanente do salário mínimo, que assegura ganhos reais
anuais para 45 milhões de brasileiros ativos e aposentados, também foi fruto de
ampla negociação que incluiu todas as centrais sindicais brasileiras.
Em
2005, foi criado um Grupo de Trabalho - integrado pelas centrais sindicais e os
ministérios da Previdência, Trabalho e Planejamento - para elaborar um programa
de valorização do salário mínimo. Desde que passou a vigorar, essa política
elevou o salário mínimo em 60%, o que, segundo estudo do Dieese de 2010,
impulsionou também o aumento do piso de várias categorias. O plano acordado
prevê aumentos reais do mínimo, atrelados ao crescimento, até 2023. "O
salário mínimo deixou de ser considerado mero instrumento de custo da
previdência social para ser encarado como instrumento de desenvolvimento",
destaca o ex-ministro Dulci.
Origens
da participação popular
As
origens de uma certa tradição de participação popular no Brasil remonta à
colonização portuguesa e às práticas da esquerda da Igreja e da esquerda em
geral. O Conselho Nacional de Saúde, da década de 1950, é o mais antigo a ter
representantes da sociedade civil que, durante longos períodos, foram
escolhidos pelo governo entre entidades e personalidades.
A
participação deu um salto na década de 1980, quando diferentes setores da
sociedade se mobilizaram pela defesa de seus interesses, multiplicando comitês
de fábrica, de bairro, de luta contra a carestia, além das comunidades
eclesiais de base. Nessa época tem início o Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra (MST) e a Luta por Eleições Diretas. Essa ampla mobilização origina várias
formas de participação local, com destaque para a experiência do orçamento
participativo, implementada em Partido dos Trabalhadores (PT) em Porto Alegre a
partir de 1989 e, posteriormente, estendida para 192 cidades, nem todas
administradas pelo PT.
Com
a Constituinte, a participação popular na elaboração, acompanhamento e
fiscalização das políticas públicas ganha institucionalidade, já que a Carta
prevê a criação de instâncias específicas com este fim, obrigatórias no caso de
setores onde existem fundos a serem geridos, como saúde e educação.
Ao
longo dos anos 1990, firma-se a ideia da participação em conferências e se
multiplicam os conselhos municipais de políticas públicas, com a eleição de
representantes da sociedade civil e indicação dos representantes municipais,
primeiro nas principais capitais, logo nas cidades médias.
Participação impacta Legislativo e
melhora acesso a serviços públicos
Um
estudo do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj) que
procurou medir o impacto da participação popular na atividade legislativa
constatou que um quinto dos projetos de lei e quase metade das propostas de
emenda constitucional que tramitavam no Congresso em outubro de 2009
apresentavam forte convergência com deliberações de alguma conferência. A
convergência é mais intensa durante o governo Lula: mais de dois terços das
leis e 90% das emendas constitucionais que foram aprovadas com convergências
com diretrizes das conferências concentram-se nos oito anos dessa gestão. As
deliberações das conferências que não se transformaram em decretos ou projetos
de lei, no mínimo, se incorporaram à agenda de discussões do governo.
Uma
segunda etapa da pesquisa do Iuperj, conduzida por Thamy Pogrebinschi, mostra
que a criação de conselhos e realização de conferências específicas sobre
políticas públicas pelos direitos humanos e de grupos tradicionalmente
discriminados também se refletiram no legislativo. Resultados preliminares do
estudo mostram que projetos de lei com este foco correspondiam a 18% do total
que tramitava no Congresso no final de 2009.
Outro
estudo, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o aumento da
participação popular na elaboração das políticas aumenta sua eficácia,
ampliando o acesso aos serviços públicos e melhorando o desempenho
administrativo. O estudo analisou o acesso a serviços públicos de saúde e
educação em cidades com mais de 100 mil habitantes e constatou que aquelas com
maior participação popular apresentaram, em proporção à população, um número
três ou quatro vezes maior de creches e de matrículas no ensino fundamental,
além de um número de consultas e de leitos do SUS 10% superior às outras. Seu
desempenho administrativo também era melhor: com uma receita corrente 70%
superior às dos municípios com baixos níveis participativos, os mais
participativos tinham uma receita tributária 112% maior.
