A punição, no Brasil,
afigura-se como espaço de exceção à legalidade. Nenhum dos Poderes constituídos
assume a responsabilidade pela gestão dos amontoados de miseráveis que ocupam
as masmorras brasileiras.
Bruno
Shimizu e Patrick Cacicedo
A visão de corpos mortos, perfurados, decapitados
no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís/MA, atingiu a opinião
pública como um golpe, confundindo certezas pré-concebidas acerca das práticas
punitivas no Brasil. Por certo, eram corpos matáveis, desimportantes, corpos
negros e pardos, anônimos. Nenhuma novidade. Mas as imagens não são tão
facilmente ignoradas quanto estatísticas ou discursos de militantes de direitos
humanos. As imagens pintam em cores fortes o genocídio invisível e silencioso diuturnamente
posto em marcha por nosso sistema penal.
As mais de duas décadas de caminhada pela
democratização da sociedade brasileira foram caracterizadas pela espantosa
hipertrofia do Estado policial: além da prática de tortura e mortes
institucionalizadas, houve um crescimento exponencial do encarceramento e da
piora das condições a que estão submetidas as pessoas presas.
A punição, no Brasil, afigura-se como espaço de
exceção à legalidade. Nenhum dos Poderes constituídos assume a responsabilidade
pela gestão dos amontoados de miseráveis que ocupam as masmorras brasileiras. O
Judiciário, que controla a entrada e a saída do sistema, mostra-se extremamente
rigoroso na aplicação das penas, mas, de forma contraditória, entende que a
gestão da execução penal compete exclusivamente ao Executivo. O Executivo, por
sua vez, escuda-se por trás de argumentos orçamentários para deixar de cumprir
a Lei de Execuções Penais e a Constituição Federal, valendo-se da
invisibilidade do cárcere para que as violações extremas de direitos
fundamentais não sejam denunciadas. A tudo isso se soma a postura ideológica
dos operadores do sistema penal, no sentido de promoção do encarceramento em
massa da pobreza como forma de contenção de demandas sociais e neutralização
das classes marginalizadas.
A situação evidenciada no Complexo Penitenciário de
Pedrinhas não se afasta, em termos de precariedade e descaso, da maioria das
unidades prisionais do Estado de São Paulo. Com superlotação maior do que a de
Pedrinhas, o Centro de Detenção Provisória da Praia Grande possui 1.652 presos
para 512 vagas. Disputam o mesmo espaço presos condenados e esperando
julgamento, presos que aguardam vaga em regime semiaberto e até mesmo pessoas
com transtorno mental, para as quais a legislação proíbe a prisão. Nesse
ambiente, não contam com profissionais de saúde, educação ou trabalho; não
recebem produtos básicos de vestuário e higiene; a água é racionada e
insuficiente para saciar a sede ou mesmo tomar banho; recebem visita de
familiares traumatizados após uma humilhante revista.
Diante do quadro de barbárie, o Tribunal de Justiça
foi chamado a se manifestar e, em uma das ações, afirmou que a situação não
demandava urgência, pois "a população carcerária do local, de uma forma ou
outra, tem sobrevivido, (sem) rebeliões, fuga ou morte entre presos."
O exemplo acima denuncia o temerário abstencionismo
do poder Público e, notadamente, do poder Judiciário, que deveria ser o
guardião dos direitos fundamentais e, ao revés, aguarda passivamente que os
eventos lamentáveis ocorridos em Pedrinhas repitam-se e, de preferência, sejam
filmados e expostos na mídia, para, apenas então, quem sabe, sair de sua zona
de conforto. Por ora, os doutores permanecem desviando o olhar da bomba-relógio
carcerária, esperando que o caso seja esquecido. Enquanto isso, nas celas, nos
raios e pavilhões, fora das vistas de todos, o descaso diante da dor silenciosa
acelera a ruína da equivocada política de "segurança" de
encarceramento em massa, sendo o caso de Pedrinhas apenas um exemplo do quão
trágico pode ser o colapso que se prenuncia.
