domingo, 12 de junho de 2016

Gênero, número e grau


A subordinação mais profunda opera por meios simbólicos, invisível mesmo para as vítimas. Pierre Bourdieu mostra, em "A Dominação Masculina", como a diferença anatômica entre os sexos é inculcada desde a infância como desnível de capacidades, produzindo sentimento de superioridade nos meninos e de inferioridade nas meninas. São ambos educados para desenvolverem as sensibilidades condizentes. Eles brincam de luta, elas de casinha. Deles se espera que sejam durões, delas, que se mostrem delicadinhas. A hierarquia se naturaliza.
Fugir do roteiro é perigoso.
  
Angela Alonso
É assim desde Adão e Eva, Bentinho e Capitu. No Gênesis, é da mulher o pecado original –provar da árvore do conhecimento–, punido com as dores do parto. O Dom Casmurro, supondo-se traído, mata socialmente a esposa com a pena do exílio. A dominação patriarcal é traço da cristandade em geral e de nossa sociedade em particular. Fundo e duradouro.
O fenômeno causa consternação episódica, quando descamba em violência física extrema, vide o espancamento que converteu Maria da Penha –a homenageada no nome da lei– em paraplégica. E comove conforme o número: uma mulher não basta, é preciso várias, vide episódio no Piauí. A não ser que seja vítima de muitos, como no estupro de uma adolescente por três dezenas de marmanjos.
Casos assim chocam. Mas logo mídia e opinião pública se enfastiam. Sobram as feministas, apenas toleradas e tidas por chatas recalcadas. No cotidiano sem graça, longe das câmeras, volta a toada, que pouco mudou desde os tempos de Machado de Assis: a supremacia física, moral, profissional, financeira dos homens sobre as mulheres.
O noticiário associa a dominação de gênero a pancadões de gente pobre e ignorante. Mas ela não se apega a classes. É transversal. Nos estratos altos se camufla. Entre cultos, ganha licença poética. Puxe pela memória: Roman Polanski, Gerald Thomas, Johnny Depp, Alexandre Frota. O último jamais elaboraria justificativas no nível dos primeiros, mas o ato é o mesmo.
O abuso a lei pune. Mas, na prática, muitos juízes pensam como o primeiro delegado do caso da estuprada por 33. Em vez de inquirir os agressores, perguntou à moça se era adepta de sexo grupal. Sai de cena a violência masculina, entra em pauta a moralidade feminina.
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Angela Alonso – Presidente do Cebrap  e professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo – 05.06.2016.
IN Folha de São Paulo (republicado em IHU Unisinos)