"Nestas
cidades, a participação se insere em um circuito virtuoso entre demandas
políticas e a melhor administração da coisa pública porque para que as
políticas sociais deliberadas pelas instituições participativas possam ser
implementadas é necessário aumentar a receita", conclui o pesquisador
Leonardo Avritzer, responsável pelo estudo.
Seu
levantamento mostra que, entre 1998 e 2008, o número de conselhos municipais de
políticas públicas saltou de 274 para 490 e que em todas essas cidades hoje
existem mais conselhos do que os que são obrigatórios por lei.
O
trabalho também revela que a capacidade deliberativa dessas instâncias vem
crescendo progressivamente, à medida que se fortalecem com a realização de
conferências municipais e com a criação de comissões temáticas. Em 2009, quase
90% dos conselhos municipais tinha comissões temáticas e 95% deliberavam em
reuniões plenárias.
Nessa
mesa de diálogo com as centrais sindicais foram pactadas também: a nova tabela
do imposto de renda - que isentou totalmente mais de 700 mil trabalhadores e
reduziu a contribuição dos assalariados médios -, várias medidas de desoneração
tributária das classes populares, como a extinção de impostos federais sobre
alimentos básicos e materiais de construção; além das iniciativas para expansão
do crédito, como o programa de crédito consignado, com juros mais baixos e
desconto na folha de pagamento. Esse programa direcionou para o consumo popular
e para o aquecimento do mercado interno mais de R$ 105 bilhões.
Como
resultado desse diálogo, o governo também enviou ao Congresso um projeto de lei
que cria obstáculos à demissão voluntária e outro que estende a convenção
coletiva para o setor público.
Assistência social
Também
as políticas de proteção social e transferência de renda para as famílias que
viviam abaixo da linha da pobreza foram concebidas, e vêm sendo executadas, em
conjunto com centenas de entidades da área social, laicas ou religiosas, em
todo o país.
Quatro
conferências nacionais de Assistência Social discutiram em profundidade essas
políticas, cujo carro chefe é o Bolsa Família, mas que incluem também o salário
mínimo pago a 3,2 milhões de portadores de deficiências e idosos pobres, os
programas de aquisição de alimentos e merenda escolar, o programa de construção
de um milhão de cisternas e os quase 6 mil centros de referência da assistência
social (Cras) instalados em mais de 4 mil municípios.
Uma
das conquistas mais importantes dessas conferências foi a criação do Sistema
Único de Assistência Social (Suas). Com modelo similar ao do Sistema Único de
Saúde (SUS), o Suas foi uma deliberação da Conferência de Assistência Social de
2003, debatida e aprovada em outras conferências.
"As
conferências foram importantes para que se evitasse o desmonte do orçamento
específico da seguridade social, como ficava implícito em algumas propostas
colocadas na discussão sobre a reforma tributária. Além de colocar a
assistência social como política pública e não como caridade, o Suas define,
mais claramente até que o SUS, a responsabilidade de cada ente federativo no
financiamento da área", opina José Antonio Moroni, do Instituto de Estudos
Socioeconômicos (Inesc).
A voz do campo
A
mesma lógica participativa está por trás das políticas públicas para o campo. O
diálogo com os movimentos sociais permitiu os programas de ampliação da
assistência técnica, as políticas de preços mínimos e a criação do seguro
investimento que, em caso de quebra de safra por seca ou enchentes, garante o
pagamento não só do financiamento obtido como também de parte dos ganhos
previstos.
“O
estreitamento do diálogo ampliou não só o volume de recursos, como a eficácia
da sua aplicação porque a essência de todos esses programas é fruto de anos de
experiências acumuladas por organizações cooperativas e movimentos sociais do
campo, que passaram a ser ouvidos", avalia a coordenadora da Federação dos
Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf), Elisângela Araújo. Criada há
cinco anos, a entidade aglutina quase mil sindicatos de agricultores rurais,
além de federações de 17 estados.
