A
subordinação mais profunda opera por meios simbólicos, invisível mesmo para as
vítimas. Pierre Bourdieu mostra, em "A Dominação Masculina", como a
diferença anatômica entre os sexos é inculcada desde a infância como desnível
de capacidades, produzindo sentimento de superioridade nos meninos e de
inferioridade nas meninas. São ambos educados para desenvolverem as
sensibilidades condizentes. Eles brincam de luta, elas de casinha. Deles se
espera que sejam durões, delas, que se mostrem delicadinhas. A hierarquia se
naturaliza.
Fugir
do roteiro é perigoso.
Angela
Alonso
É assim desde Adão e Eva, Bentinho e Capitu.
No Gênesis, é da mulher o pecado original –provar da árvore do conhecimento–,
punido com as dores do parto. O Dom Casmurro, supondo-se traído, mata
socialmente a esposa com a pena do exílio. A dominação patriarcal é traço da
cristandade em geral e de nossa sociedade em particular. Fundo e duradouro.
O fenômeno causa consternação episódica,
quando descamba em violência física extrema, vide o espancamento que converteu Maria
da Penha –a homenageada no nome da lei– em paraplégica. E comove conforme o
número: uma mulher não basta, é preciso várias, vide episódio no Piauí. A não
ser que seja vítima de muitos, como no estupro de uma adolescente por três
dezenas de marmanjos.
Casos assim chocam. Mas logo mídia e opinião
pública se enfastiam. Sobram as feministas, apenas toleradas e tidas por chatas
recalcadas. No cotidiano sem graça, longe das câmeras, volta a toada, que pouco
mudou desde os tempos de Machado de Assis: a supremacia física, moral,
profissional, financeira dos homens sobre as mulheres.
O noticiário associa a dominação de gênero a
pancadões de gente pobre e ignorante. Mas ela não se apega a classes. É
transversal. Nos estratos altos se camufla. Entre cultos, ganha licença
poética. Puxe pela memória: Roman Polanski, Gerald Thomas, Johnny Depp, Alexandre Frota. O último jamais
elaboraria justificativas no nível dos primeiros, mas o ato é o mesmo.
O abuso a lei pune. Mas, na prática, muitos
juízes pensam como o primeiro delegado do caso da estuprada por 33. Em vez de
inquirir os agressores, perguntou à moça se era adepta de sexo grupal. Sai de
cena a violência masculina, entra em pauta a moralidade feminina.
(...)
Para continuar a leitura, acesse http://m.folha.uol.com.br/colunas/angela-alonso/2016/06/1778377-genero-numero-e-grau.shtml (ou em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/555992-genero-numero-e-grau
)
Angela
Alonso – Presidente do
Cebrap e professora do Departamento de
Sociologia da Universidade de São Paulo – 05.06.2016.
IN Folha de São Paulo (republicado em IHU
Unisinos)