Diferentemente
dos saudosos do regime civil-militar, a esquerda que eu conheço, com a qual me
identifico e sempre me identificarei, apoia as comissões da verdade, para que
as atrocidades não voltem a acontecer. E não, a esquerda que eu conheço não
ignora as atrocidades dos regimes comunistas e não milita em sua defesa. Não
relativiza os crimes de Stálin nem coloca Fidel Castro entre Cristo e o
Império. Ela tem a plena noção do anacronismo de um regime fechado, boicotado e
sufocado – e a solidariedade com a população local não a impede de rejeitar os
convites para se mudar para lá de mala e cuia. Nem de aceitar a sua ajuda no
atendimento básico em nossos rincões desprezados pelos doutores locais. O que
não faltam são motivos para ficar.
A
esquerda que eu conheço não tem saudade de quando podia trocar migalhas por
serviço braçal, e isso confere a ela uma outra diferença básica em relação à
direita: ela é menos apegada a alguns imperativos aparentemente inegociáveis.
Por exemplo, a maioria deles não quer ser servida por empregados. Não quer
enriquecer. Não quer morrer sufocada na mesma empresa. Não quer se enforcar
para pagar o carro ou a viagem do ano. Carro, aliás, não é assunto nem fetiche:
é um meio. Um meio, se possível, dispensável. Assunto mesmo é espaço público,
direito à cidade, humanidade das calçadas. Por isso seus militantes vão às ruas
quando o sistema de transporte coletivo falha ou quando ciclistas são atropelados
como se fossem papel. Não significa que não gostem de carros nem de viagens nem
de bons restaurantes: apenas querem que todos caminhem e que todos se
alimentem. Privilégio, para eles, é ofensa, não meta de vida. Segurança não é
paranoia para justificar a própria demofobia. Ou a misoginia.
A
eleição de 2014 parece ter dado um nó na cabeça de meio mundo. Meio mundo
literalmente. Na campanha, o candidato favorito de certa direita – a que faz
troça sobre política distributiva e pede a construção de muros para anular
desigualdades – tinha como compromisso a manutenção e o aperfeiçoamento dos
programas sociais. Derrotada nas urnas, parte dos eleitores, com o calendário
de 1963 colado na parede, pediu socorro aos militares e aos EUA – onde, por
acaso, o presidente se bateu para universalizar o acesso à saúde pública e é
chamado de comunista. Tomou dois sonoros “pedala”.
O nó
ficou maior quando a candidata de esquerda recém-reeleita passou a busca no
mercado um nome para compor seu Ministério da Fazenda. Ou quando o seu Banco
Central, e não o dos adversários, elevou a taxa básica de juros para frear a
inflação. A mesma presidenta, ao voltar de férias, teceu elogios ao neoaliado
PSD, partido criado por Gilberto Kassab, que já declarou não ser nem de direita
nem de esquerda nem de centro nem muito pelo contrário.
Os
sinais trocados são amostras de um período que, na melhor das hipóteses,
dissolve a narrativa entre progressistas e conservadores, e, na pior, coloca
esquerda e direita no mesmo balaio. A sensação é enganosa, e demonstra a
urgência de se definir posições para além dos rótulos.
(...)
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Matheus
Pichonelli - Jornalista e cientista social –
05.11.2014
IN Yahoo notícias.