terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

A cultura da paz


Dentre as ações com maior êxito em conter as taxas de violência e crime, mostra a história recente, estão aquelas baseadas no envolvimento da comunidade, associadas a práticas integradas de gestão. Há, portanto, uma profícua aliança entre técnica e política. As melhores práticas observadas têm se concentrado em um tripé: aproximação com a população, uso intensivo de informações e aperfeiçoamento da inteligência e da investigação.

Renato Sérgio de Lima
O ano de 2013 ficou marcado como aquele em que a segurança pública voltou à agenda política, sobretudo a partir da atuação das polícias nas jornadas de junho, quando ficou explícita a falência de um modelo que valoriza antagonismos e disputas e que não soube lidar com o caráter difuso das manifestações. Para além desse fato, os principais dirigentes políticos no Brasil teimam, porém, em aceitar que segurança pública não é um problema restrito aos estados, mas uma questão vital ao País e que envolve União, estados, Distrito Federal e municípios, bem como os Ministérios Públicos e os três Poderes da República.
E, nesse contexto, os dados publicados pelos anuários brasileiros de segurança pública indicam que o nosso sistema é ineficiente e convive com padrões operacionais inaceitáveis de letalidade e vitimização policial, com baixas taxas de esclarecimentos de delitos e precárias condições de encarceramento. Não conseguimos oferecer serviços de qualidade, reduzir a insegurança e aumentar a confiança da população nas instituições. Em 2012, pela primeira vez na história, os estupros atingiram a marca de mais de 50 mil registros num ano e superaram os homicídios.
Falar de segurança pública hoje no Brasil não se resume, portanto, a defender necessárias medidas de combate à violência e à criminalidade, mas ter coragem política e institucional para assumir um pacto pela promoção de uma vida digna e em paz para parcelas majoritárias da população. E, para tanto, seja quem for o vencedor da eleição deste ano para a Presidência da República, não poderá se furtar de induzir debates acerca de um projeto de uma nova polícia no País e de ações de todas as esferas para mudar um quadro que torna o Brasil um dos lugares mais inseguros e violentos do mundo.
Debates que, por sua vez, devem superar a tradicional dicotomia entre ações incrementais de gestão e iniciativas políticas para a indução de reformas legais, na medida em que ambos os processos políticos são faces de um mesmo movimento de modernização da segurança pública. De nada adianta transformar a gestão em fim em si mesmo de um sistema caduco.
Isso significa que resultados de longo prazo só poderão ser obtidos mediante reformas estruturais que enfrentem alguns temas sensíveis, tais como: a distribuição e a articulação de competências entre União, estados e municípios e a criação de mecanismos efetivos de cooperação entre eles e demais Poderes, a reforma do modelo policial e o estabelecimento de requisitos mínimos nacionais para as instituições de segurança pública, no que diz respeito àf ormação dos profissionais, transparência e prestação de contas, uso da força e controle externo.
Há, desse modo, toda uma agenda de modernização da segurança pública que pode ser acionada por quem vencer as eleições de outubro. A despeito das elevadas taxas de violência e criminalidade, há avanços em determinados locais, capazes de provocar mudanças pontuais no "modelo de segurança", e que podem servir de ponto de partida para o diálogo.
Dentre as ações com maior êxito em conter as taxas de violência e crime, mostra a história recente, estão aquelas baseadas no envolvimento da comunidade, associadas a práticas integradas de gestão. Há, portanto, uma profícua aliança entre técnica e política. As melhores práticas observadas têm se concentrado em um tripé: aproximação com a população, uso intensivo de informações e sistemas de metas e aperfeiçoamento da inteligência e da investigação.
Diante do exposto, percebe-se que há muito sendo feito, com inovações e esforços significativos de diferentes governos para melhorar a área no País. Mas até por dispormos de um conjunto grande de soluções e experiências, a pergunta que fica é por que, então, o Brasil ainda convive com taxas de crime e violência tão elevadas?
Em primeiro lugar, não há resposta fácil para essa pergunta, mas algumas considerações podem ser feitas a partir das várias iniciativas colocadas em prática nos últimos anos, entre elas as UPPs (RJ), o Pacto Pela Vida (PE) e/ou a redução dos homicídios em São Paulo. Por esse raciocínio, é possível identificar falhas na execução dos programas que, se enfrentadas pelo novo governo saído das urnas em outubro, poderão significar um novo Brasil, mais digno e seguro. São elas:
A) O baixo grau de institucionalização, com falta de padronização de procedimentos e ações.
B) A falta de diálogo com as lideranças e organizações sociais locais na implantação das unidades, conferindo à política um caráter vertical.
C) A falta de comunicação com a comunidade também na execução das atividades, impedindo que haja responsabilização e apropriação por parte desta em relação ao projeto.
D) A desmotivação dos policiais que atuam nas unidades territoriais, com falta de incentivos, de treinamento e de uma real compreensão do sentido da polícia de comunidade e da importância da prevenção do crime.
E) A desconsideração das peculiaridades locais e demandas específicas de segurança em cada localidade.
F) A falta de conexão e vínculo entre juventude, o bairro em que os jovens vivem e as polícias.
G) O número reduzido de projetos e programas que priorizam ações de accountability (transparência/prestação de contas), muitas vezes justificando que as informações são de natureza estratégica e que primeiro devem ser utilizadas na gestão das políticas (permanência da lógica do segredo).
As experiências nacionais dos últimos anos sinalizam um conjunto de lições aprendidas que devem servir de baliza para a formulação e execução de projetos de segurança pública pelos candidatos à Presidência e aos demais cargos. São elas:
1. Corporativismos e resistências organizacionais ao modelo de segurança cidadã, que muitas vezes se apresentam como barreiras ao desenvolvimento desse tipo de estratégia (divisões e conflitos entre os policiais da direção e os da ponta da linha; divisões e conflitos entre a polícia e outros setores da administração pública), podem ser eficazmente enfrentados por meio do investimento em treinamento específico e aprofundado e com medidas de modernização normativa.
2. A falta de capacidade de muitas organizações policiais de monitorar e avaliar o próprio trabalho deve ser enfrentada a partir de programas e associações com universidades, centros de pesquisa e setor privado, com o objetivo de desenvolver intervenções que estejam previamente desenhadas para avaliação e monitoramento contínuos.
3. Programas com foco específico para a juventude (incluindo a negra) tendem a ter resultados mais sustentados ao longo do tempo.
4. A relação que os municípios, estados e União estabelecem quanto à segurança pública não segue um padrão predeterminado. A natureza dessa realidade vai depender, principalmente, do relacionamento de cada município com cada estado e com a União, com baixa interlocução com as polícias. O mais interessante seria que todos trabalhassem de forma cooperativa e a partir de uma instância de coordenação, integração e pactuação, à semelhança do SUS.
5. Estratégias que priorizam a radicalização da transparência e o fortalecimento de mecanismos de controle, requisitos básicos da democracia e da garantia de Direitos Humanos, tendem a ter um grau de institucionalidade maior e mais eficiente do que ações focalizadas apenas na dimensão da modernização tecnológica da gestão das políticas de segurança pública.
6. Os dados sobre gastos com segurança publicados pelos anuários brasileiros indicam a necessidade de os governos dedicarem maior atenção ao tema do financiamento e dos mecanismos de cooperação federativa entre os diferentes níveis de governo. Os gastos têm aumentado em um ritmo muito superior ao crescimento do País.
Em síntese, sem uma pauta de reformas estruturais, que inclui mudanças legislativas e fomento às novas práticas organizacionais lastreadas em fortes elos com a transparência e prestação de contas, o fortalecimento de mecanismos de controle e o incentivo à participação social, pouco conseguiremos avançar. Os antagonismos hoje presentes devem ser convertidos em janelas de oportunidade para a construção de consensos e paradigmas legais e organizacionais mais alinhados com a perspectiva da segurança pública como prestação de um serviço para a sociedade e não imposição da vontade do Estado. Desse modo, a principal tarefa de quem vencer as eleições é, portanto, priorizar politicamente a segurança pública e fugir da tentação de reduzi-la a uma agenda isolada e meramente gerencial.


Renato Sérgio de Lima – Vice-presidente do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Pesquisador associado do Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas da Direito GV-CPJA e do Núcleo de Estudos da Violência da USP – 06.01.2014