Os partidos não podem
ignorar as condições e as demandas dessa faixa da população que, dada a
estrutura social brasileira, constitui a maioria. Essas demandas têm canais
institucionais de entrada no sistema político.
Argelina
Cheibub Figueiredo
A despeito do clamor das ruas, a oposição
brasileira encontra-se numa sinuca de bico. E não tem a ver com as posições
atuais dos potenciais candidatos nas pesquisas de opinião. Há descontentamento,
sabemos, as jornadas de junho foram uma amostra. Mas a bola do governo está
protegida. A população apoia suas políticas. E as políticas em curso ainda não
esgotaram a agenda social já presente na eleição de 1998 e que, em 2002, tirou
o PSDB do governo. Não basta a promessa de melhorar o que está sendo feito. Quem
já fez tem crédito, quem propõe melhor do mesmo teria que provar que é mais
capaz. O que não é fácil. Alternância no poder requer programas alternativos. A
oposição precisa dizer a que veio.
Pensar nas perspectivas para 2014 requer uma breve
incursão na história política recente. Cabe lembrar, em primeiro lugar, de onde
partimos. Saímos de 20 anos de ditadura que nos legou uma economia com baixo
crescimento, inflação crescente e crise fiscal; um sistema político
artificialmente bipartidário, extensa legislação autoritária e, por último, mas
não menos importante, uma situação social calamitosa: concentração de renda,
índices espantosos de desigualdade social e políticas sociais regressivas.
O primeiro governo civil, de José Sarney, assumiu
como prioridade o combate à gigantesca e galopante taxa de inflação. A
tentativa de domá-la - via controle de preços e salários - obteve amplo apoio
popular que se refletiu no resultado das eleições de 1986, a segunda eleição
direta de governadores. O eleitorado consagrou o partido no governo concedendo
ao PMDB o controle de 22 de 23 Estados. Imediatamente após a eleição, os preços
foram liberados e o cruzado desvalorizado. O episódio foi reconhecido como um
calote eleitoral. Evaporou-se a efêmera redistribuição resultante do Plano
Cruzado.
No plano institucional, cabia a esse governo
conduzir o processo que levaria à escolha do arcabouço constitucional da nova
democracia. A Constituinte se tornou o desaguadouro das várias formas de
manifestação e organização política da sociedade que emergiram no processo de
redemocratização. O vigor dos novos partidos políticos, dos movimentos sociais
e das diversas organizações e grupos de interesse foi canalizado para o
processo de elaboração da nova Carta constitucional num intenso processo de
mobilização política.
Resgate da dívida social, participação social e
política e descentralização fiscal e política foram as palavras de ordem da
Constituinte. A agenda de políticas então definida requeria redistribuição da
renda altamente concentrada durante os governos militares e aumento da proteção
do Estado, participação e controle social. Boa parte dessa agenda foi
incorporada na nova carta. Mas não tardou muito para que o bordão do governo
Sarney - "Tudo pelo social" - fosse transformado numa queixa:
"com essa constituição o país é ingovernável".
É numa conjuntura de política econômica restritiva
da atuação do Estado que ocorreu a primeira eleição direta para presidente. Os
candidatos que se enfrentaram no segundo turno representavam forças políticas
diversas. O candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da
Silva, apoiado pelos partidos de esquerda, pregava mudanças radicais na
sociedade e na política brasileira. O partido criado nos primórdios da abertura
política, com base no sindicalismo independente e nos movimentos sociais, já
completara dez anos. De outro lado, Fernando Collor, o candidato de um partido
recém-criado, membro de uma oligarquia regional, com uma plataforma
personalista baseada em denúncias e promessas de combate aos altos salários do
setor público.
Avesso a partidos, Collor dispensou o Congresso
para governar e partiu para sua aventura anti-inflacionária. Novo calote no
eleitorado. O choque heterodoxo não conseguiu os efeitos desejados. As radicais
medidas deslanchadas no primeiro dia de governo se mostraram inócuas. Denúncias
de corrupção em que se afundou o governo e o próprio presidente levaram a uma
ação rápida do Congresso iniciando o processo de impeachment do presidente. O
povo apoiou e foi às ruas. Collor foi substituído sem um arranhão sequer às
regras constitucionais em vigor.
A partir de então as disputas presidenciais passam
a ter dois contendores de fato. Dois partidos consolidados com propostas de
políticas diversas: o PSDB defendendo um Estado enxuto e políticas sociais
básicas; o PT, um Estado forte e ampla inclusão social. Nas eleições de 2014, a
competição entre o PSDB e o PT que se cristalizou em 1994 ainda ocupará o
centro do embate eleitoral, a despeito das tentativas de uma terceira via. O
eleitorado parece ter se vacinado contra novas aventuras.
Em 1994, a eleição no primeiro turno de Fernando
Henrique Cardoso, o ministro da Fazenda que conduziu o Plano Real mostrou a
força do apoio popular ao combate à inflação. O Congresso, termômetro da
opinião pública, não negou apoio às medidas vistas como requisitos para
sustentar a estabilidade monetária. E não eram medidas de fácil aprovação. No
linguajar da ciência política aprovaram-se várias "políticas politicamente
inviáveis". Medidas que impunham perdas imediatas e significativas a amplas
camadas da população, visando alcançar benefícios incertos e no longo prazo.
