O Brasil sempre foi um país de leis e de legistas. Herdeiros, por Portugal, da tradição jurídica romano-germânica, somos um dos maiores produtores de leis. A mania de regulamentação foi introduzida e reforçada pela grande presença de juristas no Poder Legislativo e na administração do Estado. Juristas e advogados compuseram a quase totalidade da elite política durante todo o período de formação nacional no século XIX e continuam a representar parcela importante dela. A aspiração maior desses juristas é formular a legislação perfeita, que enquadre toda a realidade e evite qualquer brecha por onde possa escapar o transgressor. Nosso jurista se vê como um demiurgo, organizador do mundo, reformador universal. Feita a lei, o problema para ele está resolvido, não lhe interessando sua execução. (...) Nosso cipoal de leis incita à transgressão e elitiza a justiça. A tentativa de fechar qualquer porta ao potencial transgressor, baseada no pressuposto de que todos são desonestos, acaba tornando impossível a vida do cidadão honesto. A saída que este tem é, naturalmente, buscar meios de fugir ao cerco. Cria-se um círculo vicioso: excesso de lei leva à transgressão, que leva a mais lei, que leva a mais transgressão.
José Murilo de Carvalho
Nas manchetes dos jornais, os
escândalos de corrupção se repetem com uma regularidade quase monótona. Diante
de uma aparente crise geral dos valores éticos e de impunidade
institucionalizada, o risco que corremos, no Brasil de hoje, é entrar num
torpor cívico que não nos permita ultrapassar a pergunta: "E agora?".
Para entendermos o agora, talvez um bom
exercício seja aplicar nossa perplexidade a uma dimensão maior. A dimensão
histórica. Será que a corrupção de hoje é a mesma que a de cem anos? Há mais
corrupção hoje do que antes? Aumentou a corrupção ou aumentou a sua percepção e
a postura diante dela?
Uma sequência de episódios reforça a
impressão de que a corrupção sempre esteve entre nós. No século XIX, os
republicanos acusavam o sistema imperial de corrupto e despótico. Em 1930, a
Primeira República e seus políticos foram chamados de carcomidos. Getúlio
Vargas foi derrubado em 1954 sob acusação de ter criado um mar de lama no
Catete. O golpe de 1964 foi dado em nome da luta contra a subversão e a
corrupção. A ditadura militar chegou ao fim sob acusações de corrupção,
despotismo, desrespeito pela coisa pública. Após a redemocratização, Fernando
Collor foi eleito em 1989 com a promessa de combater a corrupção, e foi expulso
do poder acusado de fazer o que condenou. Nos últimos anos, as denúncias proliferam,
atingindo lodos os poderes e instituições da República e a própria sociedade.
Mas antes de considerarmos estes fatos
como indícios de um eterno retorno, convém lembrar que o sentido do termo mudou
ao longo do tempo. Ao falar de corrupção no final do Império, nenhum
republicano queria dizer que D. Pedro II era corrupto. Pelo contrário, se
reconheciam nele uma virtude, era a da correção pessoal. Do mesmo modo, em
1930, quando os revoltosos qualificavam de carcomidos os políticos da
"Velha" República, não queriam dizer que eram ladrões. Nos dois
casos, a acusação era dirigida ao sistema, não às pessoas. Corruptos eram os
sistemas, monárquico ou republicano, por serem, na visão dos acusadores,
despóticos, oligárquicos, e não promoverem o bem público. A partir de 1945,
houve uma alteração no sentido que se dava à corrupção.
Entrou em cena o udenismo. A oposição a
Getúlio Vargas, comandada pelos políticos da União Democrática Nacional (UDN),
voltou suas baterias contra a corrupção individual, contra a falta de moralidade
das pessoas. Corruptos passaram a ser os indivíduos – os políticos getulistas,
o próprio Vargas. Foram também indivíduos que serviram de justificativa para o
golpe de 1964 e mais tarde inspiraram o grito de guerra de Collor, personificados
na figura dos marajás, a serem caçados.
O termo "corrupção" é,
portanto, ambíguo. Podemos evitá-lo recorrendo à palavra
"transgressão", que é menos escorregadia: transgredir é desrespeitar,
violar, infringir. Quem transgride, transgride alguma coisa definível - uma
lei, um valor, um costume. Além disso, a transgressão é valorativamente neutra.
