a manifestação concisa sobre o mérito da causa é acompanhada de longos
excursos sobre problemas brasileiros. Há ministros que dissertam sobre a
substância da democracia, exaltando valores como legalidade, retidão e
transparência. Há outros que fustigam a corrupção e, em geral, a falta de ética
na política. Outros ministram aulas de história, referindo-se, por exemplo, aos
males herdados do colonialismo e ao patrimonialismo brasileiro como
condicionantes que permitem interpretar os fatos julgados na ação. Também é
alvo de reflexões e críticas o sistema político brasileiro e suas mutáveis
alianças, típicas do presidencialismo de coalizão.
Dimitri Dimoulis
Nos últimos dias, os debates jurídicos sobre a Ação
Penal 470 concentraram-se em dois temas. Houve controvérsias sobre as
exigências de clareza e objetividade das provas penais. Discutiu-se também
muito sobre os requisitos e os riscos da teoria do domínio do fato no direito
penal garantista.
Foi menos comentado um elemento que predomina nos
votos dos ministros vogais, isto é, dos que votam após relator e revisor. A
apresentação oral desses votos é comparativamente curta e, na substância,
repete elementos de prova e interpretações jurídicas do relator e do revisor.
O interessante é que a manifestação concisa sobre o
mérito da causa é acompanhada de longos excursos sobre problemas brasileiros.
Há ministros que dissertam sobre a substância da democracia, exaltando valores
como legalidade, retidão e transparência. Há outros que fustigam a corrupção e,
em geral, a falta de ética na política. Outros ministram aulas de história,
referindo-se, por exemplo, aos males herdados do colonialismo e ao
patrimonialismo brasileiro como condicionantes que permitem interpretar os
fatos julgados na ação. Também é alvo de reflexões e críticas o sistema
político brasileiro e suas mutáveis alianças, típicas do presidencialismo de
coalizão. Lamentou-se também a falha ética na estratégia de advogados que
admitiram crimes menores (e prescritos) de seus clientes para negar
envolvimento em crimes mais graves (e ainda puníveis).
Usando expressões fortes, metáforas e citações
literárias, a maioria dos ministros considera que é tarefa do tribunal oferecer
lições de ética política e social. O STF exerce abertamente uma função
pedagógica que amplia de duas maneiras a competência de uma Corte em matéria
penal. Primeiro, o tribunal considera-se não somente guardião jurídico da
Constituição, mas também guardião moral da higidez da vida pública. Segundo, o
STF considera que extensas argumentações políticas e sociológicas constituem
fundamento válido de uma sentença penal.
Essa opção teve repercussão social positiva,
tornando-se o STF um novo tribuno do povo. Mas não está isento de riscos. Pois
mostra que o STF é um tribunal que, além de decidir causas com interesse
político, decide com base em considerações políticas. Esse é o risco da
"pedagogia do bem".
Dimitri Dimoulis – Professor da Escola de Direito de São Paulo da FGV e Diretor do
Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais – 11.10.2012
IN “O Estado de São Paulo” – http://estadao.br.msn.com/ultimas-noticias/mensalao/story.aspx?cp-documentid=254171653
O
golpe imaginário de Ayres Britto
não há
e nunca houve um projeto de golpe no governo Lula. Nem de revolução. Nem de
continuísmo chavista. Nem de alteração institucional que pudesse ampliar seus
poderes de alguma maneira.
Lula
poderia ter ido as ruas pedir o terceiro mandato. Não foi e não deixou que
fossem. Voltou para São Bernardo mas, com uma história maior do que qualquer
outro político brasileiro, não o deixam em paz. Essa é a verdade. Temos um ex
grande demais para o papel. Isso porque o PT quer extrair dele o que puder de
prestígio e popularidade. A oposição quer o contrário. Sabe que sua herança é
um obstáculo imenso aos planos de retorno ao poder.
Paulo
Moreira Leite
Confesso que ainda estou chocado com o voto
de Ayres Britto, ao condenar oito réus do mensalão, ontem.
O ministro disse: “[O objetivo do esquema
era] um projeto de poder quadrienalmente quadruplicado. Projeto de poder de
continuísmo seco, raso. Golpe, portanto”
Denunciar golpes de Estado em curso é um
dever de quem tem compromissos com a democracia. Denunciar golpes de Estado
imaginários é um recurso frequente quando se pretende promover uma ruptura
institucional.