Bruno Shimizu e Patrick
Cacicedo – Defensores públicos do
Estado de São Paulo e coordenadores do Núcleo Especializado de Situação
Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo – 11.01.2014
IN Folha de São Paulo – http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/01/1396214-bruno-shimizu-e-patrick-caciedo-pedrinhas-por-todos-os-cantos.shtml
Situação nos presídios expõe guerra contra
pobreza, diz socióloga
JULITA LEMGRUBER – “Não adianta dizer que vai construir unidades prisionais. Isso é
muito fácil. O buraco é muito mais em baixo, a situação é muito mais grave do
que isso. É preciso resolver uma questão que é sistêmica. Não adianta construir
novas unidades enquanto não for resolvido o estrangulamento da saída e o
problema da entrada. O sistema despeja essa quantidade enorme de pessoas que
acabam mofando nas cadeias, que são presas ilegalmente. Enquanto não se
resolver as duas pontas do sistema, não vai se resolver o problema”.
Eleonora de Lucena
Quem é preso e morto são
os pobres, os negros, os favelados. O que existe é uma guerra contra a pobreza.
Quem tem poder na sociedade está preocupado com o seu próprio umbigo. Corações
e mentes não se mobilizam pela questão penitenciária.
Essa é a questão de fundo
da crise exposta no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, na análise da socióloga
Julita Lemgruber, 67. Coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e
Cidadania da Universidade Candido Mendes, ela foi diretora-geral do sistema
penitenciário do Rio de Janeiro entre 1991 e 1994.
Para ela, a superlotação
das prisões, combustível para as tragédias, ocorre pelo estrangulamento do
sistema: muitos estão presos provisoriamente de forma ilegal e outros tantos
não conseguem livramento condicional. "Essa máquina não funciona e é perversa",
diz.
Na sua visão, não
adianta construir novos presídios sem resolver a "gangrena" sistêmica
do sistema prisional. Mais do que intervenção, é preciso que o CNJ (Conselho
Nacional de Justiça) retome os mutirões permanentes nas cadeias, opina.
*
Folha –
Como a sra. avalia a situação no Maranhão?
Julita
Lemgruber – O
que está por trás de grande parte das tragédias que acontecem no sistema
penitenciário é a superlotação, que é combustível certo para tragédias. A
situação do Maranhão é limite: presos são tratados com extrema crueldade e
desumanidade. Isso naturalmente provoca uma ebulição interna que acaba
transbordando para fora dos muros. Não se consegue conter a violência dentro
dos muros. Ela acaba transbordando nos incêndios de ônibus e a postos
policiais.
Folha – E
por que há superlotação?
Julita
Lemgruber – A
superlotação é resultado de dois problemas, um na entrada e outro na saída. Um
percentual enorme de presos provisórios está preso ilegalmente. No Rio,
acabamos de fazer um estudo que será lançado em uma semana chamado "usos e
abusos da prisão provisória". A situação do Rio não é diferente do resto
do Brasil. Ao contrário, há Estado em que a situação é muito pior. Quase 50%
dos presos provisórios no RJ estão presos ilegalmente.
Montamos um banco de
dados com milhares de casos que acompanhamos até o final. Metade desses homens
e mulheres que estavam presos provisoriamente não recebeu uma pena privativa de
liberdade: ou foram absolvidos ou tiveram uma pena diferente de prisão. Eles
estavam presos ilegalmente. Provamos isso aqui no Rio de Janeiro nesse estudo
feito ao longo do ano de 2012 e que reúne todos os casos de prisões em
flagrante. Há uma ilegalidade brutal e isso se repete no Brasil todo. As
pessoas são presas e ficam mofando nas delegacias.
A defensoria não tem
condições de se dedicar ao caso dos presos provisórios; ela mal consegue
acompanhar os julgamentos e depois a execução da pena. Os presos provisórios
ficam literalmente abandonados até o momento do julgamento. Isso é um escândalo
no Brasil todo.
Folha – Por
que essa situação não encontra ressonância e se repete?
Julita
Lemgruber – Isso
se repete porque quem é preso no Brasil é preto, pobre, negro, favelado: aquele
grupo de pessoas que não tem voz, que são consideradas sem direitos na
sociedade. Corações e mentes não se mobilizam pela questão penitenciária.
