O desenvolvimento
vertiginoso da televisão foi decisivo para o processo de controle e propaganda,
pois aboliu as fronteiras entre os gêneros (notícia, entretenimento e
publicidade) e promoveu uma “confusão” total entre eles. As notícias passaram a
ser apresentadas como show, entretenimento, ao passo que os pro-gramas de
entretenimento simulam debates sobre a “vida real”, tudo formatado como pacote
publicitário. O resultado disso é gravíssimo. Abre uma avenida imensa para a
manipulação do imaginário, já que a mídia se sente à vontade para compor as
suas fabulações, reforçar determinados estereótipos, gerar consensos e
construir percepções.
José Arbex Jr.
Hegel costumava equiparar o ato de ler o jornal todas as manhãs a uma
prece para Deus. É claro: a imprensa era, então, parte constitutiva e
fundamental do processo de formação daquilo que o próprio Hegel qualificava como
“sociedade civil”, conceito que seria posteriormente desenvolvido por Marx e
Gramsci. A imprensa era vista por Hegel, nesse sentido, como o meio de conduzir
o indivíduo isolado ao convívio social, como expressão da maturidade atingida
pela civilização, instrumento de realização do Espírito. A imprensa foi vital
como instrumento de debate de idéias e de organização da revolução de 1789,
assim como ocupou um papel central no processo de formação do novo Estado
criado com base na Declaração de 1776. Não por acaso, a famosa Primeira Emenda
da Constituição dos Estados Unidos proíbe ao Congresso aprovar qualquer lei com
o objetivo de cercear ou restringir a liberdade de expressão, religião e
imprensa. É de Thomas Jeferson, radical advogado da liberdade de imprensa, a
famosa sentença, freqüentemente citada pelos donos dos grandes veículos: “Se
tivéssemos de optar entre um governo sem jornais ou jornais sem governo,
escolheria sem hesitar a segunda hipótese.” O problema começa com a continuação
da sentença, que costuma ser deixada de lado pelos “chefões” da mídia: “Mas,
nesse caso, devo insistir que todos os homens deveriam receber os jornais e
serem capazes de lê-los” (Carta de Th omas Jeferson a Edward Carrington, 1787).
Desde os anos de Jeferson e Hegel até a segunda metade do século XIX,
não havia o monopólio privado da comunicação. O exercício do jornalismo era
extremamente permeável aos debates políticos que agitavam as sociedades, que
então amadureciam as condições para a construção do Estado nacional burguês.
Claro que não se trata, aqui, de idealizar um suposto período áureo de total
liberdade de expressão. Isso nunca existiu, ou funcionou apenas durante
períodos breves. O grau de liberdade de imprensa variava de país para país, e
dentro de cada país oscilava segundo a época e o regime político implantado
(por exemplo, uma das primeiras medidas adotadas por Napoleão Bonaparte, ao
assumir o poder, foi a imposição de uma rigorosa censura). Nos países da
periferia do sistema, como era o caso do Brasil colônia, a imprensa era
praticamente inexistente. Ao longo de boa parte do século XIX, o debate público
no Brasil era feito por meio de pasquins, “jornais” precários, muitas vezes de
uma só página, que não raramente resvalavam para o ataque pessoal, como mostra
Nelson Werneck Sodré e outros historiadores. Mas, em qualquer hipótese, a
censura, quando existia, era exercida pelo Estado e em nome do bem público.
Esse quadro mudou radicalmente com o surgimento do capital monopolista, na fase
imperialista de sua história.
Não se pretende aqui, obviamente, contar uma história do capitalismo,
nem sequer em seus traços mais gerais, mas apenas realçar o fato de que a
evolução das empresas jornalísticas acompanhou a tendência geral da economia
mundial. Na passagem do século XIX para o XX, já se formavam nos Estados Unidos
grandes impérios privados da comunicação, chefiados por gente como Joseph
Pulitzer e William Randolph Hearst (imortalizado por Orson Welles no fi lme
“Cidadão Kane”), concomitantemente ao processo de construção dos grandes
monopólios industriais, responsáveis pela divisão do mundo em “áreas de infl
uência”, que desembocaria na Primeira Guerra Mundial. Hearst chegou a controlar
mais de cinqüenta jornais e provocou uma guerra entre os Estados Unidos e a
Espanha, com o objetivo de vender jornal. Também na Europa houve um processo de
construção de grandes corporações da comunicação, embora segundo ritmos e
formas distintas das verifi cadas nos Estados Unidos (Neal Gabler faz uma análise
muito interessante e aprofundada sobre o tema, no livro Vida, o Filme - como o
entretenimento conquistou a realidade. São Paulo, Companhia das Letras, 1999).