Não há boa corrupção, a não ser na visão de políticos como Ademar de Barros
(1901-1969), que se vangloriava de fazer, mesmo que roubando. Há, no entanto, a
boa transgressão. Toda corrupção é transgressão, mas nem toda transgressão é
corrupção.
O Brasil sempre foi um país de leis e
de legistas. Herdeiros, por Portugal, da tradição jurídica romano-germânica,
somos um dos maiores produtores de leis. A mania de regulamentação foi
introduzida e reforçada pela grande presença de juristas no Poder Legislativo e
na administração do Estado. Juristas e advogados compuseram a quase totalidade
da elite política durante todo o período de formação nacional no século XIX e continuam
a representar parcela importante dela. A aspiração maior desses juristas é formular
a legislação perfeita, que enquadre toda a realidade e evite qualquer brecha
por onde possa escapar o transgressor. Nosso jurista se vê como um demiurgo,
organizador do mundo, reformador universal. Feita a lei, o problema para ele
está resolvido, não lhe interessando sua execução. Trata-se de postura oposta à
da tradição da Common Law anglo-saxônica, segundo a qual a lei apenas regula o
comportamento costumeiro.
Nosso cipoal de leis incita à
transgressão e elitiza a justiça. A tentativa de fechar qualquer porta ao
potencial transgressor, baseada no pressuposto de que todos são desonestos,
acaba tornando impossível a vida do cidadão honesto. A saída que este tem é,
naturalmente, buscar meios de fugir ao cerco. Cria-se um círculo vicioso:
excesso de lei leva à transgressão, que leva a mais lei, que leva a mais
transgressão.
Exemplos desse legalismo delirante se
verificam até hoje. Tome-se o Código Nacional de Trânsito de 1997. Com seus 341
artigos, é exaustivo em definir regras e estabelecer punições, generoso em
criar burocracias - Contran, Cetran, Contradife, Jarí, Renavan, Renach. Foi
recebido com foguetório e aplauso geral. No entanto, era fácil prever seu
fracasso, pois nada foi feito no sentido de sua aplicação. Passado um curto período
em que houve alguma redução de acidentes, e durante o qual os motoristas avaliavam
a ação da polícia, voltou-se aos mesmos índices de antes. A norma perfeita não
se adequava às condições de trânsito, ao tipo de polícia, ao mau estado das
estradas, às anistias de multas, à inoperância dos mecanismos de recurso, à
própria cultura da transgressão.
A distância entre a lei e a realidade
sempre esteve presente no cotidiano da maioria dos brasileiros. Até a metade do
século XX, para quase toda a população rural, que era majoritária, a lei do
Estado era algo distante e obscuro. O que esta população conhecia, e bem, era a
lei do proprietário. Até mesmo autoridades públicas, como juízes e delegados,
eram controladas pelas facções dominantes nos municípios. Havia o "juiz nosso",
o "delegado nosso". O problema da transgressão da lei não se colocava
para essa população. E se algum traço a caracterizava era a submissão, a
acomodação, o fatalismo, a não ser por revoltas eventuais, em geral marcadas
por misticismo religioso.
As revoltas populares do século XIX e
de parte do século XX, tanto rurais como urbanas, se deram como consequência da
expansão da lei, da capacidade reguladora do Estado. Quando a população pobre
do século XIX se revoltou contra o recenseamento, o recrutamento, a mudança do
sistema de pesos e medidas, o aumento de impostos, ou quando, no século XX,
pegou em armas contra a vacina obrigatória, ela estava protestando contra uma
lei considerada ilegítima por contrariar valores comunitários, religiosos ou
mesmo políticos. A revolta de Antônio Conselheiro no arraial de Canudos foi,
sem dúvida, o episódio mais trágico entre os confrontos da legalidade com
valores tradicionais. O aspecto dramático nesses casos é que todos tinham
razão: o Estado no esforço de racionalização e secularização, os rebeldes na
defesa de seus valores, crenças e costumes.
Nas grandes cidades, sobretudo em suas
periferias, o agente da lei próximo à população era, e ainda é, o policial
militar ou civil, cujo arbítrio e violência são conhecidos. A garantia de
direitos fundamentais para os migrantes do campo - propriedade, inviolabilidade
do lar, ir e vir, integridade física - era, e em boa parte ainda é, pouco mais
que inexistente. Essa massa, que logo passou a votar em grande número, adquiriu
cidadania política, mas não cidadania civil. Mais recentemente, em trágico retrocesso,
uma parcela dessa população urbana, ex-vítima dos coronéis, passou ao jugo de
outro poder privado, muito mais violento: o poder dos traficantes.
