terça-feira, 7 de abril de 2015

Um filósofo do presente


Rancière - As redes sociais não resolvem tudo por elas mesmas. Nós sabemos que todas as forças políticas, mesmo as mais reacionárias, utilizam esse meio para difundir suas ideias. Dito isso, o importante nas redes sociais é a possibilidade de criar formas de discussão e de reunião independentes em relação aos partidos políticos e aos sindicatos tradicionais. (...) as redes sociais produziram formas de discussão que também estão deslocadas em relação à lógica tradicional da reivindicação e da ação reivindicativa. Penso, por exemplo, no que se passou na Turquia, onde a questão de permitir ou não que se abatessem árvores num parque se transformou numa discussão sobre o espaço público. A questão do espaço público tem sido recolocada por meio da junção entre o espaço concreto material - a praça, a rua que é ocupada - e essas redes sociais, que desempenham o papel de local de discussão. Então não há uma simples dispersão, mas uma nova lógica de discussão. Nos movimentos políticos ligados às redes sociais, os debates não estão mais concentrados em objetivos precisos de ação e na escolha de uma estratégia determinada para obtê-los. Há uma espécie de transbordamento da exigência de discussão e, por consequência, formas de dispersão em relação às reivindicações diretas. Mas isso é ao mesmo tempo um sinal de que, através destas - quer seja impedir a transformação de um jardim em supermercado e em caserna ou o aumento das tarifas de transporte, como foi o caso no Brasil -, uma exigência democrática bem mais ampla se manifesta. Nessas situações, a necessidade de refletir sobre o que se passa e de inventar novas formas de comunicação ocupa o primeiro plano em detrimento de objetivos precisos.

Patrícia Lavelle
Jacques Rancière é um filósofo do presente. E isso não quer dizer apenas que, aos 74 anos, continua escrevendo como nunca. Significa também que seu pensamento é profundamente ligado a questões e problemas atuais, seja o fortalecimento dos partidos de extrema-direita na Europa ou os novos movimentos políticos ligados às redes sociais.
"O Ódio à Democracia", livro agora lançado no Brasil, parte da análise da sociedade contemporânea para refletir sobre a crise nas democracias representativas. "O Fio Perdido", seu último ensaio sobre a ficção moderna publicado neste ano, tematiza os efeitos políticos positivos das transformações na literatura. O pensador recebeu a reportagem em seu apartamento parisiense para esta entrevista. Discípulo dissidente de Louis Althusser (1918-1990), o ex-professor da Universidade de Paris 8 associa arte e política ao elaborar o conceito de democracia estética que relaciona a manifestações políticas alternativas. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Valor:
Valor – Como o senhor vê o fortalecimento dos partidos de extrema-direita na Europa e a vitória do Front National nas eleições para o Parlamento Europeu?
Jacques Rancière – É preciso evitar fazer do aumento de poder da extrema-direita a causa da crise da democracia. Ao contrário, é justamente porque as sociedades ditas democráticas o são cada vez menos que assistimos a esse fortalecimento da extrema-direita, particularmente na França. Aquilo que chamamos de democracia representativa corresponde de fato a uma oligarquia com legitimação democrática. Trata-se de um regime fundado em lógicas contraditórias. Ele repousa em princípio sobre o poder do povo, mas na verdade é a cada vez mais confiscado por oligarquias burocráticas ligadas às grandes fortunas. Consequentemente, a realidade de um poder do povo é cada vez mais limitada e sua ideia se torna problemática. Em razão da mundialização e da crise econômica, nos encontramos supostamente numa situação em que tudo deve ser objeto do cálculo de um expert. Assim, há um agravamento da contradição estrutural de nosso regime e, portanto, um distanciamento de toda ideia e de toda prática de um poder do povo. A reação mais espetacular a isso foi o fortalecimento de forças conservadoras capazes de reivindicá-lo para si.

Valor – Como assim?
Rancière – Não explicamos a vitória do Front National simplesmente com a pressuposição de que o aumento da imigração traz o racismo e a xenofobia. Essa força subiu porque pôde dizer "direita ou esquerda é a mesma coisa" já que nos confrontamos com um sistema de confiscação do poder por uma pequena oligarquia burocrática. É com a ideia de dar novamente poder ao povo que a extrema-direita francesa ganhou as eleições, recrutando eleitores até mesmo na classe operária, que votava tradicionalmente no Partido Comunista. Acredito que há na Europa um déficit de democracia cada vez mais importante, e infelizmente a instância capaz de encarnar uma força popular foi a extrema-direita.
(...)
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Patricia Lavelle – Doutora em filosofia pela École de Hautes Études en Sciences Sociales – 08.11.2014
Jacques Rancière – Filósofo  francês, professor emérito da Paris VIII.
IN Valor Econômico, versão impressa.