A reflexão sobre o golpe de 2016 impõe a adoção de uma moldura
teórica capaz de abranger o conflito social de maneira mais ampla, para além de
sua expressão nas instituições vigentes.
(...)
se queremos entender a política e o funcionamento das instituições
para além da marola do noticiário, é preciso levar em conta, centralmente, a
relação do Estado com as classes dominantes. Os modelos de interpretação em
vigor na ciência política aderem à ficção de uma institucionalidade
jurídico-política liberada do conflito de classe, mas crises como a que estamos
vivendo revelam os limites dessa abordagem.
(...)
as instituições são simultaneamente resultados da disputa
política, arenas da disputa política e partícipes da luta política. Não podemos ver o mundo da política como se elas fossem balizas fixas na disputa de projetos e interesses, alheias a essa disputa. Nosso sistema de freios e contrapesos não preveniu o golpe; pelo contrário, foi acionado de maneira a alavancá-lo. E mostrou a que interesses é capaz de servir, uma vez acionado.
Luis Felipe Miguel
Não é exagero dizer que o golpe de 2016, que encerrou a experiência
democrática iniciada no Brasil a partir de 1985, pegou todo mundo de surpresa.
Muitos podiam reclamar dos limites da democracia brasileira, ainda
insuficientemente inclusiva, com um eleitorado imaturo, atravessada por
práticas patrimonialistas, sujeita a formas de manipulação da vontade coletiva
– as críticas eram variadas, dependendo de onde partiam. Mas era consensual a
ideia de que suas regras básicas tinham chegado para ficar, em particular o
fato de que o poder político deveria ser conquistado pelo voto. Pesava também a
constatação de que as forças armadas, ainda que não exatamente convertidas ao
credo democrático (como demonstra sua incapacidade de fazer a autocrítica da
ditadura), pareciam pouco inclinadas a uma intervenção política mais ostensiva.
Com os quartéis apaziguados, estava afastada a possibilidade de golpe,
entendido classicamente como golpe militar, que seria a principal ameaça à
continuidade do processo democrático.
Por isso, o triunfo do golpe de novo tipo que levou
Temer Golpista à presidência surpreendeu os observadores da realidade política
brasileira e, em particular, aqueles da tribo à qual pertenço: os cientistas
políticos. Na verdade, o sentimento de surpresa, de incapacidade de encaixar os
eventos num enquadramento explicativo que faça sentido, vem de antes. Começa em
junho de 2013, quando as ruas das cidades brasileiras foram tomadas por
manifestações que ninguém esperava, com uma adesão que ninguém esperava, que se
desdobraram de maneiras que ninguém esperava. Uma leitura dos estudos que têm
sido publicados sobre as “jornadas de junho” mostra que um traço comum a muitos
deles é o reconhecimento expresso de seu caráter tateante e de sua impotência
explanatória.
Isso ocorre porque a ciência política é vítima da
crença em sua própria narrativa dominante. É uma narrativa em que o conflito
social é inteiramente englobado pelas instituições. A parte do conflito que não
se expressa por via institucional é tratada como residual e como demonstração
de um amadurecimento ainda insuficiente do nosso sistema político – com o ainda indicando
o subtexto teleológico presente nessas formulações. É uma narrativa que se
estabelece como dominante a partir da nossa “transitologia”, isto é, o corpo de
estudos que descreve e analisa o processo de transição política da ditadura
militar para a democracia.
(...)
Luis Felipe Miguel – Cientista Político, professor da UNB – 01.09.2016.
IN Blog da Boitempo.