O caso mais recente envolveu Manoel Zelaya,
o presidente de Honduras. Em 2009 ele foi arrancado da cama e, ainda de pijama,
conduzido de avião para um país vizinho. Acusava-se Zelaya de querer dar um
golpe para mudar a Constituição e permanecer no poder. Uma denúncia tão fajuta
que – graças ao Wikileaks – ficamos sabendo que até a embaixada dos EUA definiu
a queda de Zelaya como golpe. Mais tarde, ao reavaliar o que mais convinha a
seus interesses de potência, a Casa Branca mudou de lado e encontrou argumentos
para justificar a nova postura, fazendo a clássica conta de chegar para arrumar
fatos e os argumentos.
Em 31 de março de 64, tivemos um golpe de
Estado de verdade, que jogou o país em 21 anos de ditadura. O golpe foi
preparado pela denúncia permanente de um golpe imaginário, que seria preparado
por João Goulart para transformar o país numa “república sindicalista.” Basta reconstituir
os passos da conspiração civil-militar para reconhecer: o toque de prontidão do
golpismo consistia em denunciar projetos anti democráticos de Jango.
Considerando antecedentes conhecidos, o
voto de Ayres Britto é preocupante porque fora da realidade.
Vamos afirmar: não há e nunca houve um
projeto de golpe no governo Lula. Nem de revolução. Nem de continuísmo
chavista. Nem de alteração institucional que pudesse ampliar seus poderes de
alguma maneira.
Lula poderia ter ido as ruas pedir o
terceiro mandato. Não foi e não deixou que fossem. Voltou para São Bernardo
mas, com uma história maior do que qualquer outro político brasileiro, não o
deixam em paz. Essa é a verdade. Temos um ex grande demais para o papel. Isso
porque o PT quer extrair dele o que puder de prestígio e popularidade. A oposição
quer o contrário. Sabe que sua herança é um obstáculo imenso aos planos de
retorno ao poder.
Ouvido pelo site Consultor Jurídico, o
professor Celso Bandeira de Mello, um dos principais advogados brasileiros, deu
uma entrevista sobre o mensalão, ainda no começo do processo:
ConJur — Como o senhor vê o processo do
mensalão?
Celso Antônio Bandeira de Mello − Para ser
bem sincero, eu nem sei se o mensalão existe. Porque houve evidentemente um
conluio da imprensa para tentar derrubar o presidente Lula na época. Portanto,
é possível
que o mensalão seja em parte uma criação da imprensa. Eu não estou dizendo que é, mas não posso excluir que não seja.
Bandeira de Mello é amigo e conselheiro de Lula. Foi ele quem indicou Ayres Britto para o Supremo. A nomeação de Brito – e de Joaquim Barbosa, de Cesar Pelluzzo – ocorreu na mesma época em que Marcos Valério e Delúbio Soares andavam pelo Brasil para, segundo o presidente do Supremo, arrumar dinheiro para o “continuísmo seco, raso.”
que o mensalão seja em parte uma criação da imprensa. Eu não estou dizendo que é, mas não posso excluir que não seja.
Bandeira de Mello é amigo e conselheiro de Lula. Foi ele quem indicou Ayres Britto para o Supremo. A nomeação de Brito – e de Joaquim Barbosa, de Cesar Pelluzzo – ocorreu na mesma época em que Marcos Valério e Delúbio Soares andavam pelo Brasil para, segundo o presidente do Supremo, arrumar dinheiro para o “continuísmo seco, raso.”
Os partidos políticos podem ter,
legitimamente, projetos duradouros de poder. É inevitável, porque poucas ideias
boas podem ser feitas em quatro anos.
Os tucanos de Sérgio Motta queriam ficar 25
anos. Ficaram oito. Lula e Dilma, somados, já garantiram uma permanência de 12.
Tanto num caso, como em outro, tivemos
eleições livres, sob o mais amplo regime de liberdades de nossa história.
