O que o levou a classificar o episódio
como um massacre estava, segundo ele, escrito nas paredes do Pavilhão 9. Todas
as celas que eu examinei tinham muito poucos tiros nos corredores. No corredor,
eu contava dois ou três buracos de balas. Mais de 90% dos tiros estavam dentro
das celas. E sempre da porta para o fundo, ou seja, impossível que tenha sido
algum tiro dado pelos presos em direção aos policiais militares. E, realmente,
não tinha nenhum policial ferido por balas.
Elaine Patricia Cruz
Naquele 2 de
outubro de 1992, uma sexta-feira, quando foi chamado para fazer a perícia no
Pavilhão 9, na Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como Carandiru, o
perito Osvaldo Negrini Neto achou que se tratava de um evento de resistência seguida
de morte, ou seja, que os detentos haviam morrido em decorrência de confronto
com a Polícia Militar, mas logo mudou de ideia.
Depois percebi que
foi um massacre seguido de muitas mortes, disse o ex-perito, em entrevista à Agência Brasil. Na época, contou,
era perito de uma seção especial do Instituto de Criminalística (IC) de São
Paulo que analisava exatamente os casos de resistência seguida de morte. Após o
episódio, chegou a sofrer ameaças.
O que o levou a
classificar o episódio como um massacre estava, segundo ele, escrito nas
paredes do Pavilhão 9. Todas as celas que eu examinei tinham muito poucos tiros
nos corredores. No corredor, eu contava dois ou três buracos de balas. Mais de
90% dos tiros estavam dentro das celas. E sempre da porta para o fundo, ou
seja, impossível que tenha sido algum tiro dado pelos presos em direção aos
policiais militares. E, realmente, não tinha nenhum policial ferido por balas.
Negrini Neto foi o
autor do principal laudo sobre a morte dos presos no Carandiru. Aposentado
desde 2010, ele conversou com a Agência Brasil por telefone.
Colhi material das
paredes e vi que, em muitos casos, não era bala de revólver, mas de
metralhadora. Os tiros seguiam uma sequência quase na mesma linha. Uma pistola
e um revólver não fazem isso. Colhi material daquilo para saber se tinha cobre
presente no buraco, porque o cobre caracteriza que a bala é encamisada, ou
enjaquetada [revestida com metal, a exemplo de cobre, para aumentar a
penetração no alvo], como a de metralhadora.
O perito descreve
a situação de um dos andares mais atingidos: No terceiro, a coisa estava
bárbara. Na primeira cela em que entrei, tinha mais de 20 buracos de bala. Na
outra, 15, na outra, dez. Fui contando e havia mais de 450 buracos de bala na
parede. Em alguns, tinha [marca] no chão como se tivesse matado gente que
estivesse sentada ou ajoelhada, descreveu.
Negrini Neto só
conseguiu entrar na Casa de Detenção por volta das 21h30 daquele dia. Tive que
entrar escondido, junto com meu fotógrafo, na viatura do delegado, abaixados no
banco de trás, porque a Polícia Militar tinha dado ordem de que não queria
perícia lá dentro, relatou.
Quando finalmente
chegaram ao Pavilhão 9, o prédio encontrava-se interditado. Tinha havido um
incêndio no térreo, contou. Ele pediu então ao oficial que estava tomando conta
do local para poder entrar no pavilhão e fazer as fotos e um relato sobre o que
ocorreu. Depois de muito relutar, ele permitiu que entrássemos no pátio ou
térreo. Ali tinha barbearia, lavanderia, cozinha, dependências de convivência
entre os presos e a parte de administração do Pavilhão 9, onde estavam todos os
arquivos dos presos dali. Como houve o incêndio, a energia elétrica foi cortada
e o trabalho precisou ser feito todo com lanternas, até que a polícia
fornecesse alguns holofotes.
No local, os
policiais lhe contaram que uma TV explodiu perto de onde se encontrava o então
comandante da Polícia Militar, o coronel Ubiratan Guimarães, que precisou
deixar o local para ser atendido.
Fiz [registro de]
toda essa parte de baixo, analisei o incêndio, e vi, pela escada do canto que
subia para o primeiro pavimento, uma gosma escura descendo que parecia óleo
queimado. Uma cachoeirinha. Achei meio intrigante aquele fenômeno ali e fui
mais perto para olhar. Como já tinha bastante experiência nisso, vi que era
sangue misturado com uma série de outras sujidades, contou.
Com a ajuda dos
holofotes, ele subiu então para o primeiro pavimento. Quando cheguei à borda do
primeiro pavimento, vi uma cena dantesca, algo que nunca tinha visto na minha
vida. Um monte de cadáveres empilhados, um por cima do outro, todos
completamente destroçados, com buracos de balas aos montes, disse.
Foi então que ele
começou a contar os cadáveres que estavam empilhados. Só havia um espaço para
pisar no Pavilhão 9, entre a parede e a primeira pilha de cadáveres, e que não
chegava a 40 centímetros. Fomos indo por aquela borda, até onde os holofotes
conseguiram chegar, e eu pude contar 90 cadáveres. Contei errado naquele dia.
Na realidade, eram 89, falou.
Depois disso, teve
início o trabalho de retirada dos corpos. Para isso, eles precisaram encostar
quatro ou cinco caminhões-baú do presídio e os próprios presos foram obrigados
a pegar os cadáveres, um por um, no primeiro pavimento, e trazer, de dois em
dois, para botar no caminhão. Aí, vi que todos os presos estavam completamente
nus, descreveu.
Segundo o
ex-perito, os sobreviventes do Pavilhão 9, que eram mais de 1,8 mil na época,
estavam todos sentados no pátio, nus, ajoelhados, cercados por policiais. Nunca
vi algo tão desumano na minha vida, disse o perito. Os corpos precisaram ser
levados para vários institutos médico-legais de São Paulo e da região
metropolitana.
No sábado, começaram
os telefonemas à sua casa, com ameaças. Na época, felizmente não tinha celular.
Eles diziam: Olha, vê lá o que você vai escrever. Foram [telefonemas] de
colegas, delegados, mas ninguém sabia ainda exatamente o que tinha acontecido
na Casa de Detenção, sabiam que tinha morrido muita gente, mas ninguém sabia
quantos tinham morrido, lembrou. As ameaças, segundo ele, terminaram quando o
laudo foi finalmente divulgado, nos primeiros dias de novembro daquele mesmo
ano.
No domingo [logo
após o massacre], seria dia de eleição [municipal] e havia uma necessidade
enorme de não se divulgar nada, pelo menos até lá. E, de fato, só foi divulgado
que o número de mortos era maior que 90 no final da tarde, quando se fecharam
as eleições, disse ele.
Elaine Patricia Cruz – Repórter da Agência Brasil –
01.10.2012