A
questão é: como chegamos a esse ponto, no qual se parece reviver o espírito de
1964, expresso na palavra de ordem de “abaixo a corrupção e o comunismo” por
sua atualização como “abaixo a corrupção e o petismo”? Tentar responder a isso
leva a questionar os rumos da sociedade nas últimas décadas e, dado não
negligenciável, o papel de um específico partido, o PT, e de uma específica
liderança, Lula. É preciso salientar desde logo que o importante são os rumos
da sociedade, mais do que os das instituições políticas. Até porque, apesar dos
traços “radicais” de certas posições, o modelo político-institucional não corre
grave risco, não porque seja inabalável ou objeto de grandes cuidados pelos
novos adeptos da substituição das urnas pelas ruas, mas porque é elástico o
suficiente para absorver pressões de várias origens, incluindo as mais
corruptas, como os norte-americanos sabem há séculos.
Gabriel
Cohn
Que o caráter vertiginoso dos acontecimentos em cascata nos últimos
tempos não nos iluda. Estamos imersos em um processo complexo e de longo prazo.
Não se trata de uma conjuntura passageira e remediável mediante acordos bem
urdidos. Nem mesmo de uma mera crise. Esta, como ruptura que se pode enfrentar,
já ficou para trás, na semana fatídica em que o ex-presidente Lula foi vítima
de uma espécie de sequestro judicial a pretexto de depoimento e logo em seguida
ameaçado de prisão preventiva (mais tarde explicitamente pedida ao
procurador-geral da República por colega nosso). A partir daquele momento,
vivemos uma fase de confrontação frontal e direta, sem retorno. A ordem é
destruir Lula como figura pública; Dilma é mera escala para tanto. Ou seja,
impasse pleno, exatamente aquilo que em política é inadmissível, a não ser,
claro, que estivesse em curso um processo revolucionário em sua forma mais
plena. Já neste ponto cabe observação sobre o caráter desconcertante disso
tudo. É que os setores sociais empenhados em cortar o mandato da presidenta
estão fazendo algo diferente e mais específico do que um puro e simples
atentado à democracia (daí o erro da palavra de ordem de “defesa da
democracia”; poderia até ser da justiça ou nessa linha). Não é a democracia sem
mais que está em jogo, embora os próprios responsáveis pelo ataque não se deem
conta disso. Eles atiram no que veem, a presidenta (para em seguida aniquilarem
o ex), mas acertam na democracia representativa, com um radicalismo que os deveria
colocar ao lado dos mais vigorosos trotskistas. Pois a palavra de ordem
implícita (que se difunde por segmentos talvez crescentes da população) é: se a
presidenta eleita não nos agrada, vamos apeá-la do poder. Claro que é golpe,
mas não só isso, até porque interessa menos a tática pontual dos adversários da
presidenta do que os efeitos de longo prazo, nos corações e mentes da
população, que ela suscita. A paradoxal (dadas as circunstâncias) proposta
implícita é a da substituição da democracia representativa, com mandato bem
definido e constitucionalmente assegurado, por alguma forma de democracia
delegativa ou, no limite, direta, coisas que podemos até discutir. Do modo como
está, é como se a Fiesp estivesse organizando sovietes no lugar de ocupar o espaço
público com apoiadores bem pouco amistosos. Isso, todavia, é só um lado da
comédia bufa, tão agressiva como são todas elas, na qual vai se convertendo
todo esse movimento, movido por razões bem outras do que o cuidado com a coisa
pública e muito mais por tóxica e explosiva mescla de ambição pessoal,
insegurança, medo e rancor acumulado. A questão é: como chegamos a esse ponto,
no qual se parece reviver o espírito de 1964, expresso na palavra de ordem de
“abaixo a corrupção e o comunismo” por sua atualização como “abaixo a corrupção
e o petismo”? Tentar responder a isso leva a questionar os rumos da sociedade
nas últimas décadas e, dado não negligenciável, o papel de um específico
partido, o PT, e de uma específica liderança, Lula. É preciso salientar desde
logo que o importante são os rumos da sociedade, mais do que os das
instituições políticas. Até porque, apesar dos traços “radicais” de certas
posições, o modelo político-institucional não corre grave risco, não porque
seja inabalável ou objeto de grandes cuidados pelos novos adeptos da
substituição das urnas pelas ruas, mas porque é elástico o suficiente para
absorver pressões de várias origens, incluindo as mais corruptas, como os
norte-americanos sabem há séculos. A ênfase na sociedade em vez de nas
instituições tem razão muito simples. Desde 1988, as questões constitucionais
estão bem encaminhadas (o difícil é sustentar os avanços e, sobretudo,
aprofundá-los; com o que já se enuncia a tarefa mais urgente nos dias que
correm). É na sociedade, sede daquilo que Paulo Sérgio Pinheiro apontou em
termos pioneiros como “autoritarismo socialmente implantado”, que se encontram
os problemas mais fundos. Neste ponto, a questão é: como puderam chegar tão
fundo?
(...)
Gabriel
Cohn – Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo – 03.05.2016.
IN Le Monde Diplomatique.