A ascensão e o fortalecimento dos
evangélicos na arena política se relacionam mais com a defesa de interesses
corporativos de algumas igrejas do que a valores propriamente religiosos
Glauco Faria
Nos últimos meses, os evangélicos têm
aparecido cada vez mais no cenário político e nas manchetes dos
noticiários, ostentando grande capacidade de interferir nas
decisões políticas e causando arrepios a muitos que consideram o
Estado laico ameaçado. As vitórias do segmento ficaram evidentes em
episódios como o recuo do Ministério da Educação na distribuição de kits
para combater a homofobia nas escolas, a não veiculação de um vídeo
de combate à aids voltado para o público LGBT, os inúmeros
obstáculos interpostos ao PLC 122 – que criminaliza a homofobia – no
Congresso Nacional e mesmo a rocambolesca postura do governo e de seus
representantes no Parlamento no item da Lei Geral da Copa, que previa a
liberação de bebidas nos estádios.
Outro momento constrangedor para o
governo federal se deu quando Gilberto Carvalho, secretário-geral da
Presidência, se reuniu com representantes da Frente
Parlamentar Evangélica para, entre outros pontos, pedir desculpas por
declarações em que teria criticado os religiosos durante o Fórum
Social Temático de Porto Alegre. A impressão geral, e que
inteligentemente os próprios líderes evangélicos fazem questão de
reforçar, é que o governo e grande parte do Congresso se
dobram diante das pressões do setor. Mas qual a natureza desse poder
dos evangélicos? Trata-se de uma força superestimada ou é fruto
de uma articulação de interesses que vem se tornando mais sólida nos
últimos anos?
Para entender o papel desempenhado
pelos evangélicos na política, é preciso resgatar as eleições para a
Assembleia Nacional Constituinte, em 1986. Até aquele ponto,
pentecostais e neopentecostais não se organizavam para garantir sua
participação na política institucional. Alguns chegavam a repelir tal
possibilidade: foi o caso dos dirigentes da Assembleia de Deus, que
desencorajavam seus fieis ao pregar que eles não deveriam se
envolver com partidos, movimentos sociais, sindicatos e organizações
similares. Mas, para garantir seu espaço na elaboração da nova
Constituição, lideranças da própria Assembleia de Deus, do Evangelho
Quadrangular e da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD, que
nunca sustentou o discurso antipolítico) passaram a se organizar com
fins eleitorais.
Paul Freston, em seu livro Evangélicos
na política brasileira: história ambígua e desafio ético, conta
que, em janeiro de 1985, na Convenção Geral das Assembleias de Deus
do Brasil, políticos evangélicos de outras igrejas, como Íris
Rezende, pediram à instituição que se envolvesse nas eleições para o novo
Congresso. Naquele mesmo ano, em um encontro realizado em abril, os
assembleianos apresentaram candidatos recrutados em suas
fileiras, sendo que, em quatro estados, apoiaram outros candidatos pentecostais.
A tática eleitoral, hoje muito conhecida dos brasileiros em geral,
foi a do medo, como descreve Freston, que entrevistou o presidente da
Convenção Geral das Assembleias de Deus do Brasil, José Wellington
Bezerra da Costa. Segundo o religioso, a Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB) “estava com um esquema armado para
estabelecer a religião católica como a única religião oficial”. As
lideranças da Assembleia de Deus também faziam questão de lembrar que a
nova Constituição poderia estabelecer pontos como a legalização do aborto,
a liberação das drogas e o casamento de homossexuais.
Ali, já se notava o potencial eleitoral
da igreja: dos 18 indicados, 13 foram eleitos, além de um suplente.
Na legislatura anterior, a igreja tinha apenas um deputado. No
total, os evangélicos chegaram a ocupar 33 cadeiras no Congresso
Nacional, pautando debates de cunho moral na Casa, como
ressaltam Alvaro de O. Senra e Denise S. Rodrigues no artigo “Irmão
vota em Irmão!”, publicado na revista Espaço Acadêmico. “Nessa
conjuntura, criaram-se condições para que uma agenda política
conservadora, de inspiração religiosa, pusesse na pauta dos debates e
votações do Legislativo temas controversos, como a possibilidade de
financiamento público para o ‘tratamento’ de homossexuais que
desejassem ‘reverter’ para a condição de heterossexualidade.” Sem
fazer qualquer separação entre a esfera política e a moralidade privada,
os parlamentares se entrincheiraram em trabalhos como os da
subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, manifestando-se contra a
igualdade de direitos para homossexuais, o aborto,
a descriminalização das drogas, e defendendo a censura nos meios de
comunicação.
