sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Os dois lados


É desonesto não aceitar a diferença entre a violência clandestina de contestação a um regime ilegítimo e a violência que arrasta toda a nação para os porões da tortura.

Luis Fernando Veríssimo
Na reação ao relatório da Comissão da Verdade sobre as vítimas da ditadura, afirma-se que, para ser justo, ele deveria ter incluído o outro lado, o das vítimas da ação armada contra a ditadura. Invoca-se uma simetria que não existe. Nenhum dos mortos de um lado está em sepultura ignorada como tantos mortos do outro lado. Os meios de repressão de um lado eram tão mais fortes do que os meios de resistência do outro que o resultado só poderia ser uma chacina como a que houve no Araguaia, uma estranha batalha que — ao contrário da batalha de Itararé — houve, mas não deixou vestígio ou registro, nem prisioneiros. A contabilidade tétrica que se quer fazer agora — meus mortos contra os teus mortos — é um insulto a todas as vítimas daquele triste período, de ambos os lados.
Mas a principal diferença entre um lado e outro é que os crimes de um lado, justificados ou não, foram de uma sublevação contra o regime, e os crimes do outro lado foram do regime. Foram crimes do Estado brasileiro. Agentes públicos, pagos por mim e por você, torturaram e mataram dentro de prédios públicos pagos por nós. E, enquanto a aberração que levou a tortura e outros excessos da repressão não for reconhecida, tudo o que aconteceu nos porões da ditadura continua a ter a nossa cumplicidade tácita. Não aceitar a diferença entre a violência clandestina de contestação a um regime ilegítimo e a violência que arrasta toda a nação para os porões da tortura é desonesto.
(...)






Luis Fernando Veríssimo – Escritor – 19.12.2014
IN O Globo.
  

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O critério da verdade


O argumento apresentado para compatibilizar a gritante contradição é que não se trata de retirar direitos e sim corrigir "distorções". Essa é a justificativa principal da doutrina que, nas últimas décadas, dedicou-se de maneira sistemática a desmontar o Estado de Bem-Estar Social onde ele existia e a impedir a construção do mesmo onde era incipiente, caso do Brasil.

André Singer
Dilma Rousseff encerrou a mensagem ao povo reunido para a sua segunda posse em Brasília com um juramento. "Nenhum direito a menos, nenhum passo atrás, só mais direitos e só o caminho à frente. Esse é meu compromisso sagrado perante vocês."
No entanto, três dias antes, o governo anunciou que cinco benefícios previdenciários sofreriam cortes de R$ 18 bilhões. A tesoura vai cair sobre o seguro-desemprego, o abono salarial, a pensão por morte, o auxílio-doença e o seguro defeso (voltado para os pescadores). Todos de interesse direto dos pobres. O montante subtraído equivale a cerca de 70% do gasto com o Bolsa Família em 2014.
A desconexão entre palavras e atos constitui perigosa sequência daquela produzida por uma campanha à esquerda e a montagem de um ministério à direita. Em geral, o chamado povão já tende a considerar que o universo dos políticos lhe é alheio. Mas a ruptura de qualquer elo lógico entre o que se diz e o que se faz tende a potencializar as reações de violento descrédito que virão quando o efeito real das medidas começarem a ser sentidas na pele.
(...)





André Singer – Cientista Político e Professor da FFLCH/USP – 03.01.2015
IN Folha de São Paulo.


domingo, 25 de janeiro de 2015

Por que o ensino superior deve ser gratuito e com cotas?


avalio que a proposta da cobrança pelo ensino nas universidades públicas tem muitas possibilidades de aumentar os seus aspectos elitistas, consolidando ao mesmo tempo a visão de que a universidade é um luxo ao qual não é importante que todos tenham acesso.