Entre
os avanços obtidos, a dirigente rural menciona o fato de a Embrapa estar
começando a se preocupar, também, em desenvolver tecnologias adaptadas à
agricultura familiar - que, por ter produção diversificada, requer logística
diferente das monoculturas das grandes propriedades - e, sobretudo, os avanços
no acesso ao crédito: "Antes tínhamos muitíssima dificuldade para dialogar
com os bancos e o crédito para agricultura familiar acabava ficando todo no
Sul, onde as cooperativas eram mais organizadas. Muitos nem nos recebiam e
tínhamos de ocupar as agências. Isso mudou completamente, houve orientação e
capacitação para que os bancos dialogassem conosco e o cooperativismo avançou
em todo o país", conta, destacando, porém, o muito que falta por avançar:
"nossos diálogos com o governo agora se centram em desenvolver programas
de capacitação dos agricultores familiares para que desenvolvam bons
projetos".
Outra iniciativa que espelha uma reivindicação antiga das organizações de trabalhadores do campo é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) pelo qual o governo compra, a preços de mercado, a produção de agricultores familiares locais para abastecer creches, escolas e hospitais.
Outra iniciativa que espelha uma reivindicação antiga das organizações de trabalhadores do campo é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) pelo qual o governo compra, a preços de mercado, a produção de agricultores familiares locais para abastecer creches, escolas e hospitais.
Criado
em 2003, o PAA ampliou-se muito nos últimos três anos, sobretudo no Norte e
Nordeste, garantindo R$ 2 bilhões em vendas para o setor em 2010. E, desde o
final de 2008, uma lei estabelece que o Programa de Alimentação Escolar compre
ao menos 30% dos alimentos de agricultores familiares. Em mais de 300
municípios, essas compras já são feitas localmente, por meio de editais
específicos para cooperativas.
"Com
esses programas, os agricultores passaram a receber preço justo e ampliaram sua
renda, ao mesmo tempo em que asilos, creches, orfanatos, escolas e hospitais
passaram a consumir frutas e legumes frescos, em vez de sopas de macarrão com
salsicha e bolachas, que caracterizavam a alimentação de muitas dessas
instituições", frisa Elio Neves, da Federação dos Empregados Rurais
Assalariados do Estado de São Paulo (Feraesp), acrescentando que graças a esses
programas, apenas uma cooperativa coordenada pela Feraesp, que congrega 240
famílias, ampliou sua renda em 60% nos últimos dois anos.
"O
PAA é um programa que fortalece o mercado interno, a produção e a qualidade dos
alimentos consumidos", salienta Neves.
Canais
para pautas nacionais
Segundo
o presidente da Contag, Alberto Broch, além do conselho e das conferências, o
tradicional "Grito da Terra", que as entidades de trabalhadores
rurais promovem anualmente para negociar suas reivindicações com o governo
tornou-se outro espaço privilegiado de interlocução: "Realizamos o
"Grito" há 16 anos, mas nunca tivemos um diálogo tão fluído e tão próximo
como no governo Lula", diz o dirigente da Contag. Ele dá exemplos bem
concretos:
"Antes,
era quase impossível conseguirmos conversar com o Itamaraty por mais que um
acordo internacional prejudicasse produtores brasileiros. Hoje temos
interlocutores lá não só para evitar prejuízos como para obter acesso, por
exemplo, a linhas de financiamento da Associação Brasileira de Cooperação
Internacional".
Broch
destaca que, no ano passado, as entidades que integram o "Grito da
Terra" negociaram diretamente com 18 ministros debatendo não só
agricultura, assistência técnica e financiamento, como saúde, educação rural e
políticas sociais para o campo.
O
Grito da Terra é apenas uma das grandes pautas nacionais para as quais o
governo criou canais institucionais para facilitar o mais amplo debate. Outro
exemplo de movimento cujo canal de diálogo com o governo foi ampliado é a
Marcha das Margaridas, que uma vez a cada três ou quatro anos reúne em Brasília
cerca de 5 mil mulheres do campo que vão apresentar suas reivindicações, que incluem
desde questões de gênero e combate à violência doméstica até problemas de
educação, saúde, alimentação e transporte escolar.
Como
essas pautas nacionais incluem questões relacionadas a diversos ministérios, a
discussão geralmente é coordenada pela Secretaria-Geral de Presidência da
República. "Não tem sentido um governo que preza a participação popular
deixar esses movimentos baterem de ministério em ministério. Então, a
Secretaria-Geral discute previamente a pauta com as lideranças, as apresenta
aos gestores da participação social dos vários ministérios, coordena longas
discussões e negociações e, ao final, entrega aos movimentos um caderno
volumoso com as respostas às reivindicações, inclusive as não atendidas",
explica Kleber Gesteira Matos, secretário executivo adjunto da Secretaria-Geral
da Presidência da República (SGPR).
