Abre-se uma janela de
oportunidade para a América Latina, mas o seu aproveitamento exige o
enfrentamento do legado neoliberal. Os efeitos do projeto neoliberal na América
Latina foram drásticos: desnacionalização, desindustrialização, aprofundamento
da condição periférica, aumento da pobreza e da precarização do trabalho,
autoritarismo e instabilidade política, crise cambial e do balanço de
pagamentos. A partir da crise que se inicia na região em 1998 e se prolonga até
2003 surgem novas forças sociais e políticas na região que buscam enfrentar o
legado neoliberal.
Carlos Eduardo Martins
Ao contrário do que colocam muitos analistas, a economia mundial
vem vivenciando um período de crescimento de longo prazo desde 1994, pontuado
por crises curtas, mas profundas e importantes, como as de 1998, 2001 e
principalmente a de 2008-09. Entretanto, este período de crescimento traz
profundas modificações que lentamente vão se estabelecendo no mundo
contemporâneo:
a) O deslocamento do eixo de crescimento econômico do capitalismo
anglo-saxão, da Europa Ocidental e das potências marítimas para o Leste
asiático e para os hinterlands, potências territoriais de dimensão
continental/regional. Entre os hinterlands, destaca-se a China como o maior e
mais antigo da história da humanidade;
b) O deslocamento da unipolaridade para multipolaridade como
tendência mais dinâmica das relações internacionais contemporâneas, o que abre
o espaço para o regionalismo como um dos fundamentos da reorganização
multipolar da economia mundial e de sua divisão internacional do trabalho.
Torna-se cada vez mais evidente a falácia que foi a pretensão de organizar a
economia mundial, desde 1980, sob a unipolaridade do poder estadunidense,
pautada no uso de seu Estado para o controle dos fluxos de capitais e dissuasão
de conflitos internacionais e autonomias nacionais. O resultado deste projeto
tem sido o brutal endividamento público e a escalada dos déficits comerciais e
em conta corrente dos Estados Unidos. O aprofundamento estrutural desta dívida
e destes déficits a cada década, isto é, de seu peso relativo no PIB
estadunidense, limita a autonomia financeira e militar deste país, debilitando
o dólar como moeda mundial e o seu poder independente de coerção;
c) A crise do neoliberalismo como fundamento ideológico da
hegemonia estadunidense e das velhas potências ocidentais. O neoliberalismo
teve por objetivo central desmontar a economia política do pleno emprego e sua
pressão negativa sobre a taxa de lucro a partir dos anos fim dos anos 1960.
Isto ganhou ainda mais importância com as mudanças no perfil da força de
trabalho e do emprego trazidas com a mundialização da revolução
científico-técnica que lhes vem agregando dimensões cada vez mais intensivas em
conhecimento, impulsionando para acima o valor da força de trabalho. Trata-se de
não pagar parte do valor da força de trabalho em ascensão e para isso retira-se
parte do investimento do ciclo produtivo do capital deslocando-o para o setor
financeiro. Cria-se um mercado financeiro lastreado em títulos da dívida
pública ou, em títulos privados, respaldados em ultima instância pelo monopólio
da violência estatal que lhes absorve os créditos podres, pretendendo-lhes
conferir liquidez, em função de supostos riscos sistêmicos. O resultado tem
sido altos níveis de desemprego estrutural, particularmente entre os jovens,
superexploração do trabalho e aumento da desigualdade, baixas taxas de
investimento, queda nas taxas de crescimento econômico, parasitismo e perda de
dinamismo produtivo internacional;
d) A crise da divisão internacional do trabalho estabelecida pelo
capitalismo histórico em seus 500 anos de existência. A finaceirização é
insuficiente para responder ao desenvolvimento da revolução científico-técnica
e coloca em cheque a apropriação e hierarquização internacional de novas etapas
das forças produtivas pelas potências ocidentais e os Estados Unidos. A pressão
competitiva leva à busca de força de trabalho qualificada e barata abre o
espaço para o deslocamento de parte do capital que não retorna ao ciclo
produtivo nos países centrais aos países da periferia capazes de oferecê-la.