Quando um político diz que a violência está contida nos muros, o que ele está
dizendo é: "Não nos preocupemos; se eles se matarem o problema é
deles". Nunca a violência esta contida dentro dos muros.
Quando a violência chega
a esses níveis insuportáveis, fatalmente transborda dos muros. Vira preocupação
quando acontece um grande escândalo, como o dos presos decapitados em
Pedrinhas. No dia-a-dia, o que acontece dentro dos muros é completamente
ignorado.
Folha – Qual
é o problema que dificulta a saída de presos e também provoca superlotação?
Julita
Lemgruber – Um
número enorme de presos já tem direito a benefícios legais. Mas eles não são
concedidos porque essas pessoas não têm defesa adequada. Em alguns Estados,
levantamentos mostram que 50% dos presos teriam direito a livramento
condicional. Essa máquina não funciona. É uma máquina perversa, que joga para
dentro do sistema com muita facilidade e que tem um funil estreitíssimo do
outro lado; não resolve os casos de presos que têm direito a benefícios legais.
Folha – Construir
novas prisões adianta?
Julita
Lemgruber – A
primeira coisa que se precisa fazer é resolver o estrangulamento do sistema
penitenciário, que acontece na entrada e na saída. Para isso, não é preciso
fazer novas unidades. Precisa resolver esse problema, ponto. Se não, vamos
construir mais e mais unidades, e elas vão estar sempre superlotadas. Porque
não se resolveu o problema central que é o estrangulamento da saída e a
entrada.
Folha – A
sra. comandou sistema penitenciário do RJ nos anos 1990. A situação hoje é
pior?
Julita
Lemgruber – A
situação penitenciária piorou muito porque aumentou muito o número de presos,
que triplicou nos últimos 15 anos no Brasil. E o número de presos condenados
por tráfico de drogas triplicou nos últimos cinco anos. Essa questão precisa
ser encarada sem hipocrisia. Quem é o preso por tráfico de drogas? Em alguns
Estados, até 80% das mulheres presas é por trafico de drogas. Elas são grandes
traficantes?
Pesquisas mostram o
perfil do preso por tráfico de drogas no Brasil: é o pequeno traficante, que
não tem nenhum poder na estrutura do tráfico, que é facilmente substituído
quando é preso. Estamos enxugando gelo. Estamos produzindo uma quantidade
enorme de presos ligados ao tráfico de drogas, quando se sabe que essa guerra
antidrogas é falida no mundo inteiro.
Folha – E
a legislação?
Julita
Lemgruber – A
legislação hoje diz que o usuário não é mais penalizado com pena de prisão. O
uso continua sendo crime no Brasil, mas o usuário não deve receber pena de
prisão. Mas, se for usuário negro e morar na favela, mesmo que seja encontrado
pela policia com uma pequena quantidade, vai para a cadeia. Se for um usuário
branco e, dependendo do local onde mora e da sua situação socioeconômica, pode
ser encontrada com uma quantidade muito maior de drogas, e o que acontece? Ele
vai subornar a polícia ou vai convencer o policial de que não precisa traficar
como meio de vida. A polícia prende o preto, pobre e favelado. Mesmo com
pequena quantidade, é traficante.
Por incrível que pareça,
é a partir da legislação que despenalizou com pena de prisão o tráfico de
drogas, em 2006, que explode o número de presos por tráfico de drogas no
Brasil. Explode porque aumenta a pena para o tráfico. Agora tem esse projeto
absurdamente enlouquecido do deputado Osmar Terra (PMDB-RS). Se ele passar, a
pena mínima para tráfico de drogas vai ser maior do que a pena para homicídio.
É uma insensatez.
Os EUA estão mostrando
que a guerra das drogas não vai nos levar a lugar nenhum. Os EUA estão
começando a legalizar a maconha porque estão se dando conta de que estão
enxugando gelo. E ficamos repetindo como um mantra que vamos resolver os nossos
problemas através de uma guerra de drogas. Na verdade, é uma guerra à pobreza.
É uma guerra contra a pobreza, porque quem é preso e morto nessa guerra são os
pobres.
Folha – Como
a sra. avalia a questão das facções dentro dos presídios?
