sexta-feira, 29 de abril de 2016

O sujeito oculto


Como as agências de comunicação cultivam relações com jornalistas, fazem o lobby dos governos e da iniciativa privada, e influenciam o que é publicado na imprensa. (…)
As agências de comunicação, ou de public relations (PR), como a FSB Comunicações, são uma versão anabolizada – e muito mais sofisticada desde que a internet mudou o mundo – das antigas assessorias de imprensa. Começaram a tomar corpo nos anos 90 e tiveram um crescimento exponencial na última década. Estima-se que hoje sejam 600 empresas no país – de todo porte. Segundo a Mega Brasil,que publica um Anuário da Comuncação Corporativa, referência do setor, o faturamento global, no ano passado, foi de 2,3 bilhões de reais, um crescimento da ordem de 20% em relação a 2013.

Luiz Maklouf Carvalho
“Alô, de onde fala?”
“Da FSB.”
“Faca, sapo, bola?”
“Não. Francisco Soares Brandão.”
FSB é um senhor baixinho e grisalho de 66 anos, expressão ranzinza e óculos redondos de aro vermelho que lhe conferem um ar publicitário dos anos 80. Sentado à cabeceira de uma grande mesa de reuniões, não achou graça ao ouvir do repórter a menção ao telefonema do “faca, sapo, bola”. Limitou-se a explicar que, diante de perguntas do gênero, as telefonistas são orientadas a responder com o seu nome. “Na FSB, tudo tem orientação, disse o dono das consoantes. “Eu sou um sujeito obsessivo com a organização, não teria feito esse negócio se não fosse.
“Esse negócio”, que este ano completa 35 anos, é a maior agência de comunicação do Brasil. Tem cerca de 700 funcionários e 200 clientes, entre os quais meia dúzia de ministérios, estatais como a Petrobrás, os governos estadual e municipal do Rio, além de algumas outras prefeituras, como de Campinas, e dezenas de grandes empresas do setor privado. Sua sede de 1200 metros quadrados fica em Ipanema, na Zona Sul do Rio de Janeiro, a duas quadras da praia. Tem filiais em São Paulo e Brasília (a de Belo Horizonte irá fechar no final do ano, além de um escritório em Nova York. Fatuou declarados 201 milhões de reais no ano passado – mais da metade no setor público, um crescimento de 25% em relação a 2013. Nesse atrapalhado 2015, estima crescer uns 15%.
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Luiz Maklouf Carvalho – dezembro de 2015.
IN Revista Piauí, n. 111.

terça-feira, 26 de abril de 2016

Feminismo negro: violências históricas e simbólicas


O pensamento feminista negro coloca a mulher negra no centro do debate, não somente em termos de produção e análise, mas no sentido de privilegiar o lugar que a mulher negra ocupa na estrutura social. Para além da compreensão de que as desigualdades devem ser objetos de produção de conhecimento reflexivo e crítico dá espaço às vozes que foram historicamente silenciadas, as vozes das mulheres negras. 
(...)
Tirar essas pautas da invisibilidade é muito importante, um olhar interseccional é fundamental para que fujamos de análises simplistas ou para se romper com essa tentação de universalidade que exclui. A história tem nos mostrado que a invisibilidade mata.

Djamila Ribeiro
É fundamental explicitar as grandes distâncias que ainda separam homens e mulheres e negros e brancos no Brasil. O retrato das desigualdades no Brasil mostra como racismo e sexismo são elementos estruturantes que mantém as violências históricas contra a população negra.
Para a compreensão desses fenômenos é necessário evidenciar a relevância de um conceito muito pouco discutido e disseminado no Brasil: a interseccionalidade. Esse conceito vem sendo desenvolvido por mulheres negras ativistas há mais de um século e recebeu maior atenção quando a crítica e teórica estadunidense Kimberlé Crenshaw o utilizou como centro de uma tese, em 1989, para analisar como raça, gênero e classe se interseccionam e geram diferentes formas de opressão.
“A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as conseqüências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras”. (CRENSHAW, 2002: 177)
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Djamila Ribeiro – 12.08.2015
IN A Ponte Jornalismo.


domingo, 24 de abril de 2016

Lei de drogas superlota penitenciárias

Legislação aprovada em 2012 é apontada como a principal razão do aumento de 77,5% da população penitenciária brasileira na década.

