sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O que pensam os republicanos?


Cada vez mais inclinada à direita, a opinião republicana deplora o peso excessivo do Estado munificente e investe contra as tentativas de disciplinar as forças simultaneamente criadoras e destrutivas do capitalismo. A visão republicana da economia e da sociedade advoga abertamente a concorrência darwinista: a sobrevivência do mais forte é a palavra de ordem. Tombam os fracos pelo caminho.

Luiz Gonzaga Belluzzo
David Brooks é colunista do New York Times e autor do livro Bobos in Paradise, um passeio inteligente pelos caminhos materiais e espirituais dos jovens americanos de classe alta e média alta. Boêmios e burgueses (Bourgeois), “suas atitudes em relação a sexo, moralidade, tempo livre e trabalho tornam difícil separar o renegado anti-establishment do homem de empresa pró-establishment.” Brooks escreveu Bobos no auge da euforia financeira e de celebração do individualismo narcisista e aquisitivo, insaciável na busca permanente de status, de diferenciais de renda e do consumo conspícuo.
A crise financeira desbaratou as certezas e a base material em que se apoiava o sucesso desses jovens que construíram seu paraíso nas delícias do hibridismo moral. Muitos deles perderam os empregos nos bancos, nas consultorias, nos grandes escritórios de advocacia. Outros não conseguem trabalho compatível com a formação que receberam. O sistema de valores e de concepções de vida dos Bobos não admite o fracasso como resultado da operação de forças que não controlam. Essa válvula de compreensão da vida e de descompressão psicológica não funciona nas subjetividades inchadas pelo individualismo narcisista. A frustração e o medo se transmutaram em revolta contra o Outro.
Na terça-feira 19, o jornal O Estado de S. Paulo reproduziu um artigo de David Brooks intitulado “O que pensam os republicanos”. Os republicanos, diz Brooks, pensam que o capitalismo americano está ameaçado pela segurança excessiva concedida aos cidadãos pelo Estado do Bem-Estar, em detrimento do espírito de iniciativa e da inovação. A fuzilaria dos ultraconservadores concentra a pontaria na proteção à velhice e aos doentes. Esse peso morto precisa ser extirpado, sob pena de entregar a sociedade americana às letargias da estagnação.
“Nos Estados Unidos, assim como na Europa, afirmam os republicanos, o Estado do Bem-Estar não oferece segurança nem dinamismo. A rede de segurança é tão dispendiosa que deixará de existir para as próximas gerações. Ao mesmo tempo, o atual modelo transfere recursos dos setores inovadores para setores estatais já inchados, como saúde e educação. O modelo de Bem-Estar Social privilegia a segurança em lugar da inovação. Esse modelo… tornou-se uma máquina gigantesca que redistribui dinheiro do futuro para a população mais velha.”
Cada vez mais inclinada à direita, a opinião republicana deplora o peso excessivo do Estado munificente e investe contra as tentativas de disciplinar as forças simultaneamente criadoras e destrutivas do capitalismo. A visão republicana da economia e da sociedade advoga abertamente a concorrência darwinista: a sobrevivência do mais forte é a palavra de ordem. Tombam os fracos pelo caminho.
A ação do Estado, particularmente sua prerrogativa fiscal, tem sido contestada pelo intenso processo de homogeneização ideológica de celebração do individualismo que se opõe a qualquer interferência no processo de diferenciação da riqueza, da renda e do consumo efetuado por meio do mercado capitalista.
Cresce a resistência à utilização de transferências fiscais e previdenciárias, aumentando ao mesmo tempo as restrições à capacidade impositiva e de endividamento do setor público. Isso porque a globalização, ao tornar mais livre o espaço de circulação da riqueza e da renda dos grupos integrados, desarticulou a velha base tributária das políticas keynesianas, erigida sobre a prevalência dos impostos diretos sobre a renda e a riqueza.
A ética da solidariedade é substituída pela ética da eficiência e, dessa forma, os programas de redistribuição de renda, reparação de desequilíbrios sociais e assistência a grupos marginalizados têm encontrado forte resistência na casamata republicana. Não há dúvida de que esse novo individualismo tem sua base social originária na grande classe média produzida pela longa prosperidade e pelos processos mais igualitários que predominaram na era keynesiana. Hoje, o novo individualismo encontra reforço e sustentação no aparecimento de milhões de empresários terceirizados e autonomizados, criaturas das mudanças nos métodos de trabalho e na organização da grande empresa.
A ação do Estado é vista como contraproducente pelos bem-sucedidos e integrados, mas como insuficiente pelos desmobilizados e desprotegidos. Essas duas percepções convergem na direção da “deslegitimação” do poder administrativo e na desvalorização da política. Aparentemente estamos numa situação histórica em que a “grande transformação” ocorre no sentido contrário ao previsto por Polanyi (1980): a economia trata de se libertar dos grilhões da sociedade.


Luiz Gonzaga Beluzzo – Economista – 01.07.2012









Ecos da era Reagan no Brasil de Dilma

Nas linhas e entrelinhas da grande, média e pequena imprensa saboreio as conjeturas de grandes economistas brasileiros reunidos em tertúlia no Instituto FHC. Cinco dos mais respeitados doutores da Ciência Triste desfiaram diagnósticos e recomendações de política econômica. Lançaram maldições e condenações aos caminhos e descaminhos da economia brasileira no período recente.


 Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo
Entre as propostas ilustradas figuravam a redução de impostos para estimular a poupança privada e uma reforma constitucional para afastar as ilusões inscritas na Constituição de 1988. Na avaliação desses economistas, a Constituição brasileira consagrou direitos econômicos e sociais "europeus".
Os reparos e as recomendações lembram as promessas da "economia da oferta", a inovação teórica do conservadorismo dos anos 70 nos Estados Unidos. Seus adeptos sustentavam que a insistência no estímulo fiscal associada à ação dos sindicatos deu origem simultaneamente à estagnação e à inflação, matrizes do desemprego a longo prazo. Por essas e outras, a "reestruturação conservadora" preconizava a redução de impostos para os ricos "poupadores" e a flexibilização dos mercados de trabalho. A curva de Laffer acusava os sistemas de tributação progressiva de desestimular a poupança e debilitar o impulso privado ao investimento, enquanto os sindicatos teimavam em prejudicar os trabalhadores ao pretender fixar a taxa de salário fora do preço de equilíbrio. Nos mercados de bens, a palavra de ordem era submeter as empresas à concorrência global, eliminando os resquícios de protecionismo e quaisquer políticas deliberadas de fomento industrial.
Submetidos à disciplina dos mercados - tão flexíveis quanto vigilantes - os trabalhadores livres, empresas enxutas e governos austeros receberiam a recompensa de lucros estáveis, empregos de alta produtividade, salários reais crescentes, orçamento equilibrado e descompressão dos mercados financeiros, agora aliviados das forças de "expulsão" da demanda de financiamento privado pela sanha do endividamento público. Para os mercados financeiros, os conservadores acenavam, portanto, com as maravilhas da desregulamentação e a eliminação das barreiras à entrada e saída de capital-dinheiro de modo que a taxa de juros pudesse exprimir, sem distorções, a oferta e a demanda de "poupança" nos espaços integrados da finança mundial.
As reformas deveriam ser levadas a cabo num ambiente macroeconômico em que a política fiscal esteja encaminhada para uma situação de equilíbrio intertemporal sustentável e a política monetária controlada por um banco central independente. Essas condições macroeconômicas significam que as duas dimensões públicas das economias de mercado - a moeda e as finanças do Estado - devem ser administradas de forma a não perturbar o funcionamento das forças que sempre reconduzem a economia privada ao equilíbrio de longo prazo.
O lero-lero do "trickle down" não entregou o prometido. A prodigalidade de isenções e favores fiscais para as camadas endinheiradas fez pouco ou quase nada para elevar a taxa de investimento no território americano, mas suscitou o ingurgitamento da esfera financeira, a multiplicação de paraísos fiscais, a migração da grande empresa para as regiões de baixos salários, os sucessivos déficits fiscais e a ampliação do déficit em conta corrente.
O jogo da competitividade global se aliou às novas normas de governança das empresas para concentrar o poder nas mãos dos acionistas e dos administradores da riqueza financeira. As empresas ampliaram expressivamente a posse dos ativos financeiros, não como reserva de capital para efetuar futuros investimentos fixos, mas como forma de alterar a estratégia de administração dos lucros acumulados e do endividamento. O objetivo de maximizar a geração de caixa determinou o encurtamento do horizonte empresarial. A expectativa de variação dos preços dos ativos financeiros passou a exercer um papel muito relevante nas decisões das empresas. Os lucros financeiros superaram com folga os lucros operacionais. A gestão empresarial foi, assim, submetida aos ditames dos ganhos patrimoniais de curto prazo e a acumulação financeira impôs suas razões às decisões de investimento, aquelas geradoras de emprego e renda para a patuleia.
Observadas do ponto de vista das instituições e dos instrumentos financeiros, estas transformações na riqueza espelham a maior importância da finança direta e "securitizada" em relação ao crédito bancário. A desregulamentação financeira permitiu que fossem apagadas as fronteiras demarcadas depois da crise dos anos 30 entre bancos comerciais, bancos de investimento, seguradoras e instituições de poupança (as "savings and loans"). Transformados agora em supermercados financeiros, os bancos cuidaram de avançar na "securitização" de créditos e se envolver no financiamento de posições nos mercados de capitais e em operações "fora do balanço" que envolvem derivativos. Isso foi acompanhado por uma espiral de alavancagem na cadeia alimentar da finança: bancos comerciais, fundos e bancos de investimento.
A concorrência entre as instituições financeiras foi um fator decisivo na atração da clientela e na aceleração das inovações financeiras. Os administradores de portfólios, na ânsia de bater os concorrentes, procuravam exibir as melhores performances. Para tanto, abriram espaço em suas carteiras para produtos e ativos de maior risco. A busca obsessiva por resultados de curto prazo estimulou a utilização dos fundos próprios das empresas (lucro e reservas de depreciação) para a recompra de ações e pagamento de dividendos. As exigências dos mercados de ações impuseram às empresas sucessivas rodadas de "downsizing". A queima dos melhores postos de trabalho determinou a estagnação dos rendimentos da classe média para baixo, abrindo espaço para agravar a desigualdade e enredar as famílias nas malhas do endividamento crescente. A procissão de desenganos foi acompanhada da ampliação dos déficits fiscais e em conta corrente, para não falar dos danos à estrutura industrial e da consequente transição dos Estados Unidos de país credor para devedor.


Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo –  ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, professor titular do Instituto de Economia da Unicamp – 06.09.2011