No Brasil, Assis Chateaubriand tornou-se o primeiro grande “magnata da
imprensa”, merecendo o apelido de “nosso Kane”, título de duvidosa qualidade
que, mais tarde, seria abocanhado por Roberto Marinho.
Em síntese, aconteceu um processo gradativo de transformação do lugar e
do significado social, cultural e político da imprensa.
De instrumento de debate e pluralismo ideológico e político, ela foi
assumindo o papel de porta-voz dos interesses monopolistas dominantes,
tornando-se, ela própria, capital monopolista. Para utilizar termos de Gramsci,
os maiores veículos de comunicação assumiram o lugar de intelectuais orgânicos
da burguesia, no quadro da luta de classes, encarregando-se de assegurar a
hegemonia ideológica desejada pelos patrões.
Com o passar do tempo e o desenvolvimento de novas tecnologias de
comunicação... o controle dos aparatos midiáticos tornou-se uma questão
estratégica de Estado.
Ainda segundo Gramsci, a imprensa tornou-se o grande partido da
burguesia. Mas ela nunca abandonou a aparência de porta-voz e protagonista dos
ideais iluministas de 1789, adquirida em sua fase áurea. Ao contrário: os donos
da mídia são os primeiros a propalar a percepção de que a imprensa é o “quarto
poder”, garantidora da democracia, vigilante do bem público, campeã do combate
à corrupção, “espelho da verdade” etc.
Com o passar do tempo e o desenvolvimento de novas tecnologias de
comunicação, cada vez mais sofisticadas e caras, o controle dos aparatos
midiáticos tornou-se uma questão estratégica de Estado. As bem sucedidas
experiências nazistas arquitetadas pelo gênio do mal Joseph Goebbels
demonstraram a eficiência e a importância da propaganda feita por meio do
cinema, da televisão e do rádio. No final dos anos de 1930, Goebbels trabalhava
com os efeitos exercidos pelas cores e formas sobre o cérebro e o corpo, tanto
aqueles percebidos conscientemente quanto os subliminares. A máquina de
propaganda nazista provou a eficácia do uso político do clichê incessantemente
repetido pelos meios de comunicação de massa (por exemplo, sobre o mal que os
judeus, ciganos e comunistas causam à humanidade). Goebbels também foi um
mestre na arte de utilizar a tática da desinformação, por meio da multiplicação
de imagens completamente falsificadas, a ponto de conseguir iludir até mesmo
suas principais vítimas, os judeus. Como nota Paul Virilio, no livro Guerra e
cinema (São Paulo, Scritta, 1993):
Ainda que, em 1942, mais de dois milhões de judeus já tivessem sido
assassinados, a imprensa judaica na Palestina ainda encontrava motivos para
estar tranqüila em relação aos centros de educação agrícola na Polônia e em
outros países (...).
Goebbels sabia que a capacidade humana de suportar o terror é limitada,
e que, por isso, as pessoas iriam preferir, pelo menos por um certo tempo,
acreditar na “veracidade” do documento fotográfico, descartando a idéia do
holocausto.
A abolição ou, no mínimo, o enfraquecimento das fronteiras entre os
gêneros abre uma avenida imensa para a manipulação do imaginário...
O nazismo foi derrotado, mas as lições de Goebbels ficaram e passaram a
ser desenvolvidas pelas corporações privadas, incluindo a indústria do
entretenimento, particularmente Hollywood. Ao mesmo tempo, as grandes somas
investidas nas tecnologias de comunicação implicaram a extrema concentração
monopolista, com a formação de um pequeno punhado de grupos que controlam a
informação, em cada país. Estamos, portanto, há milhões de anos-luz do momento
de formação do Estado nacional burguês, quando a imprensa funcionava como um
motor propulsor do debate democrático de idéias, cultura e ideologias. O debate
foi substituído pelo controle. Durante todo o período da Guerra Fria, que
cobriu praticamente a segunda metade do século XX, a mídia funcionou como
instrumento de propaganda dos dois grandes sistemas (diretamente controlada
pelo Estado, no lado soviético, e em relação de colaboração entre o capital
monopolista e o Estado, no lado estadunidense). O desenvolvimento vertiginoso
da televisão foi decisivo para o processo de controle e propaganda, pois aboliu
as fronteiras entre os gêneros (notícia, entretenimento e publicidade) e
promoveu uma “confusão” total entre eles. As notícias passaram a ser
apresentadas como show, entretenimento, ao passo que os pro-gramas de
entretenimento (incluindo telenovelas, programas de auditório etc.) simulam
debates sobre a “vida real”, tudo formatado como pacote publicitário.