Para quem gosta de exemplos de fora, convém
lembrar que até há pouco o padrão, na França, eram governos de 14 anos – em
dois mandatos de sete. Nos Estados Unidos, Franklin Roosevelt foi eleito para
quatro mandatos consecutivos, iniciando um período em que os democratas passaram
20 anos seguidos na Casa Branca. Os democratas de Bill Clinton poderiam ter
ficado 12 anos. Mas a Suprema Corte, com maioria republicana, aproveitou uma
denúncia de fraude na Flórida para dar posse a George W. Bush,
decisão ruinosa que daria origem a uma tragédia de impacto internacional,
como todos sabemos.
O ministro me desculpe mas eu acho que,
para falar do mensalão como parte de projeto de “continuísmo seco,
raso,” é preciso considerar o Brasil uma grande aldeia de Gabriel Garcia
Márquez. Em vez da quinta ou sexta economia do mundo, jornais, emissoras de TV,
bancos poderosos, um empresariado dinâmico, trabalhadores organizados e
100 milhões de eleitores, teríamos de coronéis bigodudos com panças imensas,
latifúndios a perder de vista, cidadãos dependentes, morenas lindas e
apaixonadas, capangas de cartucheira.
No mundo de Garcia Marquez, não há
democracia, nem conflito de ideias. Não há desenvolvimento, apenas estagnação,
tédio e miséria. Naquelas aldeias do interior remoto da Colômbia, homens
e mulheres famintos vivem às voltas de um poder único e autoritário. Esmolam
favores, promoções, presentes, pois ninguém tem força, autonomia e muito menos coragem
para resolver a própria vida. Desde a infância, todos os cidadãos são
ensinados a cortejar o poder, bajular. É seu modo de vida. Como recompensa,
recebem esmolas.
No mensalão de Macondo, seria assim.
Será esta uma visão adequada do Brasil?
Em 1954, no processo que levou ao suicídio
de Getúlio Vargas, também se falou em golpe. Com apoio de uma imprensa
radicalizada, em campanhas moralistas e denuncias – muitas vezes sem prova –
contra o governo, dizia-se que Vargas pretendia permanecer no posto, num golpe
continuísta, com apoio do ”movimento de massas.”
Era por isso, dizia-se, que queria aumentar
o salario mínimo em 100%. Embora o mínimo tivesse sido congelado desde 1946,
por pressão conservadora sobre o governo Eurico Dutra, a proposta de reajuste
era exibida como parte de um plano continuísta para agradar aos pobres – numa
versão que parece ter lançado os fundamentos para as campanhas sistemáticas
contra o Bolsa-Família, 50 anos depois.
Embora falasse em mercado interno,
desenvolvimento industrial e até tivesse criado a Petrobrás, é claro que Vargas
queria apenas, em aliança com o argentino Juan Domingo Perón (o Hugo Chávez da
época?), estabelecer uma comunhão sindicalista na América do Sul e transformar todo
mundo em escravo do peleguismo, não é assim? E agora você, leitor, vai ficar
surpreso. Um dos grandes conspiradores contra Getúlio Vargas, especialista em
denunciar golpes imaginários, foi parar no Supremo. Chegou a presidente, teve
direito a um livro luxuoso com uma antologia de suas sentenças.
Estou falando de Aliomar Baleeiro, jurista
que entrou no tribunal em 1965, indicado por Castelo Branco, o primeiro
presidente do ciclo militar, e aposentou-se em 1975, o ano em que o jornalista
Vladimir Herzog foi morto sob tortura pelo porão da ditadura. Baleeiro deixou
bons momentos em sua passagem pelo Supremo. Defendeu várias vezes o retorno ao
Estado de Direito. Chegou a dar um voto a favor de frades dominicanos que
faziam parte do círculo de Carlos Marighella, principal líder da luta armada no
Brasil. A ditadura queria condenar os frades. Baleeiro votou a favor deles.
Tudo isso é muito digno mas não vamos
perder a o fio da história que nos ajuda a ter noção das coisas e aprender com
elas. Em várias oportunidades, o ministro que faria a defesa do Estado de Direito
contribuiu para derrotá-lo. O ministro chegou ao STF com uma longa folha de
serviços anti democráticos.