Luísa Martins
A atual lei de drogas é um dos principais fatores de aumento da população carcerária brasileira nos últimos anos. Promulgada em 2006 para que traficantes tivessem as punições intensificadas e usuários fossem encaminhados não à prisão, mas ao sistema de saúde, a nova lei tem surtido efeito contrário, superlotando as penitenciárias.
A conclusão é da pesquisa de doutorado defendida pelo sociólogo Marcelo da Silveira Campos e publicada na Biblioteca Digital da Universidade de São Paulo (USP). Não bastasse o fato de a população penitenciária brasileira ter aumentado 77,5% entre 2005 (antes de a lei ser implementada) e 2013, o pesquisador ainda descobriu que, entre os anos de 2004 e 2009, em São Paulo - especificamente nos bairros de Itaquera, na zona leste, e Santa Cecília, no centro -, uma pessoa flagrada portando drogas tinha quatro vezes mais probabilidade de ser incriminada por tráfico do que notificada por uso.
“Muitas vezes, usuários que deveriam ser enviados, segundo a lei, para unidades de saúde ou assistência social estão sendo deslocados para as prisões”, diz Campos, professor adjunto da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), em Mato Grosso do Sul.
De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, o porcentual de pessoas incriminadas por uso ou tráfico de drogas era de 13% em relação a toda população carcerária brasileira. Em 2014, subiu para 27%.
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Luísa Martins – 14.12.2015.
IN Estadão.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

O Nó Górdio


a crise expõe de maneira dramática o calcanhar de Aquiles há muitos anos detectável em nossa política: o financiamento de nossas campanhas eleitorais, principalmente as legislativas.
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Damos uma vantagem insuperável a quem conta com financiadores poderosos, num sistema precariamente governável pelos tribunais eleitorais, e fortemente inflacionário pela competição entre centenas de candidaturas individuais.
Só por milagre não produziríamos um jogo cada vez mais corrupto.

Bruno P. W. Reis
A premissa básica de quase toda narrativa ou caracterização da crise corrente é a existência de um monte de políticos corruptos em Brasília. Saída do nada, talvez de alguma propensão atávica, "cultural" dos brasileiros para a malandragem e a vigarice. Se quisermos no entanto nos livrar deste estado de coisas, ou superarmos a corrupção endêmica na retaguarda das campanhas eleitorais, temos de tomá-la não como dado da análise, mas como, ela mesma, o fenômeno a ser explicado. Insistir na tese da "crise moral" é antes sintoma de perplexidade intelectual, e nos condena a eternizar a bagunça. Precisamos endogeneizar a conduta dos políticos, dirá um metodólogo.
Não é difícil fazê-lo. Afinal, a elite política é rotineiramente selecionada em eleições periódicas, e suas características, bem como os traços básicos do quadro partidário, decorrerão das regras das eleições. Desde há uns vinte anos, a ciência política brasileira tem mostrado de maneira persuasiva (a nós e ao mundo todo) que, apesar do nosso hábito da autodepreciação, nosso sistema político era relativamente "normal" na operação do Congresso Nacional, com plenários preditíveis a partir de alinhamentos partidários, maiorias viáveis construídas com os recursos institucionalmente disponíveis para a Presidência da República e uma rede de instituições de controle apta a vigiar a conduta dos protagonistas.
Agora, porém, a formação de uma tempestade perfeita na interação desses atores, com crise política, econômica e investigação criminal incidindo ao mesmo tempo sobre nosso sistema político, tem abalado a fé de muitos na força do diagnóstico predominante. De fato, entendo que a crise expõe de maneira dramática o calcanhar de Aquiles há muitos anos detectável em nossa política: o financiamento de nossas campanhas eleitorais, principalmente as legislativas.
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Bruno P. W. Reis – Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFMG – 11.04.2016
IN Página do autor no Facebook .


terça-feira, 19 de abril de 2016

Os Panama Papers e a corrupção legalizada

  

