o sectarismo do debate gera um processo que se retroalimenta, acirrando cada vez mais os posicionamentos, turvando percepções e reduzindo o espaço para que, no futuro, produza-se uma interlocução honesta entre ideias e interesses divergentes.
Cláudio Gonçalves Couto
Episódios ocorridos no último mês suscitaram intenso debate em nossa
imprensa escrita, falada e televisiva, assim como no mundo virtual das redes e
blogs. Começam com a vinda da blogueira cubana Yoani Sánchez ao Brasil,
passando pela morte do presidente venezuelano, Hugo Chávez, e terminando com a
eleição do cardeal argentino, Jorge Mario Bergoglio, ao papado.
Afora a coincidência de termos a agenda pública capturada por temas
relacionados a nossos vizinhos da América Latina, o que se destacou nesse
debate foi o viés maniqueísta de boa parte dos posicionamentos. Com
interlocutores assumindo sinais trocados em cada um dos casos, a percepção de
nuances, o sopesamento de aspectos e a capacidade crítica cederam lugar ao
simplismo, ao exagero e à convicção cega. A construção fácil de heróis e vilões
tornou-se, assim, não apenas produto do sectarismo que animou boa parte dos
debatedores; ela também serviu como instrumento para o ataque a adversários
políticos e/ou ideológicos, estabelecendo implícita ou explicitamente nexos
entre eles e os espantalhos surrados.
Se tal fuga da sensatez ficasse restrita às bobagens que se diz em mesa
de botequim, ou, no atual contexto, nos posts e comentários das redes sociais e
blogs, até que estaríamos bem. O problema é que parte desse Fla-Flu
argumentativo partiu das perguntas, análises e posicionamentos de jornalistas e
intelectuais que dispõem não só de audiência ampla, mas formam opiniões. E
mais: o sectarismo do debate gera um processo que se retroalimenta, acirrando
cada vez mais os posicionamentos, turvando percepções e reduzindo o espaço para
que, no futuro, produza-se uma interlocução honesta entre ideias e interesses
divergentes.
No caso de Yoani Sánchez, de um lado se viu sua transformação não só
numa heroína da liberdade (algo compreensível para qualquer dissidente que se
atrevesse a atacar abertamente um regime autoritário, como Cuba), mas numa
referência intelectual e jornalística de primeira grandeza. Enquanto isso, seus
detratores (os mais estridentes, além de autoritários, otários - já que
ajudaram a promovê-la) pintavam-na como uma traidora de seu país, cujas
motivações e existência seriam decorrentes exclusivamente do financiamento
recebido da CIA e da grande imprensa dos países ricos.
De um lado, faltou maior senso crítico, já que Yoani - embora articulada
- é pouco consistente e tem sérias dificuldades para dar respostas convincentes
a perguntas incômodas, como as que lhe foram feitas pelo intelectual francês
(claramente simpático ao regime cubano, mas nem por isso impertinente), Salim
Lamrani
(www.viomundo.com.br/entrevistas/salim-lamrani-um-bate-papo-com-yoani-sanchez.html).
De outro lado, revelou-se a incapacidade de simplesmente aceitar como legítimo
para Cuba algo que seus defensores advogam como indispensável para seus
próprios países: o direito de se opor ao governo, sejam quais forem as razões
para isso.
No caso da morte de Hugo Chávez, a divisão se deu entre os que o
pintaram como uma besta-fera, cuja emergência não teria qualquer justificativa,
e os que o descreveram como um imaculado redentor das massas desvalidas de
"Nuestra América". Chávez foi uma liderança de estilo autoritário,
cuja entrada na política de seu país se deu por uma tentativa de golpe militar
e que perpetrou ações claramente voltadas a manietar a possibilidade de uma
oposição realmente competitiva na Venezuela (como na retirada de competências
dos governos subnacionais, após vitórias oposicionistas em eleições locais).
Contudo, estava longe de ser, como afirmaram alguns intelectuais, um líder
totalitário (qualificativo válido para poucos e muito maus, como Hitler, Stálin
e Mao). Da mesma forma é estarrecedor que jornalistas, ao questionarem
analistas sobre o futuro da Venezuela pós-Chávez, limitem-se a questionar
quando será possível consertar as coisas - como se tratasse apenas disso.
Chávez emergiu num país marcado por um dos mais longevos regimes
democráticos da América Latina, porém politicamente oligarquizado e
economicamente capturado por uma ínfima parcela da população, beneficiária das rendas
petroleiras. É a mudança socioeconômica gerada pelos seus anos no governo
(reduzindo a pobreza de mais de 50% para menos de 30% da população) o grande
fator a explicar sua popularidade e seus seguidos sucessos eleitorais - em
eleições limpas, como atestaram observadores internacionais. Por outro lado,
isto se tornou razão suficiente para que seus apoiadores fizessem vista grossa
à perseguição de opositores em processos judiciais estapafúrdios (veja-se o
caso de Teodoro Petkoff), as mudanças de regras eleitorais e de competências
governamentais, o culto à personalidade, a cassação de concessões de rádio e TV
etc.
Isso tudo para não mencionar situações ridículas, tais quais as
constantes alegações de Chávez, de que o governo americano pretendia matá-lo (como
Bin-Laden?), o que deu azo a seus continuadores afirmarem ter sido até mesmo
seu câncer inoculado pelos Estados Unidos - expulsando o adido militar
americano ao anunciar tal disparate. Os emuladores brasileiros de Chávez fazem
vista grossa a estas coisas, que não tolerariam se proviessem de outros
governos e líderes - mesmo que de forma atenuada. Fazem também um enaltecimento
infantilizado do caudilho morto, adotando mesmo o espanhol como língua
revolucionária, ao chama-lo de "el comandante". Nada mais distante da
capacidade crítica.
O discurso polarizado não é anormal nas democracias. É de se esperar sua
ocorrência, sobretudo em períodos eleitorais, quando os apoiadores de um
candidato ou partido decerto não optarão por analisá-lo criticamente, deixando
a seus adversários a incumbência de fazê-lo. O problema aparece quando tal
procedimento vem travestido de objetividade jornalística ou acadêmica, mediante
a construção das falácias do homem de palha: faz-se uma caricatura do que se
pretende criticar e se critica a caricatura, dizendo-se porém que se trata do
caricaturado - leviandade que agrada certo público.
Cláudio Gonçalves Couto - Cientista político, professor da FGV-SP – 15.03.2013
IN Valor Econômico - http://www.valor.com.br/politica/3046238/o-debate-maniqueista