Para isto, estes devem romper com as relações de dependência e a
superexploração de trabalho que lhe corresponde, o que lhes impede o aumentar o
valor da força de trabalho, principal fundamento da produtividade da economia
contemporânea, a níveis internacionalmente competitivos;
e) O crescimento da intervenção do Estado que vai se
tornando no século XXI o principal ator da economia mundial, tendendo a
representar mais da metade do PIB mundial. Este crescimento se faz, nos polos
decadentes da economia mundial, para atender ao deslocamento estrutural do
capital do circuito produtivo ao financeiro; ou para resgatar a predominância
do circuito produtivo sobre o financeiro da acumulação através de forte atuação
e expansão das empresas públicas, nos polos emergentes da mesma. O Estado ainda
é pressionado a expandir seus gastos pelas demandas sociais emanadas da
reivindicação ao direito público à saúde, educação, seguridade e lazer. Nos
polos decadentes da economia mundial, as altas somas comprometidas com a
expansão da dívida pública ou com o pagamento de juros restringem os gastos
sociais e buscam financiá-los pelo aumento da tributação incidente sobre seus
beneficiários; nos polos emergentes da economia mundial abre-se o espaço para
articulação virtuosa entre expansão do Estado, gasto social e crescimento
econômico.
Abre-se uma janela de oportunidade para a América Latina, mas o
seu aproveitamento exige o enfrentamento do legado neoliberal. Os efeitos do
projeto neoliberal na América Latina foram drásticos: desnacionalização,
desindustrialização, aprofundamento da condição periférica, aumento da pobreza
e da precarização do trabalho, autoritarismo e instabilidade política, crise
cambial e do balanço de pagamentos. A partir da crise que se inicia na região
em 1998 e se prolonga até 2003 surgem novas forças sociais e políticas na
região que buscam enfrentar o legado neoliberal de duas formas: radicalmente ou
gradualmente. Isto deu lugar, no primeiro caso, ao ressurgimento do
nacionalismo revolucionário que assume a integração regional como parte central
de seu projeto e que tem diversos matizes conforme a relação e o grau de
autonomia entre os seus dirigentes políticos, a burocracia estatal e os
movimentos populares. Este projeto tem sua expressão mais radical na Venezuela
de Chavez, na Bolívia de Evo Morales, no Equador de Rafael Correa, mas também
se expressa de forma mais moderada na Argentina dos Kirchners, ou no Paraguai
de Lugo. Trata-se de restabelecer o papel do Estado na organização de economia
por meio da nacionalização dos recursos naturais estratégicos ou da apropriação
pública da maior parte da renda mineira ou da terra; da nacionalização ou forte
presença reguladora em serviços essenciais como eletricidade, água,
telecomunicações e infra-estrutura; da criação de uma arquitetura financeira e
empresarial e de políticas públicas voltada para o estabelecimento de altas
taxas de investimento direcionadas à expansão do mercado interno, redução de
assimetrias, desigualdades, pobreza e elevação do valor da força de trabalho,
mediante aumento do salario direto e indireto (educação, saúde, seguridade,
transporte e infra-estrutura públicos). Isto requer altas escalas produtivas,
utilização de recursos públicos, criação de banco e fundo regionais, forte
atuação das empresas estatais – tradicionalmente as principais investidoras em
infra-estrutura e P&D da região – e criação de mecanismos de
democracia participativa. Tais processos se afirmam na organização da ALBA, na
proposição de uma UNASUL solidária e cooperativa, num Banco do Sul que utilize
recursos públicos proporcionais ao peso econômico de cada Estado e opere de
forma distinta que os bancos privados para concessão de créditos e
financiamentos a dimensões deprimidas dos mercados regionais, na regulação
democrática dos meios de comunicação de massa e nos processos constituintes
populares que têm permitido avanços constitucionais e nas formas de governo em
Venezuela, Bolívia e Equador.
No segundo caso, se impõe um enfoque gradualista que conserva
parte da economia política neoliberal, ainda que busque matizá-la através de
políticas sociais e da politica externa. O principal caso na região é o Brasil
de Lula e Dilma. Mantém taxas de juros acima do crescimento do PIB, ainda que
as tenha diminuído lentamente, utilizando para isso o enfoque macroeconômico
anti-cíclico nos períodos de crise; mantém taxas de câmbio flutuantes que levam
a sobrevalorização do real nos períodos de ingresso de capitais estrangeiros no
país, debilitando a indústria e as cadeias produtivas de maior valor agregado.