Em vez de se pensar em transgressão, é
mais adequado dizer dessa população que ela é estranha à lei, que está à margem
da lei. Para ela, a lei é uma entidade hostil. A sociedade brasileira não lhe
forneceu qualquer escola de civismo.
E que escola de civismo teve a gente da
casa-grande? No velho mundo rural, herdeiro da tradição escravista, a lei
detinha-se na porteira das fazendas. Os proprietários prendiam, julgavam,
condenavam, puniam. Descendentes diretos desses senhores compõem hoje a bancada
ruralista no Congresso. Muitos estão entre os que ainda hoje são acusados de manter
trabalhadores em condições análogas à escravidão.
E os poderosos das cidades? A elite
política, formada em sua maior parte por advogados e juristas, manteve por
longo tempo certo respeito à lei, sem fugir de todo à tradição patrimonialista
que estava na origem de nosso Estado. O bom comportamento se deveu, em boa
parte, à intervenção pessoal do imperador, e se prolongou pela Primeira
República, quando os exemplos de desprezo pela coisa pública estavam longe de
ter a dimensão escandalosa de hoje. Dentro do próprio grupo dissidente que
subiu ao poder em 1930, havia poucos exemplos de oportunistas e aproveitadores.
Ironicamente, foi o fim dessa sociedade patrícia, iniciado em 1930 e acelerado
após 1945 - e, mais ainda, durante os governos militares - que abriu as portas
para a invasão da transgressão nas altas esferas.
A ditadura protegeu com o arbítrio a
atuação dos governantes e interrompeu a formação de uma nova elite dentro de
padrões republicanos. O crescimento da máquina estatal ampliou práticas
clientelísticas e patrimoniais e aumentou o predomínio do Executivo sobre o
Legislativo. Outro fator negativo foi a construção de Brasília, que libertou congressistas
e executivos do controle das ruas, ampliando a sensação de impunidade. Brasília
tornou-se uma corte corrupta e corruptora. Funcionasse o governo no Rio de
Janeiro, os políticos envolvidos em falcatruas seriam vaiados dentro do Congresso
e "ovacionados" nas ruas.
Há transgressão e há percepção da
transgressão. A camada social em melhor posição para perceber a transgressão e
reagir contra ela é a que chamamos de classe média. É ela que está mais cercada
pela lei em função de sua inserção profissional, é sobre ela que recai grande
parcela dos impostos, é ela que menos se beneficia de políticas sociais. Além
disso, graças à alta escolaridade, ela tem condições de desenvolver uma visão
crítica da política e de seus agentes, de formar a opinião pública do país.
Pode-se dizer que a reação contra a transgressão varia na razão inversa do bem-estar
da classe média urbana. Maior a classe média urbana e piores suas condições de vida,
maior a grita por moralidade.
Gritar alivia, mas não conduz
necessariamente a mudanças. Se não existe uma tradição de respeito à lei, não
será com apelos moralistas que ela será criada. A famosa Constituição do historiador Capistrano
de Abreu (1853 - 1927), que num único artigo obrigava todos os brasileiros a
terem vergonha na cara, é um achado. Mas ela seria perfeitamente ineficaz. Como
pedir ao povo que respeite a lei se ele toma conhecimento todos os dias de
exemplos de políticos, empresários e ricos em geral burlando a lei impunemente?
Não há solução fácil. Mas não estamos condenados
à corrupção e à transgressão.
Elas são fenômenos históricos que, como
todos os outros, estão em perpétua mutação. Medidas tópicas podem reduzi-las. O
processo de votação já foi uma grande fraude, hoje é confiável. A impunidade
tem que ser combatida em todas as camadas sociais, sobretudo entre as mais
altas. Isso exige reformas na legislação penal e nas instituições, sobretudo
nas polícias e no funcionamento do Judiciário. Imagine-se o efeito que teria
entre os criminosos de colarinho branco o fim do foro privilegiado e da prisão
especial para portadores de diplomas universitários. Sobretudo, a democracia
política tem que ser usada para produzir a democracia civil da igualdade
perante a lei. Inclusive porque, sem a última, a primeira não terá futuro
promissor.
José Murilo de Carvalho –
2013.
In FIGUEIREDO,
Luciano (org.). História do Brasil para
Ocupados. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, Editora Casa da
Palavra, 2013.