quinta-feira, 12 de março de 2015

A história de um naufrágio

I.

É preciso olhar de frente e sem ilusões: a social-democracia e o socialismo europeus acabaram.

José Luís Fiori
É preciso olhar de frente e sem ilusões: a social-democracia e o socialismo europeus acabaram. Acabaram como utopia, como ideologia e como projeto político autônomo. De forma inglória, na Itália, Grécia, Portugal e Espanha, e de forma desastrosa, na França de Françoise Hollande, com sua xenofobia e seu “belicismo humanitário”; e na Alemanha, dos governos de coalisão e da submissão social-democrata, ao conservadorismo de Angela Merkel, com sua visão “germanocentrica” e hierárquica da União Europeia, e da sua relação com o mundo islâmico. Este espetáculo terminal, entretanto, inscreve-se numa longa história que começou no fim do século XIX, e atravessou várias “revisões” teóricas e estratégicas, e inúmeras experiências parlamentares e de governo, que foram alterando, progressivamente, através do século XX, os objetivos e a própria identidade do socialismo europeu, até chegar ao desastre atual.
Tudo começou em 1884, com a defesa de Eduard Bernstein, da necessidade de modificar ou reinterpretar algumas teses marxistas clássicas sobre a “luta de classes” e a “revolução socialista”, à luz das grandes transformações capitalistas das últimas décadas do século XIX, e das necessidades da luta eleitoral do partido social-democrata alemão, que era o mais importante da Europa, naquele momento.  Segundo Bernstein, o progresso tecnológico e a centralização e internacionalização do capital haviam mudado a natureza da classe operária e a própria dinâmica do sistema capitalista, cujo desenvolvimento histórico já não apontaria mais na direção  da “pauperização crescente”, da “crise final” e da “revolução socialista”.
(...)
José Luís Fiori Professor titular e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e autor do livro "O Poder Global", da Editora Boitempo, 2007 – 26.10.2013
IN Carta Maior.


II.

Os socialistas e os social-democratas europeus só perderam definitivamente o seu rumo e a sua identidade, depois do fim da União Soviética.

José Luís Fiori
“As the twentieth century was coming to a close, socialists could not but re-examine, yet again, the framework of their doctrine. They did so as they had always done: in a confuse and unco-ordinated manner, propelled by the contingency of everyday politics and the pressure of electoral consideration. They could not do otherwise. Moving forward is no guarantee of success. Standing still offers the certainty of defeat”.
Donald Sassoon (1997), One Hundred Years of Socialism, Fontana Press, London, p: 754     
Ao fazer o balanço do socialismo europeu, no início do século XXI, é possível extrair pelo menos três grandes ensinamentos de sua trajetória e de suas experiências governamentais, do século passado: 
i) A  sua identidade doutrinária foi sendo desmontada pelos próprios socialistas, através de sucessivas revisões teóricas, ideológicas e políticas de sua matriz originária, de inspiração marxista, feitas sempre em nome das “transformações do capitalismo”, e das exigências da “luta eleitoral”. Mas a lenta e progressiva “desconstrução” desta matriz não deu lugar à nenhuma outra teoria com a mesma capacidade marxista de definir objetivos, atores e estratégias, a partir de um diagnóstico de longo prazo das tendências críticas do capitalismo. Pelo contrário, estas sucessivas revisões foram criando uma verdadeira “colcha de retalhos”, que foi sendo tecida de forma pragmática, como resposta aos desafios imediatos, e como justificativa de decisões políticas conjunturais, cada vez mais contraditórias, com relação aos objetivos iniciais dos socialistas.
José Luís Fiori Professor titular e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e autor do livro "O Poder Global", da Editora Boitempo, 2007 – 12.11.2013
IN Carta Maior.