Assim, por exemplo, o telespectador acha que sabe o que é como funciona
o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), por ter acompanhado a
telenovela “Rei do Gado” (1996). Outros pensam conhecer o Islã, por terem visto
incontáveis filmes produzidos em Hollywood, nos quais os seguidores do Corão são
invariavelmente descritos como “fanáticos”, “intolerantes”, “atrasados” e
“terroristas”. Inversamente, a apresentação dos telejornais usa e abusa de
recursos cinematográficos, como a captação de imagens com recursos de câmara
extremamente sofisticados, assim como tratam os “âncoras” (apresentadores) como
celebridades, cuidando dos mínimos detalhes – do tipo de roupa que vestem ao
corte de cabelo, passando pelo treino da pronúncia das palavras. O resultado
disso é gravíssimo. A abolição ou, no mínimo, o enfraquecimento das fronteiras
entre os gêneros abre uma avenida imensa para a manipulação do imaginário, já
que a mídia se sente à vontade para compor as suas fabulações, reforçar
determinados estereótipos, gerar consensos e construir percepções (esse tema é
bem desenvolvido por Jürgen Habermas, em Mudança estrutural da esfera pública,
Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984).
No Brasil, a informação que circula em escala nacional é controlada por
meia dúzia de famílias e grupos empresariais.
Sintomaticamente, as três últimas décadas do século XX foram ricas em fi
lmes que tiveram a mídia como tema — mais especificamente, a relação entre
mídia, notícia e espetáculo. É emblemática a série televisiva Max Headroom, 20
Minutes in the Future (Francis Delia e Janet Greek, 1987). No mundo de Max,
apresentador de telenoticiário criado por computador, é proibido desligar a
televisão. Outros filmes dramatizam o tema, como Network (Sidney Lumet, 1976),
Broadcast News (James Brooks, 1987), Hero (Stephen Frears, 1992), Th e Paper
(Ron Howard, 1994), Mad City, Costa-Gravas, 1997), Winchell (Paul Mazursky,
1998), Th e Truman Show (Peter Weir, 1998). Não se trata mais de, simplesmente,
mostrar o jornal como um panfleto instrumentalizado pelo seu proprietário, como
no caso de Kane, mas de um processo muito mais sofisticado: o da
espetacularização da notícia. O que importa, nos atuais programas de
telejornalismo, é o impacto da imagem, assim como o ritmo de sua transmissão. Como
no videoclipe, uma sucessão de imagens é “costurada” de maneira aparentemente
aleatória, mas que, em seu conjunto, reforçam uma certa mensagem. No caso do
videoclipe musical, as imagens servem para criar uma atmosfera propícia à
fruição de determinada fantasia: romântica, no caso de “baladas”, erótica, no
caso de muitas canções de rock pesado, e assim por diante. No caso do
telenoticiário, as imagens reiteram uma certa percepção do mundo (mulheres com
véu no Islã, negros famintos na África, “bandidos” negros etc.). O que resta,
na memória do telespectador, são flashes.
No mundo contemporâneo, uma única emissora de televisão, a CNN, é
responsável pela difusão da imensa maioria das imagens que são retransmitidas
por emissoras de todo o planeta, assim como uma única agência de notícias, a
Reuters, alimenta com seus despachos a maior parte dos jornais. No Brasil, a
informação que circula em escala nacional é controlada por meia dúzia de
famílias e grupos empresariais. Novamente, isso em nada difere do que acontece
no mundo capitalista em geral: cerca de quinhentas grandes empresas
transnacionais (de alimentos, petróleo, automóveis, farmacêuticos, armas etc.)
controlam um mercado composto por quase sete bilhões de seres humanos. Assim
como vende-se a fantasia do “livre comércio”, alimenta-se também a ilusão da
“livre informação”. Noam Chomsky colocou o dedo na ferida, em artigo publicado
no caderno “Mais” da Folha de S. Paulo (p. 1, edição de 9 de março de 1997):
John Dewey apontou há muito tempo que uma crítica séria dos ‘abusos
específicos’ cometidos por ‘nossa imprensa não-livre’ deve buscar suas origens:
‘O efeito necessário do atual sistema econômico sobre todo o sistema de
publicidade, sobre a avaliação do que é notícia, sobre a seleção e eliminação
dos assuntos que são divulgados, sobre o tratamento dado às notícias tanto nas
colunas editoriais quanto nas do noticiário’. O conselho é válido. Se quisermos
entender os órgãos de imprensa, devemos começar por perguntar o que são. Os
maiores órgãos de imprensa são empresas enormes que integram conglomerados
ainda maiores. São estreitamente integrados com o nexo Estado-privado que
domina a vida econômica e política. Como outras empresas, vendem um produto a
um mercado. Seu mercado é composto por outras empresas (anunciantes). O
‘produto’ que vendem é a audiência; no caso da mídia de elite, que estabelece a
agenda para as outras, são audiências privilegiadas. (...) O esquema geral
consiste em incentivar o debate, mas dentro de um quadro estreito de
pressupostos que constituem uma espécie de ‘doutrina oficial’.