A realidade que emerge dos Panama Papers é uma de divisão de classes, pura e simples. Eles demonstram como uma casta de ricos vive em um mundo separado em que regras diferentes se aplicam, em que o sistema legal e a autoridade policial são intensamente torcidos e não apenas protegem os ricos, mas estão prontos a sistematicamente moldar a lei para acomodá-los. (...)
Há já muitas reações da direita liberal aos Panama Papers que jogam a culpa nos excessos de nosso Welfare State (ou o que restou dele): afinal, como há tantos impostos, não é de surpreender que os proprietários tentem deslocar seus recursos financeiros para lugares com menos taxação, uma “planejamento tributário” que em última instância não chega a ser ilegal… 

Slavoj Žižek 
A única coisa verdadeiramente surpreendente do episódio dos “Panama Papers” é que sua revelação não trouxe nada de surpreendente: não aprendemos exatamente o que esperávamos aprender? Mas, é claro, uma coisa é saber de forma geral, outra é ter dados concretos do que se passava. É um pouco como descobrir que seu parceiro sexual está pulando a cerca – pode-se até aceitar o conhecimento abstrato do caso, mas a dor surge quando descobrimos os detalhes picantes, quando vemos as fotos do que estavam fazendo… então agora, com os Panama Papers, nos revelaram algumas das fotos obscenas da pornografia financeira, e não podemos mais fingir que não sabemos.
Em 1843, o jovem Marx já alegava que o ancien regime alemão “supõe apenas que acredita em si e pede a todo mundo para compartilhar a sua ilusão.” (Crítica da filosofia do direito de Hegel, p.148) Em uma situação como essa, envergonhar quem está no poder se torna uma arma – ou, nas palavras de Marx: “A pressão deve ainda tornar-se mais premente pelo fato de se despertar a consciência dela e a ignomínia tem ainda de tornar-se mais ignominiosa pelo fato de ser trazida à luz pública”. (p.148). E essa é exatamente nossa situação hoje: estamos diante do desavergonhado cinismo da atual ordem global cujos agentes apenas supõem que acreditam nas suas próprias ideias de democracia, direitos humanos, etc., e através de ações como as do WikiLeaks e revelações como os Panama Papers, a vergonha (nossa vergonha de ter tolerado tal opressão sobre nós) torna-se ainda mais vergonhosa ao ser publicizada.
Uma breve passada de olhos pelos documentos dos Panama Papers revela dois elementos sobressalientes, um positivo e outro negativo. O positivo é a amplamente abarcadora solidariedade dos participantes: no mundo das sombras do capital global, todos são irmãos, o mundo desenvolvido ocidental está lá, incluindo os incorruptíveis escandinavos, de mãos dadas com Putin e o Presidente Chinês Xi, Irã e a Coreia do Norte também estão lá, mulçumanos e judeus trocando olhares amigáveis – é um verdadeiro reino de multiculturalismo onde todos são iguais e todos são diferentes. O negativo: a dura ausência dos EUA, que dá certo respaldo às alegações Russas e Chinesas de que haviam interesses políticos particulares envolvidos na investigação.
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Slavoj Žižek – Filósofo e Psicanalista – 11.04.2016.
Artigo enviado pelo autor diretamente ao Blog da Boitempo. A tradução é de Artur Renzo.
IN Blog da Boitempo.


sábado, 16 de abril de 2016

Golpe ou instrumento legal?

 

Diferentemente do que ocorreu com Collor, o que está em jogo não é o uso de um instrumento constitucional para retirar uma presidente que cometeu um crime.

