domingo, 15 de março de 2015

Medos privados em lugares públicos: homem cordial assombra biografias


"Raízes do Brasil", publicado por Sérgio Buarque de Holanda há quase 80 anos, diagnosticou na cordialidade a rede de relações privadas que comanda a cena pública do país. O homem cordial, símbolo da fluidez entre as duas esferas, reaparece no debate sobre as biografias ao reivindicar para seus desejos o amparo da lei.

Heloisa Starling e Lilia Moritz Schwarcz
No Brasil, a vida privada ocupa ainda hoje o papel de nossa principal referência. A interpretação mais frequente desse fenômeno aposta na ideia de que a ancoragem no privado é sinal de maturidade democrática. O suposto é que essa expansão democrática se sustenta em direitos e, uma vez que os direitos são respeitados, não há motivo para maior preocupação.
Tal abordagem converge com o fortalecimento da ideia do indivíduo como personagem de si mesmo e tem sido recorrente para explicar tanto a importância que atribuímos a certa escrita autorreferencial quanto para sustentar o argumento de que só quem viu, sentiu e experimentou pode registrar a verdade dos fatos vividos.
Visto pela perspectiva do mundo privado, cada um de nós seria, ao mesmo tempo, autor e editor de uma escrita de si: apenas o indivíduo --e sua memória-- seria capaz de ordenar, rearranjar e significar o trajeto de uma vida no suporte de um texto e disso criar uma narrativa; e apenas ele, que conhece a autenticidade de suas ações e emoções, estaria autorizado a expressá-las para si e para os demais.






Heloisa Starling – Professora titular de história da UFMG;  Lilia Moritz Schwarcz – Professora titular de antropologia da USP – 03.11.2013

IN Folha de São Paulo, Ilustríssima.