Mas a atuação não se limitava a
temas relativos à moral. Os interesses corporativos das igrejas foram
defendidos de uma forma bastante usual dentro das práticas do
Parlamento: a fisiologia. Além de marcar presença na Subcomissão da
Ciência, Tecnologia e Comunicação, o grupo obteve benefícios:
em troca do apoio dado à emenda que concedia um ano a mais de mandato
ao presidente Sarney (de autoria do deputado Matheus Iensen, do
PMDB-PR, da Assembleia de Deus, que controlava emissoras de rádio
e uma gravadora evangélica); alguns membros parlamentares ligados às
igrejas foram agraciados com concessões de rádio e televisão.
Valdemar Figueiredo Filho, autor de Coronelismo Eletrônico
Evangélico, destaca que, no período de 1985 a 1988, foram dadas
946 concessões de rádio e 82 concessões de televisão, sendo que 539
(52%) foram distribuídas entre janeiro e outubro de 1988,
últimos meses da Constituinte, quando se debatia a duração do
mandato do presidente José Sarney. Na prática, a área de
comunicação seria a principal área de atuação dos
parlamentares evangélicos. “Os interesses na representação política
estão relacionados às estruturas midiáticas de que os grupos
religiosos dispõem. É o que de fato justifica a formação de uma bancada
parlamentar”, argumenta Figueiredo Filho.
A Assembleia Constituinte representou um
verdadeiro divisor de águas na representação política evangélica. Segundo
Leonildo Silveira Campos, foi ali que houve uma diferenciação entre
“políticos evangélicos” e “políticos de Cristo”. O primeiro grupo,
disperso, cuja origem remete à República Velha, não era composto por representantes
dos interesses corporativos de suas igrejas e se inspirava nos ideais
liberais dos norte-americanos. Já o segundo grupo passa ao largo
de ideologias ou programas partidários,
representando, prioritariamente, as demandas de suas organizações religiosas.
Nesse sentido, a fraqueza do sistema
partidário brasileiro favorece a inserção dos “políticos de Cristo”,
que se distribuem por diferentes partidos, de acordo com as
negociações com dirigentes e maiores possibilidades eleitorais em
cada local. Um advento recente, o surgimento de uma nova classe média,
seria também mais uma oportunidade para algumas instituições
religiosas ganharem poder político. “Temos a emergência, no Brasil,
de uma classe C, que é conservadora e vinculada ao consumo e à família.
A palavra de ordem é sucesso, e não mobilização social. O perfil
de liderança que se alimenta dessa situação é um líder carismático,
que fala ‘Deus está comigo’, e é esse tipo de liderança que está
surgindo, é o discurso do sucesso do indivíduo aumentando sua
eficácia”, sustenta o sociólogo Rudá Ricci. “Como não temos um sistema de
representação que se enraíza nessa classe C, tais lideranças ganham
força. Vem aumentando a relação daqueles que professam alguma fé com
a materialidade, usando a religião como fator de ascensão social.”
O sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira
também observa que a fragilidade dos partidos é um fator que favorece
o fortalecimento desses grupos religiosos na arena política. “O
Estado é o campo próprio das políticas públicas, e é legítimo que
igrejas e outros organismos da sociedade queiram influenciar o rumo
dessas políticas. O problema é quando as igrejas – e outros
organismos da sociedade – se comportam como se fossem partidos políticos
e usam sua capacidade de influir nas eleições para reivindicar privilégios
diante do Estado”, argumenta. “Um Estado respaldado por
partidos políticos fortes – como pretende o projeto cidadão de
Reforma do Estado – pode resistir a tais pressões. Um Estado
despolitizado, porém, é frágil diante de pressões
indevidas. Infelizmente, é este o nosso caso.”