Felipe Loureiro, Lucia Del Picchia e Fernando Rugitsky
Um dos debates mais acirrados no atual cenário de polarização política é o da natureza do pedido de impeachment contra Dilma Rousseff. Enquanto diversos setores da sociedade, com ou sem identificação com o PT, caracterizam o processo como golpe, grupos da oposição, com apoio da grande mídia e de setores empresariais, argumentam que o impeachment seria um instrumento legal, previsto pela Constituição de 1988. Qual dos lados tem razão?
Para os defensores da legalidade do impedimento, a questão resolve-se por uma mera recorrência à História: se o processo de impeachment de Collor, em 1992, não foi considerado um golpe à época, por que o de Dilma, que se dará em um momento de maior consolidação das nossas instituições democráticas, o seria? A resposta é simples: porque os fatos e a cronologia que sustentam esses dois pedidos de impeachment são completamente distintos. 
O pedido de impedimento contra Collor foi feito em setembro de 1992 pelos presidentes da Organização dos Advogados do Brasil e da Associação Brasileira de Imprensa. A base do pedido foram as conclusões do relatório final da CPI que investigou durante três meses denúncias envolvendo o tesoureiro da campanha presidencial, Paulo César Farias. Assentada em farta documentação, a Comissão concluiu que Collor teria tido gastos pessoais pagos por empresas e contas-fantasmas alimentadas por PC Farias. No total, o esquema PC teria transferido 6,5 milhões de dólares para contas indiretamente vinculadas ao presidente, entre as quais a de sua secretária pessoal, sua mulher e sua mãe, para além de contas da empresa responsável pela reforma do jardim da residência presidencial. 
(...)



 

 

 

Felipe Loureiro - Professor do Instituto de Relações Internacionais da USP;
Lucia Del PicchiaDoutora em Direito pela USP e Procuradora do Município de São Paulo;
Fernando Rugitsky Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP04.04.2016
IN Carta Maior.

 




Se impeachment, então quem?

 

o impeachment de Dilma Rousseff está designado para proteger a corrupção, não para puni-la ou até acabar com ela –o retrato mais característico de uma plutocracia do que de uma democracia madura.
Impeachment é uma ferramenta legítima em todas as democracias, mas é uma medida extrema, que deve ser usada somente em circunstâncias convincentes de que há crimes cometidos pelo presidente da República e quando há provas concretas das ilegalidades. O caso do impedimento de Dilma não responde a nenhum desses dois critérios.

Gllen Greenwald e David Miranda
O fato mais bizarro sobre a crise política no Brasil é também o mais importante: quase todas as figuras políticas de relevância que defendem o impeachment da presidenta Dilma Rousseff –e aqueles que poderiam assumir o país no caso de um eventual afastamento da mandatária– enfrentam acusações de corrupção bem mais sérias do que as que são dirigidas a ela.
De Michel Temer a Eduardo Cunha, passando pelos tucanos Aécio Neves e Geraldo Alckmin, os adversários mais influentes de Dilma estão envolvidos em chocantes escândalos de corrupção que destruiriam a carreira de qualquer um numa democracia minimamente saudável.
Na verdade, a grande ironia desta crise é que enquanto os maiores partidos políticos do país, inclusive o PT, têm envolvimento em casos de corrupção, a presidenta Dilma é um dos poucos atores políticos com argumentos fortes para estar na Presidência da República e que não está diretamente envolvido em casos de enriquecimento pessoal.
Esses fatos vitais têm alterado radicalmente como a mídia internacional vê a crise política no Brasil. Durante meses, jornalistas norte-americanos e europeus retrataram de forma positiva as manifestações nas ruas, a investigação da Operação Lava Jato e as decisões do juiz federal Sergio Moro.
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Gllen Greenwald – Cofundador do site especializado em reportagens sobre política nacional e externa The Intercept, é vencedor do Prêmio Pulitzer de Jornalismo em 2014 e do Prêmio Esso de 2013;
David Miranda – Jornalista e ativista, é impulsionador do Tratado Snowden, proposta internacional de proteção à informação – 06.04.2016.
IN Folha de São Paulo (Republicado em Substantivo Plural).

quinta-feira, 14 de abril de 2016

André Singer: 'Domingo viveremos um episódio maior da luta de classes no Brasil'



Em debate na USP, ex-porta-voz do presidente Lula afirma que a direita e o capital tentam desmantelar alternativa popular representada pelos governos do PT, como aconteceu com Getúlio Vargas em 1954.