Julita
Lemgruber – A
consolidação do poder das facções é um fenômeno do início dos anos 2000. Quando
se trata pessoas com tanta brutalidade, crueldade e desumanidade, elas vão
responder violentamente. É o que aconteceu no Maranhão e em outras partes do
Brasil. Mas como ninguém se preocupa com o sistema penitenciário, essas
questões nem chegam à grande mídia. O caso de Pedrinhas acabou chegando porque
circulou aquela foto dos presos decapitados. Se a aquela foto não tivesse
circulado, até hoje estaríamos fingindo que não conhece a realidade do sistema
penitenciário no Brasil.
Quando se ameaça levar o
Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as pessoas ficam um pouco
perturbadas. Dizem que vai ficar mal para o Brasil, que é preciso tomar
providencias. O que é uma grande hipocrisia. Em São Paulo há unidades femininas
onde as mulheres ainda usam miolo de pão como absorvente higiênico. Em um país
que é a sexta economia do mundo e que tem uma mulher na presidência que foi
presa e torturada, é muito triste perceber que o governo do PT ainda não olhou
com a seriedade necessária o sistema penitenciário.
Não adianta dizer que
vai construir unidades prisionais. Isso é muito fácil. O buraco é muito mais em
baixo, a situação é muito mais grave do que isso. É preciso resolver uma
questão que é sistêmica. Não adianta construir novas unidades enquanto não for
resolvido o estrangulamento da saída e o problema da entrada. O sistema despeja
essa quantidade enorme de pessoas que acabam mofando nas cadeias, que são
presas ilegalmente. Enquanto não se resolver as duas pontas do sistema, não vai
se resolver o problema.
Folha – Qual
é a questão de fundo que faz o problema persistir? A sociedade brasileira tem
desprezo pelo pobre?
Julita
Lemgruber – Esse
problema persiste há tanto tempo porque a sociedade brasileira é profundamente
hierarquizada. Há cidadãos de primeira, segunda, terceira classe e os não
cidadãos –aquelas pessoas sem voz e que são consideradas sem direito. Por que a
polícia mata tanto no Brasil? Por que ninguém se revolta? Aqui no Rio a polícia
já matou mais de mil pessoas por ano. Agora mata 500 por ano, e todo mundo fica
feliz porque melhorou. Isso é uma vergonha! É um escândalo que a policia mate
tanta gente!
Outro dia saiu notícia
de a policia na Islândia tinha matado a primeira pessoa na história. Lá isso causou
um constrangimento enorme. No Rio, a polícia mata 500 pessoas por ano e ninguém
se constrange. A classe média parece aplaudir, porque seriam bandidos. São
execuções extrajudiciais! Há estudos que mostram que as pessoas que morrem
supostamente em confronto com a polícia são, na maior parte das vezes, mortas
por tiros nas costas, na cabeça.
Fora o caso das balas
perdidas. Na semana do Natal, uma menina de seis anos morreu vítima de uma bala
dentro de casa numa favela do Rio. A comunidade foi para a rua, queimou ônibus,
tão revoltada que ficou. Todo mundo diz que a polícia entrou atirando, como faz
rotineiramente. Aquela velha máxima do "atire primeiro e pergunte
depois" continua a viger nas áreas pobres.
É uma sociedade em quem
tem poder está preocupado com o seu próprio umbigo. As pessoas que vão para as
cadeias e que são vítimas da violência policial são pessoas pobres, que não têm
nenhum poder. Elas nem sabem que casos como esses são amplamente cobertos por
ação de indenização. Tanto os familiares dos presos mortos no Maranhão quanto
das pessoas mortas pela polícia são casos que podem levar a uma ação de
indenização contra o Estado. Isso não acontece porque as pessoas não têm noção
dos seus direitos. Essas crianças que são mortas na favela quando a policia
entra atirando... Imagina se elas morassem no asfalto em Ipanema ou no Leblon!
Folha – O
que o governo deveria fazer agora no Maranhão? Uma intervenção?