Impérios midiáticos
“Essas igrejas nascem no espaço da comunicação, a
liturgia é de comunicação de massa, seja eletrônica ou televisiva, tem um
timing que é distinto das igrejas protestante e católica tradicionais.”
Valdemar Figueiredo Filho se refere às igrejas pentecostais e neopentecostais,
que representariam, na classificação proposta por Campos, os “políticos de
Cristo”. Aliás, é necessário que se faça uma diferenciação: a participação dos
evangélicos na população vem crescendo, de 9%, em 1990, para 15,4%, em 2000,
segundo o Censo do IBGE. Mas quem alavanca o crescimento são os pentecostais e
neopentecostais, enquanto denominações tradicionais do protestantismo se
encontram estagnadas ou em declínio. E, para crescer e se consolidar, o
investimento, econômico e político, na área de comunicação é crucial.
Levantamento feito por Figueiredo Filho com dados
da Anatel e da Abert, em março de 2006, mostra que 25,18% das emissoras de
rádio FM das capitais brasileiras são evangélicas, sendo que 69,11% destas
pertencem ao campo pentecostal, com domínio da Igreja Universal do Reino de
Deus, que detém 24 emissoras. Já entre as AM, a proporção é de 20,55%, sendo
que a Assembleia de Deus possui nove emissoras. Segundo o cientista político,
“o rádio configura o dizer e o fazer dos atores políticos que representam esses
grupos evangélicos”. E há mais dados sistematizados por ele para confirmar
isso. Em 2003, a Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática
(CCTCI) da Câmara tinha 51 membros titulares, sendo que 16 contrariavam a norma
que proibía parlamentares de serem sócios ou diretores de empresas
concessionárias. Esses 16 representavam 37 empresas concessionárias: 31
emissoras de rádio e seis de televisão, sendo que quatro faziam parte da Frente
Parlamentar Evangélica (FPE), instalada oficialmente em 2003, e eram
concessionários de 21 das 37 emissoras.
Dentre os grupos midiático-religiosos, sem dúvida o
que mais se destaca é a Universal. Nem tanto pelo número de fieis, já que,
conforme o Censo de 2000 do IBGE, ela tem nas suas fileiras 1,23% da população,
ficando muito atrás da Assembleia de Deus (4,95%), da Igreja Batista (1,86%),
da Congregação Cristã do Brasil (1,46%) e mesmo dos espíritas (1,33%). Mas é da
sua característica empresarial, com ênfase na comunicação, que emana sua força.
“Levando-se em conta os grupos de comunicação, a Universal é a mais forte, e
com isso tem um poder político que se sobrepõe a outros grupos”, comenta
Figueiredo Filho.
“A Universal é uma grande empresa que usa o
imaginário da população e tem uma alta elaboração. Ela não se instalou nos
moldes tradicionais, é um teatro e um mercado, que trabalha com produtos. Cada
semana ela lança um produto novo, como qualquer empresa que sabe qual é seu
público-alvo; existe uma corrente dos 70 pastores, outra para os empresários,
para quem tem problemas financeiros...”, enumera Saulo de Tarso Cerqueira
Baptista, autor de Cultura política brasileira, práticas pentecostais e
neopentecostais. Ele ressalta que a igreja, assim como outras vertentes
religiosas, não atrai apenas os seus fieis, mas, justamente por conta desses
“produtos”, também chama a atenção de pessoas que professam outra fé e
eventualmente frequentam um templo da IURD ou assistem a seus programas
televisivos e radiofônicos em busca de cura ou de uma graça. A organização
religiosa, proprietária da Rede Record, uma das maiores redes de comunicação do
País, sabe diferenciar os objetivos de cada um de seus negócios. Enquanto na
sua grade de programação restringe os programas religiosos à madrugada, aluga espaços
no horário nobre em outras redes.
O exemplo de sucesso da organização comandada por
Edir Macedo ainda teria estimulado outras denominações pentecostais a seguir o
seu exemplo de inserção na política institucional, algo em que foi pioneira.