Politização
dos movimentos
O
diálogo intenso aumentou não só a eficácia das políticas públicas, como também
o nível de politização dos movimentos sociais. "Estávamos acostumados a
reivindicar para outros fazerem, fossem prefeituras, Estado ou patrões. Com os
novos canais criados, participamos não só da formulação, como da
operacionalização das políticas", diz Élio Neves, da Feraesp.
Elisângela,
agricultora da região sisaleira da Bahia que há duas décadas milita nos
movimentos do campo - primeiro em comunidades eclesiais, logo nos sindicatos e
hoje na Fetraf e na CUT Nacional - concorda. "Ampliamos nossa compreensão
sobre o funcionamento do Estado e nos tornamos capazes de não só reivindicar
como também participar na elaboração, implementação e fiscalização das
políticas públicas".
Dulci
lembra que essa maior politização se traduz na intensa participação das
centrais sindicais e movimentos sociais não só na discussão de temas trabalhistas
e específicos, como também de aspectos estruturais e conjunturais da política
econômica, como a redução dos juros, a ampliação do crédito, os incentivos ao
mercado interno, a descentralização industrial.
"Na
verdade, [os movimentos sociais] negociam cada vez mais uma estratégia nacional
de desenvolvimento. Na crise financeira internacional isso ficou evidente
quando as centrais pactuaram com o governo um conjunto de medidas para evitar a
recessão, sustentar o consumo e garantir o emprego", avalia o ex-ministro.
Cortadores
de cana
Outra
mesa de negociação importante que reflete a ampliação do foco trabalhista para
o de um projeto de desenvolvimento foi a instituída para obter a melhoria das
condições de trabalho do setor sucroalcooleiro. Nela, ao longo de quase dois
anos, usineiros, trabalhadores do setor e governo (representado nada menos que
por seis ministros) construíram um conjunto de medidas e um amplo compromisso:
"Por ter representantes dos três setores, essa mesa deliberou coisas que
foram muito além das condições de trabalho, incluindo também estratégias de
geração de emprego e um plano nacional de requalificação para facilitar a
recolocação dos trabalhadores que ficarão desempregados com a mecanização da
colheita", frisa Élio Neves, da Feraesp, lembrando que o plano prevê requalificar
cerca de 25 mil pessoas nos oito estados produtores de cana.
A
negociação culminou na elaboração de um protocolo que determina, entre outras
coisas, que a contratação de migrantes deveria ser feita pelo Serviço Nacional
de Emprego, para garantir que eles já saiam com contratos firmados na origem e
que tenham boas condições de transporte. Com isso se elimina a figura do gato,
principal responsável pela prática da escravidão por dívida, tristemente famosa
entre os trabalhadores migrantes.
Embora
seja de adesão voluntária, esse protocolo já foi assinado por mais de 300 das
quase 500 usinas em funcionamento no país, "O suficiente para que os
outros se sintam pressionados a aderir também", diz o presidente da
Contag, Alberto Broch.
A
mesa agora continua para organizar a fiscalização conjunta do cumprimento do
acordo. "Tudo foi estabelecido conjuntamente, do questionário à forma de
abordar e entrevistar os trabalhadores, passando por outras estratégias de
verificar se eles estão mesmo recebendo os benefícios", conta o presidente
da Contag, que já participou de quatro experiências piloto de fiscalização
conjunta com representantes do governo e dos usineiros.
"Ser
responsável também pela fiscalização do acordo favorece o entendimento do
processo inteiro e imprime uma qualidade diferente à participação, um outro
nível de compromisso para que as coisas funcionem. Não se trata mais de só
reivindicar. Em 53 anos nunca vi um processo assim, mas é assim que a
democracia mais se fortalece", pondera Broch.
Educação
Na
área da educação, as estratégias globais foram estabelecidas pelas quatro
conferências nacionais da área, das quais participaram milhares de pessoas, e
projetos fundamentais foram decididos e implementados a partir de uma ampla
aliança com as mais variadas organizações engajadas na defesa do ensino
público. Foi o caso da reforma universitária, do Programa Universidade para
Todos (ProUni), do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica
(Fundeb), do plano de reconstrução e expansão das universidades federais e do
piso nacional do magistério.