No plano internacional, joga um papel centrista no que tange à região, buscando
atuar como intermediário entre o alinhamento aos Estados Unidos, praticado
pelos neoliberais, expresso no México panista, na Colômbia de Santos e no Chile
de Piñeda, e o anti-imperialismo do nacionalismo revolucionário. Abre espaços
ainda para a multipolaridade diversificando o comércio exterior e somando-se
aos BRICs, que lentamente vai aprofundando seu nível de articulação
institucional e ensaiando alternativas financeiras por dentro e por fora aos
organismos internacionais controlados pelas potencias ocidentais, como FMI e
Banco Mundial, e ao padrão monetário ancorado ao dólar. A política externa
constitui o elemento mais progressista de composição do Estado brasileiro e se
contrapõe às tendências subimperialistas, ancoradas principalmente no BNDES e
nas grandes empresas e banco estatais, ou neoliberais, assentadas no Banco
Central e no comando das políticas monetária e cambial. Por diversas vezes
impôs derrotas às resistências de parte da burocracia estatal às demandas dos
governos nacionalistas, como nos casos da nacionalização do gás boliviano e
renegociação dos seus preços e da revisão dos termos do Tratado de Assunção.
Todavia a sua força no governo brasileiro é insuficiente para impulsar uma
aproximação maior ao projeto de integração regional oriundo do nacionalismo
radical. Um caso típico é o do Banco do Sul, onde as pressões brasileiras
limitam sua atuação como banco capaz de operar para reduzir assimetrias e
desigualdades. Se o Brasil, aceita o sistema de um país um voto, o qualifica –
exigindo o apoio de 70% do capital subscrito para aprovar empreendimentos de
maior porte, isto é, acima de US$ 70 milhões -, e por outro lado aporta
recursos proporcionais muito inferiores aos de países vizinhos para a sua
capitalização, além de exigir que o banco funcione segundo os critérios de
rentabilidade dos bancos privados, captando recursos no mercado financeiro. Tal
postura debilita enormemente a possibilidade de construção de uma arquitetura
financeira solidária que priorize o desenvolvimento do mercado regional como
instrumento indispensável para a construção de um polo de acumulação
sustentável num mundo com fortes tendências estruturais para a multipolaridade.
A construção de um processo de integração regional capaz de
impulsionar a inserção internacional soberana da região exige:
a) A elevação das taxas de investimento da região e a sua
orientação para infra-estrutura, saúde, educação, habitação, ciência e
tecnologia, lazer, erradicação da pobreza e diminuição dos níveis dos altos
níveis de desigualdade social;
b) A organização de um arranjo produtivo e financeiro centrado na
forte participação das empresas e bancos estatais. As empresas estatais são
historicamente as grandes investidoras em infra-estrutura da região e podem ser
um potente instrumento contra os processos de financeirização do capital,
investindo os excedentes econômicos no setor produtivo. São ainda chaves para a
construção de um poderoso sistema de inovação da região, uma vez que as
empresas multinacionais concentram quase 90% de seus investimentos em P&D
em suas matrizes. Para isso devem se articular em nível continental
potencializando suas escalas produtivas.
c) A nacionalização dos recursos nacionais estratégicos como
instrumento de potencialização da renda mineira para elevar os ingressos obtidos
no mercado internacional, reverter a deterioração das trocas e promover
recursos para o desenvolvimento social, ciência e tecnologia. Tal processo
constitui elemento crucial para evitar um processo de desenvolvimento
extrativista e fortemente deletério para o meio ambiente
A elaboração de uma nova arquitetura financeira regional, baseada
em bancos públicos de desenvolvimento, com critérios de alocação de recursos
solidários e distintos à rentabilidade privada; num fundo regional de
estabilização de nossas economias que propiciem uma alternativa aos organismos
internacionais tradicionais; e na configuração de uma moeda regional de
transações que configure uma alternativa ao dólar e esteja baseada numa cesta
de moedas nacionais que não retire destes estados sua autonomia na política
cambial.
Carlos Eduardo Martins - Doutor em Sociologia pela
Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto e chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), coordenador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e
Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ), coordenador do Grupo de Integração e União
Sul-Americana do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e
pesquisador da Cátedra e Rede Unesco/UNU de Economia Global e Desenvolvimento
Sustentável (Reggen) – 2012
IN “Boitempo editorial” – http://boitempoeditorial.wordpress.com/category/colunas/carlos-eduardo-martins/