“Algumas igrejas, como a Assembleia de Deus, foram praticamente arrastadas para
esse campo, porque estavam perdendo terreno. Entrevistei um dirigente da
Assembleia, que foi eleito vereador, e ele dizia: ‘Não sou político, mas é uma
exigência dos pastores novos porque estávamos perdendo para a Universal’”,
conta Cerqueira Baptista. “Considero que o fortalecimento político [dos
evangélicos] se deu mais pela presença mais significativa e intensa nos
partidos. Hoje, o PRB e o PSC têm grupos evangélicos/pentecostais em suas
lideranças e em cargos-chave do partido. Há uns 20 anos que o bispo Rodrigues,
ex-líder político da IURD, entendeu a importância da estrutura partidária e, de
dentro, passou a atuar, no PL naquela época. Para ele, esse era um ponto
central”, explica Alexandre Brasil Fonseca, doutor em Sociologia pela USP. “A
TV, chamada de quarto poder no Brasil, representa uma série de elementos e
ocupa papel importante no processo de legitimação de grupos evangélicos. A
propriedade de emissoras de rádio e TV é um ponto importante, principalmente
quando vão além da pregação religiosa, caso em que a IURD tem sido exemplar.
Fora isso, o fato de alguém ter muito tempo de TV para pregações religiosas não
representa, a priori, garantia de eleição para nada. O R.R. Soares [líder da
Igreja da Graça] é um bom exemplo, ele foi candidato várias vezes a deputado e
nunca se elegeu. Recentemente, conseguiu emplacar o irmão como deputado.”
O poder exercido de forma centralizada na Universal
não a favoreceu apenas no mundo dos negócios de comunicação, mas também lhe dá
um cacife eleitoral que não é proporcional à sua representação entre os
evangélicos, superando as demais igrejas do segmento. Conforme Cerqueira
Baptista, a igreja mantém seus representantes no Parlamento como “qualquer outro
empregado da corporação”. Os fiéis das igrejas evangélicas, em geral, têm um
grau de exposição à autoridade religiosa muito maior do que aqueles que seguem
outras religiões, como destaca o sociólogo Eduardo Lopes Cabral Maia, autor do
artigo “Os evangélicos e a política”, publicado na Revista dos Pós-Graduandos
em Sociologia Política da UFSC. De acordo com ele, aproximadamente 82,65% dos
evangélicos vão ao culto uma ou mais vezes por semana, enquanto entre os
católicos apenas 35,71% têm esse alto grau de exposição. Também entre eles há o
menor número de fieis com baixo grau de exposição (9,69%). Essa maior
participação dos evangélicos em cultos e atividades pode sugerir uma maior
influência do discurso apresentado pelas igrejas e suas lideranças, incluindo-se
aí os destinados a demonstrar que o voto no candidato da igreja é o melhor voto
para o fiel/eleitor.
A relação com os governos
Na primeira eleição presidencial em que os
“políticos de Cristo” já eram um grupo com força relevante, em 1989, Fernando Collor
de Mello foi o ungido por muitos segmentos evangélicos, contando com
manifestações públicas de apoio de líderes da Igreja Quadrangular, Assembleia
de Deus e Igreja Universal. No segundo turno, Lula, o então candidato petista,
foi “demonizado” pelo jornal da igreja de Edir Macedo. Como afirma Cerqueira
Baptista, boatos davam conta de que o “comunista ateu” proibiria cultos em
espaços públicos, e os templos seriam transformados em escolas. Outros
reclamavam da proximidade do PT com os católicos e viam em Collor uma
oportunidade de “equilibrar o jogo”. A diferença que definiu a eleição em favor
do postulante do PRN ficou em torno de 4 milhões de votos. “O Robinson
Cavalcanti, bispo anglicano, era amigo do Frei Betto, e apareceu uma vez no
horário eleitoral. Na época, o [Luiz] Gushiken era responsável pelo diálogo com
o setor religioso, e ele sabe tanto de campo religioso como eu sei de
sânscrito. Foi feita uma frente evangélica aqui [Pará], mas havia grandes
dificuldades, porque quando ia conversar com o pessoal da campanha, eles não
tinham a mínima noção de conversar. Se o PT tivesse humildade...”, conta.
Mas Collor deu muito menos do que se esperava, e
logo os evangélicos começaram a reclamar. Ainda assim, foram os parlamentares
que mais hesitaram a votar a favor do impeachment do
presidente, como anotou o jornalista Jânio de Freitas na Folha de S.
