Há pouca informação
sobre as vertentes do movimento feminista e sobre seus posicionamentos em
relação aos conceitos e direitos em disputa. Essa ausência de informação é
agravada por movimentos neofeministas e pós-feministas, que muitas vezes
defendem uma limitação de direitos em nome das mulheres
Cynthia Semíramis
É bastante frequente a divulgação na mídia de novos
grupos ativistas que supostamente reinventaram a causa. Normalmente se declaram
neo ou pós, acrescido do nome do movimento, ou então são nomeados assim por
jornalistas para trazer ares de novidade à matéria.
Diferenciar-se do antigo, reinventar nomes e
classificações, é uma estratégia de divulgação que pode ser interessante para o
grupo se destacar e receber atenção e novas filiações. Afinal, acreditam, é
melhor ser visto como alguém que faz algo inovador do que ser mais um na
multidão que segue a linha antiga. Porém, esse tipo de rotulação, na maioria
das vezes, esconde questões políticas e ideológicas que podem ser mais
conservadoras e arbitrárias do que as do movimento do qual tentam se
desvincular.
Especialmente em relação ao feminismo isso ocorre
com frequência. É bastante comum que novos grupos feministas sejam divulgados
como neofeministas ou pós-feministas, mas essa classificação não sobrevive
quando se analisam suas práticas e quais direitos defendem. Pode ocorrer de
suas ideias já se encaixarem nas vertentes teóricas feministas existentes,
havendo apenas uma mudança no método de atuação. Também é possível que suas
ideias sejam na verdade um machismo disfarçado, regulando e limitando a vida
das mulheres.
Nem todo movimento de mulheres é feminista
A primeira observação a ser feita quando se fala de
feminismo é que nem todo movimento de mulheres é feminista. Elas podem se
associar para lutar por uma causa em comum que nada tem a ver com mulheres, ou
que não interfira nos direitos das mulheres. Mulheres que lutam contra a
carestia/inflação (como as fiscais do Sarney na década de 1980) não estão
lutando pelos direitos das mulheres. Poderiam questionar por que a
responsabilidade por alimentar a família é somente da mulher, mas não o
fizeram: sua luta é por uma mudança que interfere em seu cotidiano, sem
questionar seu papel na sociedade.
Há também os movimentos antifeministas, que
procuram restringir os direitos das mulheres, como é o caso das militantes contra
o aborto ou contra a prostituição. Também é o caso dos grupos que defendem que
as mulheres têm o direito de votar, mas que não devem se candidatar porque o
seu papel na sociedade é ser mãe e rainha do lar – e qualquer atuação política
significaria a negação de sua feminilidade. É bastante comum que esses
movimentos, normalmente vinculados a setores de direita, se intitulem
feministas (porque falam de direitos das mulheres) ou neofeministas (porque
pregam um “feminismo” de retorno aos papéis tradicionais). Mas são movimentos
antifeministas porque não respeitam a vontade das mulheres, procurando cercear
seus direitos e sua liberdade de escolher o que é melhor para suas vidas.
Para se afirmar que um movimento é feminista, é
necessário que ele seja um movimento que procure questionar o papel das
mulheres na sociedade e que atue para ampliar os seus direitos. Cabe lembrar
que historicamente as mulheres foram consideradas juridicamente incapazes e
subordinadas aos homens. O que o movimento feminista faz é lutar para que as
mulheres obtenham os mesmos direitos que os homens já têm desde o início do
século XIX. Para fazer isso, é necessário que haja uma mudança jurídica que
proporcione a igualdade de gênero. Porém, os posicionamentos ideológicos dos
grupos feministas variam, produzindo resultados diferentes em relação aos
direitos das mulheres.
Os feminismos sob a ótica jurídica
As tendências teóricas jurídicas sobre o feminismo
podem ser resumidas em quatro grupos distintos: feminismo liberal, feminismo da
diferença, feminismo da dominação e feminismo pós-moderno.
O feminismo liberal considera as pessoas como
autônomas e enfatiza valores como igualdade e racionalidade: homens e mulheres
são seres humanos e igualmente dotados de razão, por isso devem ter as mesmas
oportunidades e direitos iguais. Como historicamente as mulheres tinham menos
direitos que os homens, o feminismo liberal procura corrigir isso lutando para
que a categoria mulher obtenha os mesmos direitos que a categoria homem
(entendida como o modelo jurídico por excelência), obtendo-se a igualdade
jurídica.
