Rancière - As redes sociais não resolvem tudo por
elas mesmas. Nós sabemos que todas as forças políticas, mesmo as mais
reacionárias, utilizam esse meio para difundir suas ideias. Dito isso, o
importante nas redes sociais é a possibilidade de criar formas de discussão e de
reunião independentes em relação aos partidos políticos e aos sindicatos
tradicionais. (...) as redes sociais produziram formas de discussão que também
estão deslocadas em relação à lógica tradicional da reivindicação e da ação
reivindicativa. Penso, por exemplo, no que se passou na Turquia, onde a questão
de permitir ou não que se abatessem árvores num parque se transformou numa
discussão sobre o espaço público. A questão do espaço público tem sido
recolocada por meio da junção entre o espaço concreto material - a praça, a rua
que é ocupada - e essas redes sociais, que desempenham o papel de local de
discussão. Então não há uma simples dispersão, mas uma nova lógica de
discussão. Nos movimentos políticos ligados às redes sociais, os debates não
estão mais concentrados em objetivos precisos de ação e na escolha de uma
estratégia determinada para obtê-los. Há uma espécie de transbordamento da
exigência de discussão e, por consequência, formas de dispersão em relação às
reivindicações diretas. Mas isso é ao mesmo tempo um sinal de que, através
destas - quer seja impedir a transformação de um jardim em supermercado e em
caserna ou o aumento das tarifas de transporte, como foi o caso no Brasil -,
uma exigência democrática bem mais ampla se manifesta. Nessas situações, a
necessidade de refletir sobre o que se passa e de inventar novas formas de
comunicação ocupa o primeiro plano em detrimento de objetivos precisos.
Patrícia Lavelle
Jacques Rancière é um filósofo do presente. E isso não quer dizer apenas
que, aos 74 anos, continua escrevendo como nunca. Significa também que seu
pensamento é profundamente ligado a questões e problemas atuais, seja o
fortalecimento dos partidos de extrema-direita na Europa ou os novos movimentos
políticos ligados às redes sociais.
"O Ódio à Democracia", livro agora lançado no Brasil, parte da
análise da sociedade contemporânea para refletir sobre a crise nas democracias
representativas. "O Fio Perdido", seu último ensaio sobre a ficção
moderna publicado neste ano, tematiza os efeitos políticos positivos das
transformações na literatura. O pensador recebeu a reportagem em seu
apartamento parisiense para esta entrevista. Discípulo dissidente de Louis Althusser
(1918-1990), o ex-professor da Universidade de Paris 8 associa arte e política
ao elaborar o conceito de democracia estética que relaciona a manifestações
políticas alternativas. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista
concedida ao Valor:
Valor – Como o senhor vê o
fortalecimento dos partidos de extrema-direita na Europa e a vitória do Front
National nas eleições para o Parlamento Europeu?
Jacques Rancière – É preciso evitar fazer do aumento
de poder da extrema-direita a causa da crise da democracia. Ao contrário, é
justamente porque as sociedades ditas democráticas o são cada vez menos que
assistimos a esse fortalecimento da extrema-direita, particularmente na França.
Aquilo que chamamos de democracia representativa corresponde de fato a uma oligarquia
com legitimação democrática. Trata-se de um regime fundado em lógicas
contraditórias. Ele repousa em princípio sobre o poder do povo, mas na verdade
é a cada vez mais confiscado por oligarquias burocráticas ligadas às grandes
fortunas. Consequentemente, a realidade de um poder do povo é cada vez mais
limitada e sua ideia se torna problemática. Em razão da mundialização e da
crise econômica, nos encontramos supostamente numa situação em que tudo deve
ser objeto do cálculo de um expert. Assim, há um agravamento da contradição
estrutural de nosso regime e, portanto, um distanciamento de toda ideia e de
toda prática de um poder do povo. A reação mais espetacular a isso foi o
fortalecimento de forças conservadoras capazes de reivindicá-lo para si.
Valor – Como assim?
Rancière – Não explicamos a vitória do Front National
simplesmente com a pressuposição de que o aumento da imigração traz o racismo e
a xenofobia. Essa força subiu porque pôde dizer "direita ou esquerda é a
mesma coisa" já que nos confrontamos com um sistema de confiscação do
poder por uma pequena oligarquia burocrática. É com a ideia de dar novamente
poder ao povo que a extrema-direita francesa ganhou as eleições, recrutando
eleitores até mesmo na classe operária, que votava tradicionalmente no Partido
Comunista. Acredito que há na Europa um déficit de democracia cada vez mais
importante, e infelizmente a instância capaz de encarnar uma força popular foi
a extrema-direita.
(...)
Para
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Patricia
Lavelle – Doutora em filosofia
pela École de Hautes Études en Sciences Sociales – 08.11.2014
Jacques
Rancière – Filósofo francês, professor emérito da Paris VIII.
IN Valor Econômico, versão impressa.