Julita
Lemgruber – O
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mapeia com alguma competência os casos dos
Estados em que existem problemas sistêmicos no funcionamento do sistema
criminal. Mais importante do que uma intervenção em qualquer Estado, é mandar
um grupo de juízes e de promotores. O CNJ já fez isso no passado, no período em
que Gilmar Mendes era o presidente do STF. Foi feito com competência. Havia um
mutirão permanente do CNJ. Mutirões eventuais os presos acabam chamando de
"mentirões", porque não resolvem. É preciso ter mutirões,
forças-tarefas do CNJ permanentes.
É claro que em momentos
trágicos, como esse do Maranhão, é preciso entrar, mostrar autoridade, recolher
as armas e impedir que os presos se matem. Porque é responsabilidade do Estado:
o homem entra vivo e tem que sair vivo. Afinal de contas, ele não foi condenado
a ser morto dentro da cadeia; foi condenado à pena privativa de liberdade.
Fazer uma intervenção
federal no Maranhão sem que se cuide de uma gangrena que é o funcionamento do
sistema de justiça criminal, não adianta nada. Não vai chegar a lugar nenhum.
É responsabilidade do
CNJ montar [os mutirões] como já houve no passado. Infelizmente foram
abandonados tanto na ultima gestão como na de Joaquim Barbosa. Foi abandonada
essa ação mais agressiva do CNJ nos Estados em que claramente há um problema
sistêmico no funcionamento da justiça criminal.
Folha – O
STF esta insensível a isso?
Julita
Lemgruber – Absolutamente,
porque o CNJ hoje é uma pálida lembrança do que já foi no passado. É muito
louvável que tenham denunciado o que está acontecendo no Maranhão. Mas não
adianta só denunciar. É preciso se estruturar, como já aconteceu no passado,
para tocar nessa ferida e fazer as engrenagens do sistema da justiça criminal
funcionar.
Folha – O
Brasil está excessivamente inspirado no modelo dos EUA na questão prisional?
Julita
Lemgruber – Claramente
estamos excessivamente inspirados no sistema norte-americano, acreditando que
prisão resolve tudo. Uma quantidade enorme de pesos hoje poderia ser punida com
outras penas diferentes de prisão, inclusive os pequenos traficantes. De que
adianta a gente inundar as prisões de pequenos traficantes que automaticamente
são substituídos por outros? A lei diz que é crime, e se precisa fazer alguma
coisa. Mas certamente não é mandando para cadeia esses pequenos traficantes,
meninos pobres de oportunidades, que se estará resolvendo o problema.
Deveríamos estar
investindo na capacitação dessa garotada para que ela não encontre no tráfico a
única forma de ter acesso aos bens de consumo que a televisão vomita na cara
deles diariamente.
Julita Lemgruber – Coordenadora do Centro de Estudos de
Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes – 11.01.2014
IN
Folha de São Paulo – http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/01/1396192-situacao-nos-presidios-expoe-guerra-contra-pobreza-diz-sociologa.shtml
Superlotação e precariedade abrem espaço para crime
organizado nas prisões
Violência
praticada por facções criminosas na busca pelo poder é observada em todo o
Brasil e tem ligação com excesso de detentos, sucateamento das unidades e
corrupção de agentes públicos.
Ericka de Sá
Quase um mês após presos registraram em vídeo os corpos de colegas
mortos e decapitados dentro do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São
Luís, autoridades ainda buscam respostas. Representantes de ONGs e senadores
membros da Comissão de Direitos Humanos estão na capital maranhense e cobram
explicações para a situação no presídio – onde já foram registradas mais de 60
mortes desde o ano passado.
A violência registrada em Pedrinhas, entretanto, não é um caso isolado.
A medição de forças entre facções do crime organizado está espalhada por
penitenciárias em todo o país. “As facções estão presentes em praticamente
todos estados brasileiros. O que varia é o grau de organização, tamanho,
extensão, e estrutura desses grupos”, explica Camila Nunes Dias, pesquisadora
do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e docente
da Universidade Federal do ABC.
Além das organizações criminosas mais antigas e conhecidas – como o
Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo e o Comando Vermelho no Rio de
Janeiro – grupos locais ou ramificações regionais das facções maiores promovem
atos de violência nas unidades prisionais. O encarceramento massivo é apontado
por especialistas como uma das principais raízes do domínio das facções.