O feminismo da diferença, ou feminismo cultural,
considera que a igualdade na forma da lei não é suficiente, pois há
características que tornam homens e mulheres diferentes. Essas características são
invisibilizadas pela presunção de neutralidade de gênero das leis que regem a
igualdade jurídica. Para que o Direito não prejudique as mulheres, é necessário
reconhecer essas diferenças e tratar as pessoas respeitando as diferenças
biológicas e culturais entre homens e mulheres.
O feminismo da diferença também recebeu
contribuições de outros grupos, especialmente feministas negras e feministas
lésbicas, caracterizando o reconhecimento da diversidade. A crítica geral é que
o termo “mulher”, aplicado de forma genérica, se refere à mulher branca
cisgênera heterossexual de classe média/alta, encobrindo diferentes recortes
como orientação sexual, raça/etnia, geração e classe social. Cisgênero, aqui, é
o termo que designa a pessoa que se identifica com o sexo ou gênero que lhe foi
atribuído no nascimento; transgênero é o termo para quem não se identifica com
essa atribuição. Para contemplar as experiências específicas das mulheres que
não pertencem ao genérico e limitador “mulher” no singular, passou-se a estudar
a diversidade de mulheres e a intersecção entre essas experiências.
Em casos concretos, a abordagem do feminismo
liberal e a do feminismo da diferença são bem distintas. Na gravidez, por
exemplo, feministas liberais consideram que o tratamento a ser dado é o mesmo
de quadros de deficiência física ou mental, mas em caráter temporário. As
feministas da diferença consideram que a gravidez é uma situação que diferencia
homens e mulheres, visto que ocorre somente em mulheres, e que por isso merece
política de proteção específica que realce e valorize essa diferença.
O terceiro grupo é o do feminismo radical, ou
teoria da dominação. Ele analisa a situação das mulheres na sociedade com base
na concepção de que a discriminação que as mulheres enfrentam é causada pela
dominação masculina. A sociedade é patriarcal, sendo mantida por instituições
sociais e jurídicas que legitimam uma relação de dominação: os homens são
privilegiados e as mulheres são subordinadas a eles. É uma vertente teórica que
trouxe muitas inovações, como a percepção do caráter masculino do Direito (ao
afirmar que as leis são criadas por homens cisgêneros brancos e ricos para
atender a seus interesses), além de mudanças no tratamento da violência contra
mulheres cisgêneras, sendo responsável pela criação de legislação sobre o
assédio sexual. Sua intersecção com o marxismo fundamenta os movimentos
feministas anticapitalistas.
Porém, por mais influente que o movimento do
feminismo radical possa ser, ele também recebe críticas por ter um viés muito conservador
em relação à sexualidade. Ao entender que as mulheres são sempre vítimas,
posicionam-se contra a pornografia e a prostituição, procurando aprovar uma
legislação antipornografia e proibir a prostituição (ao invés de legalizá-la
para acabar com o estigma da profissão, como querem as prostitutas). Em casos
mais recentes, procuram também regular o comportamento masculino ao pretenderem
criminalizar o cliente da prostituta.
Essas posturas se aproximam do discurso
antifeminista de direita, que julga o comportamento das mulheres em relação à
moral e aos bons costumes, dividindo-as entre as não prostitutas, que têm
direito a voz e opinião, e as prostitutas, vistas como pobres vítimas que não
reconhecem a própria opressão e que, por isso, têm opiniões distorcidas,
precisando ser tuteladas. Obviamente, trata-se de um absurdo: regular as
escolhas e sexualidade alheia não melhora em nada os direitos e a situação das
mulheres. Muito ao contrário, limita sua liberdade, retira a proteção estatal e
aumenta os riscos e problemas enfrentados pelas mulheres que trabalham com
pornografia e prostituição.
O feminismo pós-moderno questiona e desconstrói os
conceitos modernos relacionados a sexo, gênero e sexualidade ao considerar que
esses conceitos não são neutros, mas construções sociais usadas para transmitir
e manter hierarquias e papéis de gênero. Aqui não se fala somente em mulheres,
mas em relações de gênero e construção/desconstrução de identidades. A
heteronormatividade e o binarismo homem-mulher também são questionados, abrindo
espaço para outras construções sociais que não se limitam aos papéis
tradicionalmente atribuídos a homens ou mulheres e definidos de forma estanque,
como feminilidade ou masculinidade.