Eduardo Maretti
"A votação do impeachment no domingo não é apenas a tentativa de derrubar um governo cuja liderança está na esquerda. O que se está tentando fazer é criminalizar o conjunto da alternativa popular no Brasil e tirá-la do cenário político talvez por muito tempo. Sem dúvida, o que vamos viver neste domingo é um episódio maior da luta de classes no Brasil." A opinião é do cientista político André Singer, ex-secretário de Imprensa do Palácio do Planalto e ex-porta-voz da Presidência da República no governo Luiz Inácio Lula das Silva.
Segundo ele, é muito significativo que a luta de classes tenha voltado à cena "trazida pela direita e pelo capital". "Isso é surpreendente. Por que essa ofensiva diante de um projeto, de um governo que o tempo todo tentou conciliar, desde 2003 até agora, e jamais apostou na ruptura e no enfrentamento?"
O que está em questão, no momento, é o desmantelamento da alternativa popular no país, representada pelo segundo governo de Getúlio Vargas e pelos governos petistas de Lula e Dilma Rousseff, defendeu Singer.
"Se você desmantela a alternativa popular, ela vai demorar mais dez, vinte anos para se reconstruir. Talvez seja isso que esteja em jogo. Se for isso, estamos não no fim, mas no começo de um novo processo de luta de classes selvagem."
Ele participou de debate, organizado pela Associação dos Docentes da USP (Adusp), na sede da universidade, na noite de ontem (13 ), ao lado de Armando Boito, do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Tales Ab´Sáber, psicanalista e ensaísta, e José Maria de Almeida, candidato do PSTU à Presidência da República em 2014, que recomendou o voto nulo no segundo turno.
(...)
Para continuar a leitura, acesse http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2016/04/andre-singer-o-que-vamos-viver-domingo-um-episodio-maior-da-luta-de-classes-no-brasil-8042.html?_authenticator=249d4247ec7316249de3ad41a406eba58b58dcb1

 






Eduardo Maretti – Jornalista da RBA – 14.04.2016.
IN Rede Brasil Atual.


terça-feira, 12 de abril de 2016

O poder moderador de São Paulo na política nacional


depois de perder o poder de que desfrutava na República Velha, a elite paulista se tornou um poder moderador no país. Ela se crê um corpo separado da sociedade, dotado de virtudes únicas e com um direito especial de intervir na vida política quando sente contrariados seus interesses, os quais naturalmente, se confundem com os da nação.
(...)
A dominação hoje não se assenta imediatamente nas Forças Armadas, e se erigiu uma sociedade civil muito mais complexa. O desenvolvimento paulista se interiorizou e integrou as fímbrias de outras regiões. Uma enorme classe média do mundo corporativo, baseada em nova tecnologia de difusão de seus pensamentos mais recônditos, tornou-se muito mais influente do que aquela que saiu às ruas em 1964.

Lincoln Secco
Desde que os escândalos de 2005 jogaram o governo Lula no canto do ringue, cresceu infrene a mobilização dos setores médios contra ele. Mas, apesar do desgosto com a aproximação dos mais pobres aos seus espaços de sociabilidade exclusiva, protestos como o “Cansei” se esvaziaram rapidamente.
Hoje, entretanto, é nítido que o portão do zoológico se abriu, e a subcultura da extrema direita levou a agressões de todo tipo. O líder do MST não pode ir ao aeroporto, e mesmo policiais militares se sentem à vontade para intimidar professores de uma escola de Sorocaba por discutirem publicamente a obra “Vigiar e Punir”, de Foucault. Há ainda os que conseguiram associar a política de mobilidade urbana da Prefeitura de São Paulo a Cuba. Embora seja risível que certas pessoas confundam “ciclista” com “comunista”, não deixa de ser preocupante quando o ovo da serpente se insinua.
É verdade que as manifestações desse tipo são de grupos esdrúxulos e tão pequenos quanto eram os separatistas paulistas em 1932. Na Guerra Civil contra Getúlio Vargas, a elite paulista queria retomar a liderança do país, e não se separar dele. Mas, para mobilizar as classes médias, ela foi obrigada soltar as “feras” e, depois, não havia como recolocá-las na jaula.
Seria, no entanto, muito cômodo achar que o extremismo de direita não compartilha um terreno comum com o liberalismo moderado. Em 1938 lá estavam os próceres do constitucionalismo paulista envolvidos na intentona integralista contra Vargas. Em 1964 participaram das marchas contra João Goulart e, hoje, não enrubescem nas manifestações de ódio contra Dilma Rousseff.
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Lincoln Secco – Historiador, professor livre-docente de história da USP – 04.12.2015
IN Folha de São Paulo (republicado no  site “Vi o Mundo”).


