domingo, 26 de abril de 2015

A corrupção assassina



não é verdade que todos os atos de corrupção se equivalem. Sim, é errado agradar o policial ou o atendente, mas montar um "clube" para furtar centenas de milhões de dólares da Petrobras é coisa muito diferente. Não é apenas uma questão de tamanho. É uma diferença de concepção. Os pequenos erros morais de cada dia não estão na mesma lógica do assalto organizado aos cofres públicos.
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Mas penso que precisamos distinguir o furto do bem privado e o desvio do bem público. A ideia de que o corrupto é "ladrão", tão pertinaz em nossa sociedade, se inspira na sua comparação com quem furta indivíduos. Mas as vítimas do corrupto não são individuais, são a sociedade inteira. Daí que, talvez, seja mais correto pensar que eles não se limitam a furtar dinheiro (no caso, público), mas - acima de tudo - impeçam o bom uso desse dinheiro, por exemplo, em saúde, educação, outros serviços essenciais. Impedem que doentes sejam salvos, em hospitais que não deixaram existir ou funcionar. Impedem que crianças e adolescentes sejam educados, em escolas que devido a eles não existem ou não funcionam. Seu crime é contra a vida, que eles abreviam ou mutilam. Abreviada, a vida dos que morrem antes da hora. Mutilada, a dos que vivem mal. Por que não considerar assassinos os corruptos? Pelo menos, no nível simbólico.

Renato Janine Ribeiro
Já escrevi aqui sobre a corrupção, porém não gosto de me repetir, nem de me limitar à indignação. Mas vale a pena, no curso das operações Lava-Jato e Juízo Final, firmar alguns pontos fundamentais.
Primeiro: "república" é coisa pública, bem comum. A conduta mais antirrepublicana que há é vulnerar, atacar, destruir o bem comum. Ou seja, nada é mais inimigo da república do que a corrupção, que privatiza ilegalmente o que pertence a todos. É um erro, que devemos à escola, pensar que o contrário da república é a monarquia. Distinguir repúblicas e monarquias é coisa do século XIX, quando estas últimas eram o que hoje chamamos de ditaduras.
Desde a vitória dos Aliados na II Guerra Mundial, quase todas as monarquias são constitucionais. As monarquias escandinavas visam mais o bem comum do que muitas "repúblicas" do resto do mundo. Devolvamos à República seu sentido forte: há república quando se visa o bem comum. Ser contra a república não é questão de opinião, de achar bonito um rei. É crime, é praticar atos desviando de sua finalidade o viver em comum.
Segundo: na América Latina nos acostumamos ao patrimonialismo, uma das versões ibéricas do que hoje chamamos corrupção. Consiste em o governante tratar a coisa pública como se fosse seu patrimônio privado. Toda confusão do público e do privado, quando favorece o detentor do poder político, vai dar em patrimonialismo. Por exemplo, se um governante usa os carros oficiais para transportar familiares (a não ser que haja razões claras, consensuadas, de segurança para tal). Nossos governadores e presidente, que moram em palácios e não gastam nem com a comida ou a roupa, dão exemplo disso. Mas este é só um detalhe.
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Renato Janine Ribeiro – Professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo – 24.11.2014
IN Valor Econômico, ed. impressa.