Ramon García Fernández
A crise financeira em que se encontra hoje a maior universidade brasileira, a USP (que ameaça inclusive contagiar suas duas instituições irmãs, a Unicamp e a UNESP) trouxe ao centro das discussões a questão do financiamento das universidades públicas. Foi defendida como solução, em diversos âmbitos, a ideia de cobrança de mensalidades nessas universidades. A proposta, que provavelmente se inspira no modelo vigente nos EUA, supõe que o governo deva oferecer gratuitamente educação nos níveis fundamental e médio, mas que deva cobrar pelo ensino superior.
Muitas vezes os críticos de nossas universidades gratuitas as apontam como uma curiosidade brasileira; em geral, a narrativa diz que esse seria mais um exemplo da captura das instituições públicas por nossas elites, que assim empurrariam para a massa de contribuintes o custo de sua educação superior.  Poucas vezes lembram esses críticos que a grande maioria dos países europeus oferece ensino superior gratuito, ao igual que vizinhos latino-americanos com sistemas universitários tradicionais e respeitados, como a Argentina e o Uruguai.  Será esse também um complô das elites suecas, austríacas ou uruguaias?
Não deixo de considerar contraditória uma proposta que diz que a maneira de “deselitizar” a universidade seja cobrar pelo ensino.  Hoje, dizem os críticos da gratuidade, seriam poucos os pobres (conceito muito elástico num país onde quase todo operário virou de repente classe media) que conseguem entrar nas universidades públicas. Entendo que esse é um dado completamente falacioso, mas mesmo aceitando-o provisoriamente “for the sake of the argument”,  parece-me claro que  a cobrança de mensalidades estaria arriscada a reduzir o número de pobres a zero. A saída para evitar isso, segundo os partidários da cobrança, estaria ora em fornecer crédito educativo, ora em dar gratuidade “para quem demonstrar essa condição de pobreza”.  A primeira proposta parece ignorar o desastre das dívidas universitárias nos EUA bem como o impressionante movimento dos estudantes chilenos em prol da gratuidade. A segunda, embora em princípio seja muito mais sensata, enfrentaria, ao meu ver, sérios problemas de implementação (é muito mais complicado acompanhar a renda familiar dos estudantes durante os quatro, cinco ou seis anos de ensino, do que simplesmente usar esse critério para isentar de taxas no vestibular; seria sempre polêmico avaliar o caso de um estudante que brigou com os pais, que passam a não mais sustenta-lo; haveria dúvidas de como considerar a renda do estudante que trabalha e tem que ajudar pais ou outros parentes, etc.).
(...)
Para continuar a leitura, acesse http://terracoeconomico.com/2014/07/20/por-que-o-ensino-superior-deve-ser-gratuito-e-com-cotas/





Ramon García Fernández – Pós-Doutor em Economia pela University of Massachusetts, Coordenador do Bacharelado em Ciências Econômicas da UFABC – 20.07.2014
IN Terraço Econômico. 

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Estudo mostra que participação das micro e pequenas no PIB chega a 27%


Grande parte do aumento de importância das micro e pequenas empresas ocorreu na última década, já que, em 2001, a participação das micro e pequenas empresas no PIB era de 23,2% do total. O valor gerado por essa parte do setor privado saltou de R$ 144 bilhões em 2001 para R$ 599 bilhões em 2011, um crescimento de 316%.(...)
 as micro e pequenas empresas já respondem por 52% da mão de obra formal no Brasil e 40% da massa salarial.

Lucas Marchesini
A participação das micro e pequenas empresas no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro cresceu e atingiu 27%. O dado inédito foi apurado pela Fundação Getulio Vargas (FGV) a pedido do Sebrae e repassado com exclusividade ao Valor PRO, serviço de informação em tempo real do Valor.
Esse percentual refere-se ao ano de 2011 e representa um aumento significativo em relação a 1985, quando, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os pequenos negócios respondiam por 21% do PIB nacional. A pesquisa da FGV utilizou a mesma metodologia aplicada pelo IBGE naquela ocasião.
Esse crescimento se deve à conjugação de três questões, na avaliação do presidente do Sebrae, Luiz Barreto. São eles: o crescimento do mercado consumidor, em especial a classe C, o aumento do grau de escolaridade da população e a criação do Super Simples (sistema criado em julho de 2007), que simplificou drasticamente e reduziu a carga tributária das pequenas empresas.
(...)



Lucas Marchesini – 23.07.2014
IN Valor Econômico, ed. impressa.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo: uma reflexão difícil


Não estamos perante um choque de civilizações, até porque a cristã tem as mesmas raízes que a islâmica. Estamos perante um choque de fanatismos, mesmo que alguns deles não apareçam como tal por nos serem mais próximos. A história mostra como muitos dos fanatismos e seus choques estiveram relacionados com interesses económicos e políticos que, aliás, nunca beneficiaram os que mais sofreram com tais fanatismos.


