Cada
vez mais inclinada à direita, a opinião republicana deplora o peso excessivo do
Estado munificente e investe contra as tentativas de disciplinar as forças
simultaneamente criadoras e destrutivas do capitalismo. A visão republicana da
economia e da sociedade advoga abertamente a concorrência darwinista: a
sobrevivência do mais forte é a palavra de ordem. Tombam os fracos pelo
caminho.
Luiz Gonzaga Belluzzo
David Brooks é colunista do New
York Times e autor do livro Bobos in Paradise, um passeio
inteligente pelos caminhos materiais e espirituais dos jovens americanos de
classe alta e média alta. Boêmios e burgueses (Bourgeois),
“suas atitudes em relação a sexo, moralidade, tempo livre e trabalho tornam
difícil separar o renegado anti-establishment do homem de empresa
pró-establishment.” Brooks escreveu Bobos no auge da
euforia financeira e de celebração do individualismo narcisista e aquisitivo,
insaciável na busca permanente de status, de diferenciais de renda e do consumo
conspícuo.
A crise financeira desbaratou as
certezas e a base material em que se apoiava o sucesso desses jovens que
construíram seu paraíso nas delícias do hibridismo moral. Muitos deles perderam
os empregos nos bancos, nas consultorias, nos grandes escritórios de advocacia.
Outros não conseguem trabalho compatível com a formação que receberam. O
sistema de valores e de concepções de vida dos Bobos não
admite o fracasso como resultado da operação de forças que não controlam. Essa
válvula de compreensão da vida e de descompressão psicológica não funciona nas
subjetividades inchadas pelo individualismo narcisista. A frustração e o medo
se transmutaram em revolta contra o Outro.
Na terça-feira 19, o jornal O
Estado de S. Paulo reproduziu um artigo de David Brooks intitulado “O
que pensam os republicanos”. Os republicanos, diz Brooks, pensam que o
capitalismo americano está ameaçado pela segurança excessiva concedida aos
cidadãos pelo Estado do Bem-Estar, em detrimento do espírito de iniciativa e da
inovação. A fuzilaria dos ultraconservadores concentra a pontaria na proteção à
velhice e aos doentes. Esse peso morto precisa ser extirpado, sob pena de
entregar a sociedade americana às letargias da estagnação.
“Nos Estados
Unidos, assim como na Europa, afirmam os
republicanos, o Estado do Bem-Estar não oferece segurança nem dinamismo. A rede
de segurança é tão dispendiosa que deixará de existir para as próximas
gerações. Ao mesmo tempo, o atual modelo transfere recursos dos setores
inovadores para setores estatais já inchados, como saúde e educação. O modelo
de Bem-Estar Social privilegia a segurança em lugar da inovação. Esse modelo…
tornou-se uma máquina gigantesca que redistribui dinheiro do futuro para a
população mais velha.”
Cada vez mais inclinada à direita, a
opinião republicana deplora o peso excessivo do Estado munificente e investe
contra as tentativas de disciplinar as forças simultaneamente criadoras e
destrutivas do capitalismo. A visão republicana da economia e da sociedade
advoga abertamente a concorrência darwinista: a sobrevivência do mais forte é a
palavra de ordem. Tombam os fracos pelo caminho.
A ação do Estado, particularmente sua
prerrogativa fiscal, tem sido contestada pelo intenso processo de
homogeneização ideológica de celebração do individualismo que se opõe a
qualquer interferência no processo de diferenciação da riqueza, da renda e do
consumo efetuado por meio do mercado capitalista.
Cresce a
resistência à utilização de transferências
fiscais e previdenciárias, aumentando ao mesmo tempo as restrições à capacidade
impositiva e de endividamento do setor público. Isso porque a globalização, ao
tornar mais livre o espaço de circulação da riqueza e da renda dos grupos
integrados, desarticulou a velha base tributária das políticas keynesianas,
erigida sobre a prevalência dos impostos diretos sobre a renda e a riqueza.
A ética da solidariedade é substituída
pela ética da eficiência e, dessa forma, os programas de redistribuição de
renda, reparação de desequilíbrios sociais e assistência a grupos
marginalizados têm encontrado forte resistência na casamata republicana. Não há
dúvida de que esse novo individualismo tem sua base social originária na grande
classe média produzida pela longa prosperidade e pelos processos mais
igualitários que predominaram na era keynesiana. Hoje, o novo
individualismo encontra reforço e sustentação no aparecimento de milhões de
empresários terceirizados e autonomizados, criaturas das mudanças nos métodos
de trabalho e na organização da grande empresa.
A ação do Estado é vista como contraproducente
pelos bem-sucedidos e integrados, mas como insuficiente pelos desmobilizados e
desprotegidos. Essas duas percepções convergem na direção da “deslegitimação”
do poder administrativo e na desvalorização da política. Aparentemente estamos
numa situação histórica em que a “grande transformação” ocorre no sentido
contrário ao previsto por Polanyi (1980): a economia trata de se libertar dos
grilhões da sociedade.
Luiz Gonzaga Beluzzo – Economista – 01.07.2012
IN “Carta Capital” – http://www.cartacapital.com.br/economia/o-que-pensam-os-republicanos/
Ecos da era Reagan no Brasil de Dilma
Nas linhas e entrelinhas da grande, média
e pequena imprensa saboreio as conjeturas de grandes economistas brasileiros
reunidos em tertúlia no Instituto FHC. Cinco dos mais respeitados doutores da
Ciência Triste desfiaram diagnósticos e recomendações de política econômica.