Em 1954, ele era deputado da UDN, aquele
partido que reunia a fina flor de um conservadorismo bom de patrimônio e
ruim de votos. Um dos oradores mais empenhados no combate a Getúlio Vargas, Baleeiro
foi a tribuna da Câmara para pedir um “golpe preventivo”. (Pode-se
conferir em “Era Vargas — Desenvolvimentismo, Economia e Sociedade,”
página 411, UNESP editora.)
Os adversários de Vargas tentaram a via
legal, o impeachment. Tiveram uma derrota clamorosa, como diziam os locutores
esportivos de vinte anos atrás: 136 a 35. Armou-se, então, uma
conspiração militar. Alimentada pelo atentado contra Carlos Lacerda, que
envolvia pessoas do círculo de Vargas, abriu-se uma pressão que acabaria
emparedando o presidente, levado ao suicídio.
Baleeiro permaneceu na UDN e conspirou
contra a campanha de JK, contra a posse de JK e contra o governo JK.
Sempre com apoio nos jornais, foi um campeão de denúncias. Era aquilo
que, mais uma vez com ajuda da mídia, muitos brasileiros pensavam que era o
Demóstenes Torres – antes que a verdade do amigo Cachoeira viesse a tona.
Baleeiro estava lá, firme, no golpe que
derrubou Jango para combater a subversão e a …corrupção. Foi logo aproveitado
pelo amigo Castelo Branco para integrar o STF. Já havia denuncia de tortura e
de assassinatos naqueles anos. Mortos que não foram registrados, feridos que
ficaram sem nome. Não foramapurados, apesar do caráter supremo das togas
negras.
Entre 1971 e 1973, Baleeiro ocupava a
presidência do STF. Nestes dois anos, o porão do regime militar matou 70
pessoas. Nenhum caso foi investigado nem punido, como se sabe. Nem na época, quando
as circunstâncias eram mais difíceis. Nem quarenta anos depois, quando pareciam
mais fáceis.
Em 1973, José Dirceu, que pertenceu a mesma
organização que Marighella, vivia clandestinamente no Brasil. Morou em Cuba mas
retornou para seguir na luta contra o regime militar. Infiltrado no
grupo, o inimigo atirou primeiro e todos morreram. Menos Dirceu. Os ossos de muitos levaram anos para serem identificados. Nunca soubemos quem deu a ordem.
grupo, o inimigo atirou primeiro e todos morreram. Menos Dirceu. Os ossos de muitos levaram anos para serem identificados. Nunca soubemos quem deu a ordem.
Não se apontou, como no mensalão, para quem
tinha o domínio do fato para a tortura, as execuções.
Um dos principais líderes do Congresso da
UNE, entidade que o regime considerava ilegal, Dirceu foi preso em 1968 e saiu
da prisão no ano seguinte. Não foi obra da Justiça, infelizmente, embora
estivesse detido pela tentativa de reorganizar uma entidade que desde os
anos 30 era reconhecida pelos universitários como sua voz política.
(Figurões da ditadura, como o pernambucano
Marco Maciel, que depois seria vice presidente de FHC, Paulo Egydio Martins,
governador de São Paulo no tempo de Geisel, tinham sido dirigentes da UNE,
antes de Dirceu).
A Justiça era tão fraca , naquele período,
que Dirceu só foi solto como resultado do sequestro do embaixador Charles
Elbrick, trocado por um grupo de presos políticos. Mas imagine.
Foi preciso que um bando de militantes
armados, em sua maioria garotos enlouquecidos com Che Guevara, cometesse
uma ação desse tipo para que pessoas presas arbitrariamente, sem
julgamento, pudessem recuperar a liberdade. Que país era aquele, não? Que
Justiça, hein?
Preso no Congresso da UNE, também, Genoíno
foi solto e ingressou na guerrilha do Araguaia.
Apanhado e torturado em 1972, Genoíno
conseguiu esconder a verdadeira identidade durante dois meses. Estava em
Brasília quando a polícia descobriu quem ele era. Foi levado de volta a região
da guerrilha e torturado
em praça pública, como exemplo.
Ontem a noite, José Dirceu e José Genoíno
foram condenados por 8 votos a 2 e 9 votos a 1. Foi no final da sessão que
Ayres Britto falou em “projeto de poder de continuísmo seco, raso. Golpe,
portanto”.
Paulo
Moreira Leite – Jornalista – 11.10.2012