Não há liberdade de imprensa. Se, em tempos de “democracia”, como esse
que vivemos hoje no Brasil, não existe a fi gura do censor nas redações, típico
da ditadura militar, existe a ação coercitiva do Estado contra aqueles que, por
exemplo, tentam criar rádios comunitárias, assim como existe a censura
econômica contra os setores pobres, como os movimentos sociais e populares, que
tentam criar um jornal impresso. Não será o caso de relatar aqui a longa,
incessante e de certo modo heróica luta travada por um grande número desses
movimentos para manter o jornal Brasil de Fato, lançado no Fórum Social Mundial
de 2003, em Porto Alegre, e apenas mantido graças ao esforço abnegado e
militante de seus funcionários. E, no entanto, o jornal deveria ser estimulado,
promovido e patrocinado por recursos públicos, já que ele é porta-voz de um
vasto contingente da sociedade brasileira, justamente aquele formado por
pessoas normalmente invisíveis, mal representadas e, pior ainda, interpretadas
pela chamada “grande mídia”. Há muitos outros exemplos de veículos jocosamente
qualificados de “alternativos” ou “nanicos”, que seriam respeitados,
prestigiados e estimulados, se houvesse democracia real no país.
Não apenas não há liberdade de imprensa – e, conseqüentemente, não há
democracia -, como a mídia monopolizada é um obstáculo à democracia e à
liberdade de imprensa, ao contrário do que gosta de propalar ao seu próprio
respeito. O mais grave é que o autoritarismo monopolista da mídia é apresentado
como se fosse a apoteose da democracia; a informação controlada aparece como
pluralismo ideológico; a versão única dos fatos, transmitida por satélite para
todos os cantos do planeta, confunde-se com os próprios fatos, como se não
houvesse outra interpretação possível. São tempos perigosos, em que a mídia
monopolista detém a tecnologia e a capacidade de produzir uma perigosa
engenharia psicossocial, uma máquina que faria Goebbels parecer um colegial
ruborizado. Hans Magnus Enzensberger denuncia a “indústria da manipulação das
consciências”, em artigo citado pelo saudoso professor Octavio Ianni (O
príncipe eletrônico. Campinas, Unicamp, col. Primeira Versão, 1998, pp. 10-11)
:
A indústria da manipulação das consciências é uma criação dos últimos cem
anos. Seu desenvolvimento tem sido tão rápido e tão diversificado, que sua
existência permanece ainda hoje incompreendida e quase incompreensível...
Enquanto se discute com paixão e detalhadamente acerca dos novos meios técnicos
– rádio, cinema, televisão, disco, CD, fax, internet e outros – ; enquanto se
estuda o poder da propaganda, da publicidade e das relações públicas, a
indústria da manipulação das consciências continua sem ser considerada em seu
conjunto, como um todo... A indústria da manipulação das consciências nos vai
constranger, em futuro muito próximo, a que a consideremos como uma potência
radicalmente nova, em crescente desenvolvimento, impossível de ser medida com
base nos parâmetros disponíveis. Estamos ante a indústria chave do século vinte.
Não apenas não há liberdade de imprensa – e, conseqüentemente, não há democracia -, como a mídia monopolizada é um obstáculo à democracia e à liberdade de imprensa...
Explica-se, portanto, por que os do-nos da mídia citam Thomas Jeferson pela metade. Aquele finalzinho sempre esquecido – “... devo insistir que todos os homens deveriam receber os jornais e serem capazes de lê-los” – representa um grande inconveniente para os que usurpam o discurso democrático. Os novos Goebbels não suportam a idéia da real democracia.
Não apenas não há liberdade de imprensa – e, conseqüentemente, não há democracia -, como a mídia monopolizada é um obstáculo à democracia e à liberdade de imprensa...
Explica-se, portanto, por que os do-nos da mídia citam Thomas Jeferson pela metade. Aquele finalzinho sempre esquecido – “... devo insistir que todos os homens deveriam receber os jornais e serem capazes de lê-los” – representa um grande inconveniente para os que usurpam o discurso democrático. Os novos Goebbels não suportam a idéia da real democracia.
José Arbex Jr. – Jornalista
e Professor da PUC-SP
IN “Revista PucViva”,
No. 25 – http://www.apropucsp.org.br/revista/r25_r03.htm