Paulo, um dia após o impedimento de Collor, deixando mostras de uma relação
pouco republicana com o governo. “O Planalto só notou que o impeachment passaria
à 1 hora de ontem, quando soube que a bancada dos evangélicos fechara com a
oposição.”
FHC também teve o apoio da maioria dos líderes
evangélicos para sua eleição em 1994, mas a relação não foi tranquila, em
especial com a Universal. Cerqueira Baptista resgata o fato de os membros da
igreja acharem que o governo beneficiava a Rede Globo, que a “perseguia”. “A TV
Globo ainda tem o poder de divulgação, mas nós temos o poder de mobilização.
Senhores políticos, não venham bater às nossas portas à época das eleições,
porque vocês vão ganhar também um verdadeiro não”, ameaçava pela imprensa o
pastor Ronaldo Didini. Em 1994, Mario Covas, candidato a governador de São
Paulo, havia recebido apoio por escrito na Folha Universal, assim
como o candidato ao Senado José Serra, que, com Covas, chegou a participar de
uma cerimônia da Universal, em que ambos foram chamados ao púlpito por Didini e
apresentados como candidatos da Igreja Universal.
As fiscalizações da Receita Federal e da
Previdência eram o que mais incomodava a IURD – elas ocorriam em frequência bem
maior do que ocorria com a Globo, segundo seus líderes, e ainda seria
beneficiada com aportes do BNDES, o que não ocorria com a Record. Em 1998, FHC
não teve o apoio da Universal, que, mais tarde, articulou com o PL a aliança
que levou Lula à Presidência em 2002. “Bom, eu vim para cá, me aproximei do PT,
me aproximei do Genoino, do Zé Dirceu, de todos os líderes do PT e... houve uma
distensão, não é? Eles desconfiavam da gente, tinham ódio da gente, a gente
desconfiava e tinha ódio deles. Esse ódio acabou e começou a haver uma
aproximação”, relatou o bispo Carlos Rodrigues, uma das principais lideranças
da Igreja e do PL em depoimento a Cerqueira Baptista, em junho de 2004. “Mas
hoje os evangélicos como grupo, como segmento, não têm nenhuma representação no
governo Lula. Isso não tem, não é?”, reclamava Rodrigues, acusando ainda a
Igreja Católica de ter derrubado Benedita da Silva, supostamente uma
representante dos evangélicos (embora em sua ação parlamentar nem sempre tivesse
se alinhado nas questões morais) da pasta da Ação Social (antecessora do
Ministério do Desenvolvimento Social), para colocar Patrus Ananias. Rodrigues,
que liderava com mão de ferro a bancada da Universal no Congresso, cairia após
o escândalo do mensalão.
E hoje, como é a relação com o governo Dilma?
“Existem sinais de que [a Frente Parlamentar Evangélica] está mais
forte, mais próxima de influenciar o governo. A escolha do senador Marcelo
Crivella para o Ministério da Pesca é um sinal importante para se avaliar.
Apesar de pequena, não é uma pasta tão irrelevante, ainda mais se considerarmos
que foi ocupada no governo Lula por José Fritsch, militante da Pastoral
Católica”, destaca Cerqueira Baptista. “Nesse sentido, ao se colocar o
Crivella, sinaliza-se uma perda de espaço católico e uma ampliação, ao menos
simbólica, de espaço para os neopentecostais. A Frente Parlamentar Evangélica
não considera que Crivella a represente, até pela própria natureza dos
evangélicos e por constituírem um conjunto de tradições e igrejas diferentes,
mas para eles é melhor um Crivella do que um católico.”
“O que temos atualmente se relaciona mais por
características do Estado brasileiro, em que temos uma grande importância das
relações pessoais nos processos (questão bem retratada no trabalho de Marcos
Otavio Bezerra). Vejo que isso tem um peso maior do que propriamente o valor do
religioso na sociedade contemporânea”, analisa Alexandre Brasil Fonseca. “A
nomeação do Crivella como ministro só foi possível em decorrência de um partido
que atua com o governo do PT desde o primeiro mandato de Lula e nesse sentido é
que se concretiza a decisão. O simples fato de ele ser ‘representante
evangélico’ não seria suficiente para tanto e mesmo os líderes da Frente
Parlamentar Evangélica foram rápidos em afirmar a ‘não representação’ de
Crivella em relação ao segmento.”