domingo, 10 de abril de 2016

Laboratório Espanha


Uma das maiores dificuldades atuais do Podemos é conseguir encontrar uma forma institucional democrática capaz de permitir que agrupamentos organizados em torno de reivindicações como essas continuem compartilhando a mesma plataforma política. Das 69 cadeiras (de um total de 350) conquistadas na eleição pela plataforma Podemos, nada menos do que 27 delas foram obtidas por diferentes organizações que se reuniram em torno de movimentos por autonomia na Catalunha, na Comunidade Valenciana e na Galícia. E cada um desses nós organizativos aspira ter uma bancada própria no parlamento. Processos semelhantes se dão em relação aos demais coletivos reunidos no Podemos.
 O atual esforço é para manter essa multiplicidade de grupos dentro da mesma plataforma política.

 
Marcos Nobre 
No século 20, a democracia de massas deu as caras em poucos momentos e em bem poucos lugares do planeta. Sua forma habitual foi a da representação por meio de partidos políticos organizados de maneira hierárquica e burocratizada. Progressivamente, esses partidos foram se tornando verdadeiras entidades paraestatais, com laços cada vez mais frouxos com a base da sociedade. Na passagem para o século 21, é a própria forma partido, típica do século passado que está em questão, duvidando-se de sua capacidade de representar sociedades que experimentaram novas formas de vida democráticas.
Um dos mais importantes laboratórios da nova experimentação se encontra na Espanha. Acontece ali um embate aberto entre as velhas formas partidárias do século 20 e as novas plataformas políticas do século 21. Do lado da "velha política" estão o Partido Popular (PP, direita) e o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE, esquerda). Do lado da "nova política", Podemos e Cidadãos. Na mais recente eleição, ocorrida em 20 de dezembro, deu impasse. Nenhuma formação consegue construir alianças de modo a obter maioria para governar. Visto da maneira tradicional, nenhum problema. Como se trata de uma monarquia parlamentarista, basta realizar novas eleições. Só que o impasse já não se dá mais em termos tradicionais.
De todas as revoltas democráticas que se espalharam pelo planeta a partir de janeiro de 2011, a Espanha conta entre os poucos lugares em que as energias de contestação tomaram forma capaz de mudar a institucionalidade. Os países da primavera árabe tiveram suas revoltas sufocadas por novas ditaduras e por guerras civis. Ou, como na Tunísia, estão com sua jovem democracia na UTI. A experiência grega foi sufocada pela austeridade. No Brasil, a adesão das principais forças políticas ao "centrão pemedebista" formado a partir do Plano Real travou temporariamente a mudança.
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Marcos Nobre – Professor da Unicamp e Pesquisador do CEBRAP – 201
IN Valor Econômico, edição impressa (republicado em blog do Josenildo Melo)



quinta-feira, 7 de abril de 2016

O que os adultos fazem quando politizam a infância e ensinam as crianças a odiar

 

São crianças que odeiam por identificação aos pais, odeiam porque os pais odeiam. Xingam porque os pais xingam. Não toleram porque os pais não toleram. São crianças que, para responderem ao imperativo infantil de se fazerem amar e admirar por seus pais, odeiam.
(...)
Estamos criando uma geração de apaixonados, e portanto uma geração um tanto cega. Estamos eliminando o outro como elemento a ser considerado na ordenação de qualquer gesto humano. Se nenhum desses elementos for suficiente para reconsiderarmos o que fazemos hoje com a infância, sugiro levar em conta o que sempre se esquece numa hora dessas, como esquecemos quando estamos excitados ganhando uma partida de futebol: o outro, a qualquer momento, pode ser você.
  