"Sem
essa aliança para neutralizar o lobby privatista, não teria sido possível a
elevação do orçamento educacional em 125%, criar 250 novas escolas técnicas
(mais que em todo século anterior), inaugurar 15 novas universidades federais e
expandir outras 42, inclusive instalando 131 novos campi pelo interior do
país", frisa o ministro Dulci.
Direitos
específicos
Para
além dos direitos econômicos e sociais clássicos, como saúde, educação,
emprego, salário e proteção social, a democracia participativa propiciou ainda,
nos últimos anos, importantes avanços em direitos de segmentos sociais
específicos. Dessa forma, desenvolveu-se uma ampla discussão e a adoção de
medidas concretas, que incluíram diversas políticas afirmativas, em favor da
igualdade racial, do reconhecimento de demandas próprias da juventude, de
idosos, portadores de deficiência e minorias sexuais.
Para
criar e implementar essas políticas pública foram, inclusive, criados órgãos
específicos, como as secretarias especiais de Políticas para as Mulheres, de
Promoção da Igualdade Racial e de Direitos Humanos. As conferências nacionais
dessas três áreas mobilizaram centenas de milhares de pessoas, difundiram
valores de tolerância e direito à diferença e produziram conquistas importantes
como a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial - depois de dez anos de
tramitação -, o programa Brasil Sem Homofobia, pioneiro na América Latina - e a
Lei Maria da Penha, contra a violência doméstica contra a Mulher.
Em
2004, foi criada a Secretaria Nacional da Juventude e logo depois o Conselho
Nacional dessa área, que conta com a participação de 67 organizações de jovens,
da União Nacional de Estudantes (UNE) ao hip-hop, dos trabalhadores rurais aos
jovens empresários, da Pastoral da Juventude ao Movimento de Lésbicas, Gays,
Bissexuais e Travestis (LGBT). Mais de 500 mil jovens de todos os estados
participaram das várias etapas da Conferência Nacional da Juventude, que teve
como principal resultado o ProJovem que, em menos de quatro anos, atendeu a
mais de dois milhões de jovens marginalizados, proporcionando-lhes
escolaridade, inclusão digital, formação profissional e inserção comunitária.
"O
Brasil é um país complexo, temos desde operariado urbano sob impacto da alta tecnologia
até comunidades tradicionais que não querem se integrar à lógica capitalista,
como ciganos, quilombolas, castanheiros, ribeirinhos e povos indígenas. O
objetivo dessas instâncias de participação popular é estabelecer um diálogo
permanente que permita ao governo desenvolver políticas públicas que deem conta
dessa pluralidade brasileira", diz Gesteira Matos, da SGPR.
Política
externa
Mesmo
a política externa brasileira, antes assunto exclusivo de técnicos e políticos,
passou a ser debatida com a sociedade civil. Entidades populares passaram a
integrar as delegações brasileiras aos principais foros multilateriais, como a
Organização Mundial do Comércio (OMC), o G20, as conferências das Nações Unidas
sobre clima e direitos humanos ou as cúpulas do Mercosul.
E
a cooperação com os países do Sul passou a ser encabeçada também pelos
movimentos sociais. Em 2007, por exemplo, instituiu-se o Conselho Brasileiro do
Mercosul Social e Participativo, além do Instituto Social do Mercosul. No
Brasil, encontros com o Mercosul foram realizados em sete estados e quatro
grandes cúpulas sociais da região reafirmaram a necessidade de ir além da
integração comercial, incorporando à agenda comum temas de educação, cultura,
ambientais e étnicos.
A
"precursora"
Até
as viagens que o presidente Lula realizou a cada ano pelo país foram
transformadas em canais para estreitar a interlocução do governo com os
movimentos sociais. Isso ocorre por meio da "precursora", grupo de
assessores que visita antecipadamente os locais preparando a viagem.