Nesse ambiente de fortalecimento de alas
conservadoras no Congresso, como ficariam discussões cruciais como a igualdade
de direitos para os homossexuais e o direito ao aborto, por exemplo? “A
bandeira moral, quando se torna uma bandeira política, quase sempre funciona
como uma camuflagem de interesses que não querem se explicitar, como são os
interesses corporativos (interesses particulares, da própria entidade) ou a
defesa de políticas sem respaldo social (isto é, políticas conservadoras que
mantêm privilégios de pequenos grupos)”, alerta Pedro Ribeiro de Oliveira.
“Veja dois casos típicos: a defesa do ensino religioso confessional nas escolas
públicas (garantia de emprego a professores indicados pelas autoridades
eclesiásticas) e a oposição à descriminalização do aborto (arma eleitoral
contra partidos liberais e de esquerda).”
Algo importante de se ressaltar é que as bandeiras
do conservadorismo não unem necessariamente todos os membros da Frente
Parlamentar Evangélica, mas conseguem agregar outros setores do Parlamento e
conta com a omissão (devidamente calculada em termos de risco eleitoral) de
outros. “Algo que a imprensa nunca soube trabalhar é a ação de uma ‘frente subterrânea’
católica. Subterrânea porque não mostra a cara dela, e se trata de um grupo
maior do que o evangélico. A Frente Parlamentar Evangélica tem estatuto, se
manifesta, é visível e é possível saber o partido de cada um e o que ele faz.
Mas, na frente parlamentar católica, é mais difícil, porque não fazem questão
de assumir, e em muitas causas, como nessas questões do kit anti-homofobia,
eles se unem”, aponta Cerqueira Baptista. Para Rudá Ricci, o processo eleitoral
de 2010, quando temas morais vieram à tona no fim do primeiro turno e no
segundo do pleito presidencial, fortaleceu esses grupos. “Na eleição
presidencial, pela primeira vez os neopentecostais perceberam que poderiam se
aliar a alas ultraconservadoras da Igreja Católica, e essa somatória dá um contingente
muito razoável”, acredita.
A união entre evangélicos e católicos em torno das
questões morais, dobradinha que já se evidencia na pré-campanha de algumas
cidades do Brasil, combina dois tipos de estratégia diferentes e pode
potencializar ainda mais o seu alcance. “Esse ponto é o mais complicado, pois
amplia em muito a escala dessas ações. A relação dos católicos com o Estado se
dá desde sempre, e os evangélicos têm se caracterizado por fazer um barulho
maior. Unir essas duas estratégias, como [Gilles] Kepel salientou no livro A
revanche de Deus, passa por ações ‘pelo alto’ e ‘por baixo’, representando uma
potencialização de ações e posturas”, reflete Brasil Fonseca. “Isso pode ser
visto no episódio do ensino religioso no Rio de Janeiro. O projeto de um
parlamentar ligado à Renovação Carismática [da Igreja Católica] atuou em
consonância com o casal Garotinho”, lembra.
“Evidente que essas bandeiras unem setores
conservadores católicos e evangélicos, mas se trata de uma coalizão de
interesses, e não uma aliança estratégica diante de um imperativo ético”,
pondera Ribeiro de Oliveira. Para ele, é necessário amplificar algumas
discussões para toda a sociedade, o que seria uma forma de superar os
obstáculos interpostos pelos mais conservadores. “A estratégia das igrejas –
pelo menos no caso da Igreja Católica romana – consistia em definir esses temas
como essencialmente morais, de modo a impedir que fossem incluídos na pauta
política. Foi a pressão de movimentos sociais – notadamente feministas e gays –
que trouxe esses temas para a agenda política”, lembra. “Agora, a estratégia é
outra: já que o debate é inevitável, trata-se de mantê-lo restrito ao âmbito
das autoridades eclesiásticas, como se elas de fato representassem o consenso
de suas igrejas. Trazer esses temas para um debate amplo e honesto, na
sociedade, só trará benefícios para o Estado e para as próprias igrejas – que
serão levadas a formar a convicção de seus adeptos.”
Glauco Faria – abril de 2012