A atuação jurídica dessa vertente subverte
completamente conceitos arraigados. Questiona-se a neutralidade do direito pelo
fato de a lei incorporar valores religiosos (desrespeitando o Estado laico)
para restringir direitos de mulheres, homossexuais e transexuais. Critica-se o
casamento como um contrato de união de apenas duas pessoas heterossexuais (por
que não mais de duas?), bem como a impossibilidade de casamento e adoção por
homossexuais. Ao questionar a definição do conceito mulher (em oposição a
homem) e lembrar que se trata de uma construção calcada em um binarismo
biológico que não é neutro, discute papéis de gênero e critica fortemente o
tratamento jurídico concedido a quem não se enquadra nesse modelo binário e
excludente, como é o caso da incorporação de duvidosos conceitos de
masculinidade e feminilidade adotados pela medicina para patologizar
transexuais e negar-lhes direitos.
Novos métodos para lidar com velhas reivindicações
Nota-se que o feminismo, tal como é genericamente
descrito, não dá conta de abarcar todos esses grupos teóricos. Como dentro
desses grupos há subgrupos com demandas e críticas específicas, torna-se óbvio
que não estamos falando de feminismo, mas de feminismos.
Em todas essas vertentes, está nítido o interesse
em manter e ampliar os direitos das mulheres, cisgêneras ou transgêneras,
possibilitando a elas uma vida com menos amarras, com menos intervenção estatal
para restringir seu cotidiano.
As pautas parecem mudar, mas no fundo estamos
falando do mesmo movimento feminista. Ele se adaptou para acompanhar as
mudanças advindas dos direitos conquistados. Não se luta mais para obter o
direito de voto para mulheres, mas para ampliar a participação das mulheres na
política, visto que elas são 52% da população, mas menos de 10% no Congresso
Nacional. Não se luta mais para que a mulher tenha o direito de guarda dos
filhos (que no século XIX era exclusiva do marido) ou pelo direito ao divórcio
(obtido em 1977), mas pela liberdade de romper um relacionamento e pela
coparticipação dos responsáveis na criação e guarda dos filhos.
E há pautas que continuam as mesmas, e são mantidas
pelo movimento feminista, como as relacionadas à igualdade de salários (a
desigualdade já foi de mais de 50%; hoje, mulheres recebem 30% a menos que
homens), à violência e à liberdade sexual. Nos anos 1970 e 1980, as feministas
afirmavam “quem ama não mata”; hoje a Marcha das Vadias mantém esse slogan e
acrescenta “se ser livre é ser vadia, então somos todas vadias”. Em ambos os
exemplos, a discussão é sobre o desrespeito à vontade das mulheres, que ainda
são assassinadas porque não quiseram continuar um relacionamento afetivo. O
enfoque mudou para reforçar o direito da mulher a escolher seus
relacionamentos, mas a luta pela liberdade das mulheres é a mesma.
Os métodos de atuação dos grupos se modificam, mas
a preocupação com os direitos das mulheres se mantém. Se antes a luta era por
meio de mobilização para mudança legislativa e passeatas, hoje foi ampliada
para incluir a intervenção em políticas públicas, diversas formas de
comunicação (inclusive via internet) e passeatas caracterizadas pela ironia e
irreverência.
Quando se fala de feminismos e de uma nova geração
feminista, é necessário atentar para os direitos que estão sendo discutidos. Se
é uma restrição, relegando as mulheres ao papel tradicional de símbolo sexual,
mãe, esposa e dona de casa, trata-se de um movimento antifeminista, e não há
rótulo como neofeminismo ou pós-feminismo capaz de modificar o fato de que
estão limitando as possibilidades de vida para as mulheres. Se são usados novos
métodos para velhas reivindicações, ampliando e consolidando direitos, estamos
falando do movimento feminista. O mesmo que, desde o início do século XX, luta
para melhorar a vida das mulheres, ampliando seus direitos e suas
possibilidades de escolher o que é melhor para sua vida.
Cynthia Semíramis – 18.11.2012
In
“Revista Forum” – http://revistaforum.com.br/blog/2012/11/feminismos-neofeminismo-e-a-luta-pelos-direitos-das-mulheres/