terça-feira, 10 de maio de 2016

O colapso da democracia no Brasil


O que a conjuntura brasileira ilumina é o fato de que, mesmo limitada e indigna de seus ideais normativos mais elevados, a democracia incomoda às classes dominantes. Afinal, se o consentimento da maioria se torna condição para o exercício do poder, pode ser que o interesse dessa maioria se faça ouvir também.
Os governos do PT foram muito ciosos dos limites que esse arranjo institucional impunha. Entenderam que era necessário muito cuidado ao mexer com os privilégios dos grupos mais poderosos; na verdade, eles deveriam ser acomodados, não afrontados. A elite política tradicional foi toda incorporada ao projeto de poder petista, que loteou generosamente o Estado brasileiro. O capital financeiro manteve lucros crescentes. O dinheiro público cevou as grandes corporações, seja pelo investimento maciço em obras, seja por meio dos bancos estatais dedicados ao fortalecimento dos nossos capitalistas. Como garantia de suas “intenções sérias”, o PT no poder trabalhou ativamente para desmobilizar os movimentos sociais que poderiam pressionar por transformações mais profundas.
Ainda assim, algum limite foi ultrapassado, talvez porque o que o PT buscou promover foi umaacomodação, isto é, suas lideranças e suas bases precisariam ser incorporadas, de alguma forma. Mas a tolerância das classes dominantes brasileiras em relação à democracia formal parece ir muito pouco além da concessão do sufrágio universal. O povo até pode votar, vá lá, mas que os tomadores de decisão levem em conta minimamente os interesses das classes populares já é motivo para escândalo. 
  
Luís Felipe Miguel
A derrota de 17 de abril, na Câmara dos Deputados, foi mais do que a sentença de morte para o governo Dilma Rousseff, o triunfo do banditismo político ou a desmoralização final da elite parlamentar brasileira. Representou o término da ilusão de que o sistema político em vigor no país pode receber o título de “democracia”.
“Democracia” é um conceito em disputa. À esquerda, costumamos exigir um regime que conceda maior autoridade efetiva às pessoas comuns, que realize de maneira mais plena o ideal normativo da igualdade política. Também entendemos que há um vínculo forte entre as condições materiais de vida e a possibilidade de ação política efetiva. E questionamos o insulamento das práticas democráticas a um espaço social restrito, observando como não há democracia efetiva se não são desafiadas as hierarquias presentes nos locais de trabalho ou na esfera doméstica. Em suma, tendemos a colocar aspas ou adjetivos na democracia (limitada, restrita, formal) que vigora na maior parte do mundo ocidental.
Para o pensamento mais conservador, tais limites são inevitáveis ou mesmo necessários. A democracia é sobretudo um procedimento de legitimação da autoridade política, por meio do voto popular. Em algumas narrativas, como a de Anthony Downs, a necessidade de obtenção da maioria eleitoral garante automaticamente que os mandatários serão fiéis cumpridores da vontade popular. Em outras, como a de Giovanni Sartori, o modelo permite que a elite política controle o governo com competência sem se independentizar do restante da sociedade. E em outras ainda, como a de Joseph Schumpeter, tudo não passa de um ritual desprovido de outro significado além da obtenção do consentimento dos governados e, portanto, da redução dos custos da dominação.
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Luís Felipe Miguel – Cientista Político e professor da Unb – 06.05.2016.
In Blog da Boitempo.