Lançaram maldições e condenações aos caminhos e descaminhos da economia
brasileira no período recente.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo
Entre as propostas ilustradas figuravam a redução de impostos para estimular a
poupança privada e uma reforma constitucional para afastar as ilusões inscritas
na Constituição de 1988. Na avaliação desses economistas, a Constituição
brasileira consagrou direitos econômicos e sociais "europeus".
Os reparos e as recomendações lembram as promessas da "economia da
oferta", a inovação teórica do conservadorismo dos anos 70 nos Estados
Unidos. Seus adeptos sustentavam que a insistência no estímulo fiscal associada
à ação dos sindicatos deu origem simultaneamente à estagnação e à inflação,
matrizes do desemprego a longo prazo. Por essas e outras, a "reestruturação
conservadora" preconizava a redução de impostos para os ricos
"poupadores" e a flexibilização dos mercados de trabalho. A curva de
Laffer acusava os sistemas de tributação progressiva de desestimular a poupança
e debilitar o impulso privado ao investimento, enquanto os sindicatos teimavam
em prejudicar os trabalhadores ao pretender fixar a taxa de salário fora do
preço de equilíbrio. Nos mercados de bens, a palavra de ordem era submeter as
empresas à concorrência global, eliminando os resquícios de protecionismo e
quaisquer políticas deliberadas de fomento industrial.
Submetidos à disciplina dos mercados - tão flexíveis quanto vigilantes -
os trabalhadores livres, empresas enxutas e governos austeros receberiam a
recompensa de lucros estáveis, empregos de alta produtividade, salários reais
crescentes, orçamento equilibrado e descompressão dos mercados financeiros,
agora aliviados das forças de "expulsão" da demanda de financiamento
privado pela sanha do endividamento público. Para os mercados financeiros, os
conservadores acenavam, portanto, com as maravilhas da desregulamentação e a
eliminação das barreiras à entrada e saída de capital-dinheiro de modo que a
taxa de juros pudesse exprimir, sem distorções, a oferta e a demanda de
"poupança" nos espaços integrados da finança mundial.
As reformas deveriam ser levadas a cabo num ambiente macroeconômico em
que a política fiscal esteja encaminhada para uma situação de equilíbrio
intertemporal sustentável e a política monetária controlada por um banco
central independente. Essas condições macroeconômicas significam que as duas
dimensões públicas das economias de mercado - a moeda e as finanças do Estado -
devem ser administradas de forma a não perturbar o funcionamento das forças que
sempre reconduzem a economia privada ao equilíbrio de longo prazo.
O lero-lero do "trickle down" não entregou o prometido. A
prodigalidade de isenções e favores fiscais para as camadas endinheiradas fez
pouco ou quase nada para elevar a taxa de investimento no território americano,
mas suscitou o ingurgitamento da esfera financeira, a multiplicação de paraísos
fiscais, a migração da grande empresa para as regiões de baixos salários, os
sucessivos déficits fiscais e a ampliação do déficit em conta corrente.
O jogo da competitividade global se aliou às novas normas de governança
das empresas para concentrar o poder nas mãos dos acionistas e dos
administradores da riqueza financeira. As empresas ampliaram expressivamente a
posse dos ativos financeiros, não como reserva de capital para efetuar futuros
investimentos fixos, mas como forma de alterar a estratégia de administração
dos lucros acumulados e do endividamento. O objetivo de maximizar a geração de
caixa determinou o encurtamento do horizonte empresarial. A expectativa de
variação dos preços dos ativos financeiros passou a exercer um papel muito
relevante nas decisões das empresas. Os lucros financeiros superaram com folga
os lucros operacionais. A gestão empresarial foi, assim, submetida aos ditames
dos ganhos patrimoniais de curto prazo e a acumulação financeira impôs suas
razões às decisões de investimento, aquelas geradoras de emprego e renda para a
patuleia.
Observadas do ponto de vista das instituições e dos instrumentos
financeiros, estas transformações na riqueza espelham a maior importância da
finança direta e "securitizada" em relação ao crédito bancário. A
desregulamentação financeira permitiu que fossem apagadas as fronteiras
demarcadas depois da crise dos anos 30 entre bancos comerciais, bancos de
investimento, seguradoras e instituições de poupança (as "savings and
loans"). Transformados agora em supermercados financeiros, os bancos
cuidaram de avançar na "securitização" de créditos e se envolver no
financiamento de posições nos mercados de capitais e em operações "fora do
balanço" que envolvem derivativos. Isso foi acompanhado por uma espiral de
alavancagem na cadeia alimentar da finança: bancos comerciais, fundos e bancos
de investimento.
A concorrência entre as instituições financeiras foi um fator decisivo
na atração da clientela e na aceleração das inovações financeiras. Os
administradores de portfólios, na ânsia de bater os concorrentes, procuravam
exibir as melhores performances. Para tanto, abriram espaço em suas carteiras
para produtos e ativos de maior risco. A busca obsessiva por resultados de
curto prazo estimulou a utilização dos fundos próprios das empresas (lucro e
reservas de depreciação) para a recompra de ações e pagamento de dividendos. As
exigências dos mercados de ações impuseram às empresas sucessivas rodadas de
"downsizing". A queima dos melhores postos de trabalho determinou a
estagnação dos rendimentos da classe média para baixo, abrindo espaço para
agravar a desigualdade e enredar as famílias nas malhas do endividamento
crescente. A procissão de desenganos foi acompanhada da ampliação dos déficits
fiscais e em conta corrente, para não falar dos danos à estrutura industrial e
da consequente transição dos Estados Unidos de país credor para devedor.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo – ex-secretário de Política Econômica
do Ministério da Fazenda, professor titular do Instituto de Economia da
Unicamp – 06.09.2011
IN “Valor Econômico” – http://www.valor.com.br/opiniao/999248/ecos-da-era-reagan-no-brasil-de-dilma