Na sociedade em que tudo se pauta pela
exibição midiática, desaparece o pudor, atestando-se o enfraquecimento do
sentimento de vergonha ligado à moral social.
Olgária Matos
Favorecimentos ilícitos, informações privilegiadas, tráfico de
influências, gratificações particulares, desvio de verbas públicas, suborno,
omissões por interesses próprios ou partidários, formação de cartéis e
negligências várias são, nas democracias modernas, práticas de corrupção e,
como tais, sujeitas às leis que regulam infrações.
Deixando-se, pois, à Justiça a função de julgar, absolver ou condenar o
governador do Distrito Federal José Roberto Arruda, em 2010, sua detenção
suscitou, como veiculado pela mídia, júbilo, como ocorreu também com a do
ex-governador Paulo Maluf, a dos proprietários da Daslu e da Schincariol,
respectivamente. Os dominantes não estão acima da lei.
Como, desde o impeachment do ex-presidente Fernando Collor até o
presente momento, o fenômeno só se tem ampliado – não se tratando apenas de
segredo de informação como antes, mas de algo com maior visibilidade agora –,
compreende-se que as diversas figuras da corrupção não são fato isolado, mas
atravessam a sociedade inteira.
Identificando nas democracias contemporâneas dispositivos que colocam as
práticas autorizadas no limiar da ilegalidade, o filósofo Walter Benjamin
anotou: “O valor venal de cada poder é calculável. Nesse contexto só se pode
falar de corrupção onde esse fenômeno se torna excessivamente manipulado. Tem
seu sistema de comando num sólido jogo entrelaçado de imprensa, órgãos
públicos, trustes, dentro de cujos limites permanece inteiramente legal”
(“Imagens de Pensamento”, Rua de Mão Única).
A violência da moeda
O dinheiro como valor hegemônico na sociedade contemporânea supostamente
promove a ascensão social, baseada exclusivamente em critérios econômicos e no
prestígio do dinheiro. Em seu livro O Processo Civilizatório, Norbert Elias
analisa os primórdios da “revolução burguesa” na França, indicando a
democratização dos costumes da corte. A burguesia, no esforço de alcançar uma
legitimidade que não fosse a do dinheiro (que ainda não se impusera como
valor), procurou “aristocratizar-se”, adotando a etiqueta e “as boas maneiras”
como medidas da polidez e da convivialidade. Como lhe faltava o universo de
tradições e méritos da nobreza, esforçou-se para ascender aos bens culturais.
Mas, com a institucionalização da sociedade de consumo, os bens
culturais, que exigiam iniciação para serem compreendidos em suas linguagens
próprias – como as artes e os saberes literários –, foram sendo abandonados e
passaram a se reger pela obsolescência constante. De onde o advento de “modas
intelectuais”. A ideologia do “novo-rico” prescinde até mesmo do “verniz da
cultura”.
A ideologia dominante em uma sociedade, como Marx observou, é a da
classe dominante, e, em nosso tempo, a dos “novos-ricos”. O “novo-rico” é
aquele que conhece o preço de todas as coisas, mas desconhece seu valor. Sob
seus auspícios, a educação produz uma cultura que atrofia a sensibilidade e o
pensamento; a educação é entendida pela ideologia do “novo-rico” como “
serviço” e como mercadoria mais ou menos barata, dos quais o novo-rico é
cliente e consumidor.
A perda da autoridade
A política institucional contemporânea participa da falência da
escolaridade e da ética que a ela se vinculava quando a educação, ao menos em
seus princípios fundadores, humanistas e republicanos, propunha,
primordialmente, formar as crianças para fazer delas adultos mais felizes e
melhores.
As detenções espetaculares de acusados de crimes do “colarinho branco”
promovem uma pseudocatarse da sociedade, de onde não estão ausentes a
agressividade e a “pulsão de morte”. Do outro lado, a estética “novo-rico”
opera com dólares nos sapatos ou maços de reais nas roupas íntimas.
Na sociedade panóptica, em que tudo se pauta pela exibição midiática,
desaparece o pudor, atestando-se o enfraquecimento do sentimento de vergonha
ligado à moral social que, por sua vez, diz respeito à “flexibilização” do
sentimento de culpa na consciência moral. O fim da autoridade paterna e o “pai
humilhado” coincidem com a sociedade infantilizada em que não se reconhece mais
a diferença entre as gerações, entre pais e filhos, masculino e feminino, bom
gosto e mau gosto. Em tempos comandados pela ideologia “novo-rico”, tudo pode
ser dito e mostrado; cada um de nós é chamado a apresentar em público atos e
sentimentos como se fossem ideias.
Mídia e difamação: o comprometimento da democracia
A República moderna e a democracia, em suas origens e fundamentos,
basearam-se, uma vez associadas, na confiança e no “franco dizer” de todos os
cidadãos, isto é, na liberdade de expressão, diversa, esta, da delação. Porque
hoje prospera a desconfiança como forma de sociabilidade, as delações
programadas e premiadas – elaboração de dossiês sensacionalistas em época
eleitoral ou denúncias por parte de funcionários e auxiliares de governo –
estão se constituindo como práticas reconhecidas e aceitas pelos poderes
instituídos e pela opinião pública, com recompensa cash e com a diminuição de
penas criminais dos delatores quando estes são criminosos condenados pela
Justiça.
O convite à delação tem uma história, cuja expressão mais próxima foi a
Revolução Francesa, que reabilitou as medidas do Ancien Régime em jornais
publicados entre 1789 e 1791, como La Dénonciation Patriote (A Denúncia
Patriótica), L´Espion de Paris (O Espião de Paris) e L’Écouteur aux Portes (O
Espreitador de Portas). Denúncias de vizinhos, cartas anônimas ou dossiês
preparados para esses fins ocorreram também durante a ocupação alemã em Paris,
na Segunda Guerra Mundial, bem como foi rotina nos regimes totalitários, na
Alemanha durante o nazismo e na URSS, convertendo-se em política de Estado sob
Stalin.
Da demagogia à difamação, do jogo com as engrenagens da Justiça ao
direcionamento da opinião pública, da obsessão com a segurança nacional ao
patriotismo perverso, da vigilância cidadã ao fim da tranquilidade individual,
da defesa do bem público à transgressão do espaço privado, a delação está
ligada aos momentos mais sombrios da história. O estudo da delação ao longo do
tempo oferece-nos suas relações com o espaço público em que se mesclam verdades
e seu contrário, informações e falsificações, intervindo diretamente na
formação da opinião pública.
Na ausência de um ministério público, a Atenas democrática antiga – a
mesma que inventou a política, o teatro e a filosofia – criou o “delator
público”, que dizia respeito à proteção do espaço comum partilhado, o qual
reinava soberano. E, para reparar seus abusos, julgava-se também o acusador,
analisando suas intenções, a classe social de que provinha e outras
circunstâncias de sua vida, podendo ele também ser condenado para o bem da
cidade, caso suas intenções fossem de vingança, estritamente subjetivas ou
particulares.
Resta saber se o recurso à delação voluntária mediante recompensa em
dinheiro não induz à corrupção – dadas as oportunidades que se oferecem para
quem procura desembaraçar-se de um adversário indesejado ou então para aquele
que se deixa comprar por ele – e, ainda mais, quando vai se tornando um meio
para o funcionamento da Justiça.
Olgária Matos – Professora titular de
filosofia na Unifesp – fevereiro de 2012
IN
“Revista Cult”, Ed. 154 – http://revistacult.uol.com.br/home/2011/02/a-democracia-moderna-e-a-estetica-da-moeda/