Ilana Katz
Sábado de aleluia. Desci para usar a sala de ginástica do prédio. Cinco quilômetros depois, olho para a janela que dá vistas para a piscina e preciso desligar a esteira. Custo a crer no que vejo, mas vejo. E escuto. Dois irmãos descem para nadar, toalhas de banho, panelinhas, óculos de natação. E um boneco: o do ex-presidente da república vestido de presidiário.
Todas as minhas palavras foram embora. Esse pequeno texto é uma tentativa de reencontrá-las.
Tenho lido um ou outro artigo em blogs e jornais responsáveis, em que o tema da “politização das crianças” tem sido discutido. Uma tentativa de alertar aos pais e educadores sobre seu papel fundamental no exercício da tolerância à diferença, uma vez que as crianças também vivem o clima de ódio que se instalou no país que habitamos. Não sou a única impressionada. Ainda bem.
A atmosfera de ódio, no circuito das paixões a que muitos já tomamos pelo aspecto da torcida de futebol, é sustentada em alguns dispositivos do mundo adulto. Tudo isso tem cumprido a função de nos fazer crer que estamos em um grande jogo ou em um seriado de TV. Mas prestem atenção na analogia: no seriado de TV, o roteiro já está escrito.
O cidadão brasileiro está submetido a propaganda ideológica. E é sob essa égide que torcemos, comentamos, brigamos. Decidimos, a cada instante, pelo que é certo ou errado, eliminando toda a complexidade do momento que atravessamos. Se um dia já fomos 150 milhões de técnicos, que sabíamos como fazer a seleção brasileira de futebol vencer o resto do mundo, agora somos todos juízes, usando terminologia pseudo-jurídica como jargão. E para não nos deixar esquecer um aspecto fundamental do estado das coisas, muitas, mas muitas pessoas mesmo, usam a camisa da CBF (instituição notoriamente envolvida em casos de corrupção) para ocupar o espaço público, povoado de apaixonados que pedem cadeia para os corruptos.
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Ilana Katz – Psicanalista, doutora em Psicologia e Educação pela FE/USP, pós-doutoranda no LATESFIP/USP. Participa do MPASP (Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública) – 31.03.2016.
IN Blog da Boitempo.



terça-feira, 5 de abril de 2016

‘O empregado tem carro e anda de avião. E eu estudei pra quê?’



por aqui, pobre pode até ocupar espaços cativos da elite (não sem nossos protestos), mas nosso diploma e nosso senso de distinção nos autorizam a galhofa: “lembre-se, você não é um de nós”. Triste que este discurso tenha sido absorvido por quem deveria ter como missão a detonação, pela base e pela educação, dos resquícios de uma tragédia histórica construída com o caldo da ignorância, do privilégio e da exclusão..

Matheus Pichonelli
O condômino é, antes de tudo, um especialista no tempo. Quando se encontra com seus pares, desanda a falar do calor, da seca, da chuva, do ano que passou voando e da semana que parece não ter fim. À primeira vista, é um sujeito civilizado e cordato em sua batalha contra os segundos insuportáveis de uma viagem sem assunto no elevador. Mas tente levantar qualquer questão que não seja a temperatura e você entende o que moveu todas as guerras de todas as sociedades em todos os períodos históricos. Experimente. Reúna dois ou mais condôminos diante de uma mesma questão e faça o teste. Pode ser sobre um vazamento. Uma goteira. Uma reforma inesperada. Uma festa. E sua reunião de condomínio será a prova de que a humanidade não deu certo.
Dia desses, um amigo voltou desolado de uma reunião do gênero e resolveu desabafar no Facebook: “Ontem, na assembleia de condomínio, tinha gente ‘revoltada’ porque a lavadeira comprou um carro. ‘Ganha muito’ e ‘pra quê eu fiz faculdade’ foram alguns dos comentários. Um dos condôminos queria proibir que ela estacionasse o carro dentro do prédio, mesmo informado que a funcionária paga aluguel da vaga a um dos proprietários”.
A cena parecia saída do filme O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, no qual a demissão de um veterano porteiro é discutida em uma espécie de “paredão” organizado pelos condôminos. No caso do prédio do meu amigo, a moça havia se transformado na peça central de um esforço fiscal. Seu carro-ostentação era a prova de que havia margem para cortar custos pela folha de pagamento, a começar por seu emprego. A ideia era baratear a taxa de condomínio em 20 reais por apartamento.
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Matheus Pichonelli07.02.2014.
IN Carta Capital.