Tradicionalmente integrada por profissionais da área de segurança, cerimonial,
comunicação e assessores técnicos, desde 2003, a "precursora" conta
também com a participação de assessores da Secretaria-Geral encarregados de
estabelecer contatos com os movimentos sociais locais para prospectar suas
reivindicações. O diálogo já evitou situações difíceis como a ocupação de uma
hidrelétrica durante uma visita presidencial a Águas de Chapecó, em Santa
Catarina, pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
"Eles
estavam acampados numa área próxima à usina e planejavam ocupá-la quando o
presidente chegasse, para abrir um canal de negociação. Nós chegamos antes,
colocamos o pessoal do MAB frente a frente com o ministro das Minas e Energia e
com o presidente e abrimos a negociação", conta Cândido Hilário de Araújo,
assessor da Secretaria-Geral e integrante da precursora, mais conhecido como
"Bigode".
Na
negociação, os representantes do MAB apresentaram um documento que analisava os
problemas locais e nacionais: "Chapecó foi um marco fundamental para que a
Secretaria-Geral estabelecesse relações permanentes com o MAB, a partir daí os
consórcios tiveram de aprender a negociar com os afetados pelas usinas, o que
culminou em um acordo nacional que estabeleceu um patamar mínimo de
compensações para que uma barragem fosse construída", lembra Bigode.
A
precursora mudou até a organização espacial dos eventos dos quais participa o
presidente, "Antes a linha de frente ficava reservada para as autoridades,
agora é dividida entre essas e populares e colocamos sempre lideranças sociais
locais no palco para falarem", diz Geraldo Magela, secretário nacional
adjunto de Estudos e Pesquisas Político-Institucionais da Secretaria-Geral.
"A
precursora organiza cerca de 1.000 eventos ao ano, recolhe as demandas locais e
procura os órgãos finalistas para que deem continuidade às negociações, todas
têm desdobramentos. É um processo rico de aprendizado: o Estado mais poroso à
participação social faz os militantes se apropriarem dele, entenderem como
funciona e ajudarem a aprimorá-lo", diz Magela.
Participação,
não cooptação
O
ex-ministro Dulci destaca que toda essa sintonia e a institucionalização desses
canais para a participação popular no governo não implica, de forma alguma, a
subordinação ou redução da autonomia organizativa e política dos movimentos.
"É
comum divergirem abertamente do governo", afirma Dulci. Foi o que ocorreu,
aliás, durante o primeiro mandato de Lula, no que se refere a aspectos
importantes da política macroeconômica: "Os movimentos cobravam uma
inflexão desenvolvimentista - redução de juros, expansão do crédito e ampliação
do investimento público - que favorecesse o crescimento e a inclusão
social".
Dulci
ressalta que essas divergências se expressaram não só nos canais institucionais
para esse debate como também em manifestações de massa. Ele menciona as três
grandes marchas da classe trabalhadora com 40 mil ou 50 mil pessoas cada, os
"Gritos da Terra", realizados anualmente pela Contag, os acampamentos
nacionais do MST e as Marchas das Margaridas, que reuniram na Esplanada dos
Ministérios 30 mil camponesas de todo o país.
O
desafio agora, segundo ele, é ampliar a qualificação específica para os
processos participativos, tanto no governo como nos movimentos sociais. Com
esse intuito, a Secretaria-Geral desenvolveu, em parceria com a Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), o Programa de Formação de Conselheiros. Além de
quadros do governo, 4.372 lideranças e militantes frequentaram os cursos e
entre as monografias apresentadas há algumas que abrem novas perspectivas
teóricas e práticas para a democracia participativa.
Segundo
o ex-ministro, justamente para tornar irreversível o aprofundamento da
democracia participativa foi elaborado o projeto de Consolidação das Leis
Sociais.
Reivindicação
das próprias organizações populares, o projeto se propõe a institucionalizar -
tornando-as políticas de Estado - os programas sociais e canais de participação
existentes, mantendo, entretanto, sua flexibilidade política e organizativa.
Nessa proposta de lei "estava inclusa a ideia de institucionalizar, de dar amparo legal a essas experiências de participação no governo federal", explica Pires, do Ipea. Apesar de o projeto de lei não ter sido enviado ao Congresso, "esta é uma agenda que permanece nas intenções do governo, talvez não sob esse nome, mas com o objetivo de pensar em alguma forma de dar uma institucionalidade maior a estas instâncias de participação", acrescenta Pires, destacando que "mesmo não havendo uma lei que consolide e garanta isso junto, esses canais, conselhos e conferências principalmente, têm se tornado gradualmente parte integrante dos processo de formulação e acompanhamento de políticas públicas em cada área", conclui.
Simone Biehler Mateos – 13.06.2011