quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Para entender o Golpe


A reflexão sobre o golpe de 2016 impõe a adoção de uma moldura teórica capaz de abranger o conflito social de maneira mais ampla, para além de sua expressão nas instituições vigentes. 
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se queremos entender a política e o funcionamento das instituições para além da marola do noticiário, é preciso levar em conta, centralmente, a relação do Estado com as classes dominantes. Os modelos de interpretação em vigor na ciência política aderem à ficção de uma institucionalidade jurídico-política liberada do conflito de classe, mas crises como a que estamos vivendo revelam os limites dessa abordagem. 
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as instituições são simultaneamente resultados da disputa política, arenas da disputa política e partícipes da luta política. Não podemos ver o mundo da política como se elas fossem balizas fixas na disputa de projetos e interesses, alheias a essa disputa. Nosso sistema de freios e contrapesos não preveniu o golpe; pelo contrário, foi acionado de maneira a alavancá-lo. E mostrou a que interesses é capaz de servir, uma vez acionado.

Luis Felipe Miguel

Não é exagero dizer que o golpe de 2016, que encerrou a experiência democrática iniciada no Brasil a partir de 1985, pegou todo mundo de surpresa. Muitos podiam reclamar dos limites da democracia brasileira, ainda insuficientemente inclusiva, com um eleitorado imaturo, atravessada por práticas patrimonialistas, sujeita a formas de manipulação da vontade coletiva – as críticas eram variadas, dependendo de onde partiam. Mas era consensual a ideia de que suas regras básicas tinham chegado para ficar, em particular o fato de que o poder político deveria ser conquistado pelo voto. Pesava também a constatação de que as forças armadas, ainda que não exatamente convertidas ao credo democrático (como demonstra sua incapacidade de fazer a autocrítica da ditadura), pareciam pouco inclinadas a uma intervenção política mais ostensiva. Com os quartéis apaziguados, estava afastada a possibilidade de golpe, entendido classicamente como golpe militar, que seria a principal ameaça à continuidade do processo democrático.
Por isso, o triunfo do golpe de novo tipo que levou Temer Golpista à presidência surpreendeu os observadores da realidade política brasileira e, em particular, aqueles da tribo à qual pertenço: os cientistas políticos. Na verdade, o sentimento de surpresa, de incapacidade de encaixar os eventos num enquadramento explicativo que faça sentido, vem de antes. Começa em junho de 2013, quando as ruas das cidades brasileiras foram tomadas por manifestações que ninguém esperava, com uma adesão que ninguém esperava, que se desdobraram de maneiras que ninguém esperava. Uma leitura dos estudos que têm sido publicados sobre as “jornadas de junho” mostra que um traço comum a muitos deles é o reconhecimento expresso de seu caráter tateante e de sua impotência explanatória.
Isso ocorre porque a ciência política é vítima da crença em sua própria narrativa dominante. É uma narrativa em que o conflito social é inteiramente englobado pelas instituições. A parte do conflito que não se expressa por via institucional é tratada como residual e como demonstração de um amadurecimento ainda insuficiente do nosso sistema político – com o ainda indicando o subtexto teleológico presente nessas formulações. É uma narrativa que se estabelece como dominante a partir da nossa “transitologia”, isto é, o corpo de estudos que descreve e analisa o processo de transição política da ditadura militar para a democracia. 
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Luis Felipe Miguel – Cientista Político, professor da UNB – 01.09.2016.
IN Blog da Boitempo.