Para Sandra Carvalho, diretora da ONG Justiça Global, o que se vê é um
“endurecimento penal” sem investimento em políticas públicas em outras áreas
prioritárias. “O sistema penitenciário brasileiro não é destinado a políticas
de ressocialização, é um depósito de gente”, diz.
Problema generalizado
Em Pedrinhas, assim como em outros presídios, o problema é antigo. Dias
após as mortes registradas em vídeo, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
divulgou relatório sobre a situação do complexo maranhense.
O texto, assinado pelo juiz Douglas Martins, coordenador do Departamento
de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução
de Medidas Socioeducativas (DMF) do CNJ, cobrava a construção de presídios no
interior do estado para facilitar a separação dos integrantes das facções
rivais. Ele argumentou que já tinha enviado ao governo local “várias
indicações” dessa necessidade anteriormente.
Em entrevista à DW concedida em outubro passado, o juiz sinalizou a
situação do complexo de Pedrinhas como sendo favorável ao domínio do crime.
“Não tem como funcionar porque o Estado se omite, concentra os presos, afasta o
preso da família e tudo isso favorece o crime organizado”, disse então.
“O nosso modelo de sistema prisional é inadmissível. Não há muito a ser
feto sem descentralizar a execução penal”, completou. Ele defende a priorização
de unidades menores, e o oferecimento amplo de opções de trabalho e estudo
podem ser uma solução.
Busca pelo poder
Mortes violentas como as vistas no Maranhão recentemente têm um
componente simbólico forte, diz Camila Nunes Dias: “Essas formas mais extremas
de violência são sintomáticas de um cenário de disputa de poder por grupos”.
Sandra Carvalho, da Justiça Global, está em São Luís acompanhando as
investigações em Pedrinhas. Ela alerta para a forte presença das forças
criminosas dentro e fora das prisões e acusa o poder público de inércia. “Não
houve nenhum enfrentamento mais concreto por parte do governo para por término
à organização dessas facções”, avalia.
Ela também aponta os agentes públicos corruptos como sendo facilitadores
do crime organizado, mas defende uma discussão mais ampla sobre as formas de
sanção aplicadas hoje para que a responsabilização por crimes vá além das
punições.
“O mais importante é que pensemos na responsabilização para além da gama
punitiva, pensar o sistema prisional não só como ampliação de vagas, mas pensar
em outras formas de sanção, estruturar penas alternativas, estruturar o
semiaberto, que quase não existe no Brasil”, exemplifica.
Sucateamento que gera dependência
Com cadeias superlotadas e a incapacidade do Estado de fornecer as
condições adequadas de vida para os detentos, amplia-se o espaço ocupado pelo
crime organizado, explica Camila Nunes Dias.
“Ao encarcerar muito mais, e sem dar condições adequadas, o Estado é o
responsável principal ao dar as condições para que esses grupos tomem conta da
população prisional”, detalha a pesquisadora.
Ela lembra que apesar de as drogas serem a principal mercadoria oferecia
por esses grupos, mercadorias lícitas (alimentos, itens de higiene, álcool,
cigarros, etc.) também são usadas como instrumento para exercício do poder.
“Os presos ligados às facções que muitas vezes detêm condições
econômicas melhores acabam fornecendo esse material. Isso gera relação de
dependência”, continua a pesquisadora.
Muitas vezes, esse domínio extrapola os limites da penitenciária em uma
tentativa, por parte das facções, de chamarem a atenção da sociedade e também
demonstrarem que têm o poder.
Utilizando principalmente telefones celulares, líderes do tráfico
articulam as ações nas ruas. Presos beneficiados de alguma forma dentro do
presídio acabam sendo coagidos, ao saírem, a agirem em benefício da organização
criminosa, como uma forma de cobrança feita pelos controladores do crime
organizado.
Assaltos a bancos e carros-fortes e queima de ônibus estão entre as
atividades comandadas pelas facções, como é o caso do PCC, que está presente em
90% das prisões do estado de São Paulo, segundo estimativa da pesquisadora
Camila Nines Dias.
Ericka de Sá – 13.01.2014