Boaventura de Sousa Santos
O crime hediondo que foi cometido contra os jornalistas e cartoonistas do Charlie Hebdo torna muito difícil uma análise serena do que está envolvido neste ato bárbaro, do seu contexto e seus precedentes e do seu impacto e repercussões futuras. No entanto, esta análise é urgente, sob pena de continuarmos a atear um fogo que amanhã pode atingir as escolas dos nossos filhos, as nossas casas, as nossas instituições e as nossas consciências. Eis algumas das pistas para tal análise.

A luta contra o terrorismo, tortura e democracia. Não se podem estabelecer ligações diretas entre a tragédia do Charlie Hebdo e a luta contra o terrorismo que os EUA e seus aliados têm vindo a travar desde o 11 de setembro de 2001. Mas é sabido que a extrema agressividade do Ocidente tem causado a morte de muito milhares de civis inocentes (quase todos muçulmanos) e têm sujeitado a níveis de tortura de uma violência inacreditável jovens muçulmanos contra os quais as suspeitas são  meramente especulativas, como consta do recente relatório presente ao Congresso norte-americano. E também é sabido que muitos jovens islâmicos radicais declaram que a sua radicalização nasceu da revolta contra  tanta violência impune.
 
Perante isto, devemos refletir se o caminho para travar a espiral de violência é continuar a seguir as mesmas políticas que a têm alimentado como é agora demasiado patente. A resposta francesa ao ataque mostra que a normalidade constitucional democrática está suspensa e que um estado de sítio não declarado está em vigor, que os criminosos deste tipo, em vez de presos e julgados, devem ser abatidos, que este fato não representa aparentemente nenhuma contradição com os valores ocidentais. Entramos num clima de guerra civil de baixa intensidade. Quem ganha com ela na Europa? Certamente não o partido Podemos em Espanha ou o Syriza na Grécia. 

(...)






Boaventura de Sousa Santos – Sociólogo português – 15.01.2015
IN Carta Maior. 





Guerra entre fundamentalismos




Há um pouco mais que sátira em jogo. O que estamos testemunhando é um conflito entre fundamentalismos rivais, cada um mascarado por diferentes ideologias.


Tarik Ali
Foi um acontecimento terrível. Foi repudiado em muitas partes do mundo e de maneira mais veemente por cartunistas de países árabes e de outros lugares. Os arquitetos dessa atrocidades escolheram seus alvos com bastante cuidado. Eles sabiam muito bem que tal ato criaria o maior dos horrores.
Foi a qualidade, não a quantidade que eles procuravam. Eles não dão a mínima para o mundo dos incrédulos. Como Kirilov em “Os demônios”, romance de Dostoyevski, eles pensam que “se Deus não existisse, tudo seria permitido”.
Ao contrário dos inquisidores medievais da Sorbonne, eles não têm a autoridade legal e teológica para assediar livreiros ou donos de gráficas, proibir livros ou torturar escritores, de modo que se sentem livres para dar um passo além.
(...)
Para continuar a leitura, acesse http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2015/01/1573356-tariq-ali-guerra-entre-fundamentalismos.shtml









Tarik Ali – Escritor paquistanês, é membro do Conselho Editorial da revista britânica “New Left Review”– 11.01.2015
IN Folha de São Paulo.






Escalada fascista


Acima dos motivos específicos presentes nos conflitos que pipocam planeta afora, existe a tendência a se estabelecer neles uma dinâmica fascista, caracterizada pela ideia de que só o uso da força pode resolver os problemas.  Embora envolvam facções antagônicas dispostas a se matar mutuamente, os inimigos têm dois elementos que os irmanam: o desprezo pela democracia e o amor pela guerra. Por isso, se reforçam mutuamente.

André Singer
Ao comentar o massacre dos jornalistas do “Charlie Hebdo”, quarta-feira, o deputado Daniel Cohn-Bendit afirmou que “há no movimento islâmico terrorista e radical um momento fascista” (Folha 8/1).
Ressalvando que isso nada tem a ver com os muçulmanos em geral, Cohn-Bendit considera que “são (...) pequenos grupos fascistas”.
Por não ter condição de realizar avaliação própria, fio-me na opinião externada por um personagem cuja trajetória respoeito para observar que esses “momentos fascistas” só tem feito crescer no século 21.
(...)




André Singer – Cientista Político e professor da USP – 14.01.2015

IN Folha de São Paulo.