A eleição de 1998 produziu a primeira reeleição da
história do país, quando o eleitorado reconduziu, novamente no primeiro turno,
o presidente que havia garantido a estabilidade e agora prometia um mandato
voltado para o emprego e o desenvolvimento econômico. A credibilidade do
governo era grande. Nem o candidato de um partido ligado aos trabalhadores foi
capaz de convencer o eleitorado de que poderia fazer melhor. Mas um novo calote
eleitoral não tardou. Mal as urnas foram fechadas, o real sofreu uma forte
desvalorização. Suas consequências, pelas novas perdas impostas à população,
marcaram o segundo mandato de FHC. Ao fim do governo estava claro que já não
bastava a estabilidade econômica. O eleitorado queria mais.
Nas eleições de 2002, o desenvolvimento econômico,
a distribuição de seus benefícios e a ampliação do emprego e da renda foram a
tônica da campanha. A estabilidade já não era prioridade; mas sua continuidade
se tornou condição para uma candidatura presidencial. Cabia à oposição,
apontada, e facilmente identificável, como contrária ao Real, se manifestar. Em
fevereiro de 2002, Lula, candidato pela quarta vez, disse que dessa feita não
viria para perder. Exigiu do PT a concretização de uma aliança que na verdade
já vinha sendo desenhada. O partido se dirigiu para o centro, orientação que se
concretizou com a "Carta aos Brasileiros", em que o candidato se
comprometia com os pilares da estabilidade econômica. Mas a vitória foi
garantida pela sua credibilidade na implementação de uma agenda social.
No primeiro ano de governo, as políticas do governo
tornaram crível o compromisso com a estabilidade econômica. As reações foram
diversas. A forte reação da esquerda do PT à política econômica do novo governo
denotava sua expectativa (ou demanda) de um calote. Mas o calote não veio. A
oposição surpresa apoiou propostas legislativas, alardeando e aprovando a
continuidade da política do governo anterior. Mas a agenda social passou a ser
a prioridade do governo. As políticas do governo foram bem-sucedidas e
obtiveram alta aprovação popular. O presidente foi reeleito e terminou o
segundo mandato com índices inéditos de popularidade.
Com as eleições de 2010, a democracia brasileira
pôde celebrar o fim de quatro mandatos presidenciais consecutivos completos.
Mais uma vez, a credibilidade da nova candidata Dilma Rousseff em relação à
continuidade das políticas em vigor garantiu ao partido no governo uma nova
vitória. A crise internacional, a ainda baixa taxa de competitividade do país e
a premência em oferecer uma infraestrutura de sustentação do desenvolvimento do
país têm desafiado o governo. A nova agenda para o desenvolvimento sustentável
tem exigido do governo o embate com diversos e poderosos interesses econômicos.
Mas a política social não só foi mantida, como vem sendo ampliada.
Esta breve retrospectiva revela um eleitorado que
parece responder racionalmente às disputas e às políticas dos governos. Não
parecem escolhas de um eleitorado volátil e que não sabe votar como em geral se
acredita. Ao contrário, essas respostas denotam que os eleitores encontram
atalhos para se informar e tomar decisões sobre o seu voto.
Na eleição presidencial de 2010, de um eleitorado
potencial de 134 milhões, 99,2% estavam alistados, 82,6% compareceram e 75,4%
votaram de forma válida. Isso coloca o Brasil entre as maiores democracias do
mundo. E uma democracia em que as camadas mais pobres da sociedade exercem
influência política significativa por meio do voto. Aqui as condições
institucionais favorecem e facilitam a participação eleitoral das camadas da
população mais vulneráveis aos custos do comparecimento e do exercício do
direito de voto. Contribuem para isso, o voto obrigatório; o papel da Justiça
Eleitoral em garantir e facilitar o acesso à urna e o processo de votação; a
mera realização da eleição no domingo, quando o comparecimento ao trabalho não
é obrigatório; a credibilidade eleitoral pelo fato de o processo estar nas mãos
de uma instituição que não participa diretamente do jogo político (a Justiça
Eleitoral) e não nas dos partidos e governos. O mesmo não ocorre em muitas
grandes democracias ocidentais.
Esse fato tem consequências. Os partidos não podem
ignorar as condições e as demandas dessa faixa da população que, dada a
estrutura social brasileira, constitui a maioria. Essas demandas têm canais
institucionais de entrada no sistema político. O sistema eleitoral proporcional
para as eleições legislativas, ao contrário do majoritário (ou distrital como é
conhecido no Brasil), garante que o peso relativo das diversas camadas sociais
e correntes de opinião tenham peso correspondente aos votos obtidos. O
Congresso, por sua vez, como representante da totalidade da população, e não da
soma de maiorias obtida nos distritos eleitorais, pode ser, e tem sido defensor
de direitos e políticas que beneficiam essas camadas.
Como essa afirmação gera controvérsia, dou um
exemplo. Grande parte do diferencial da curva de salários globais e do salário
mínimo deve-se ao Congresso que sempre defendeu aumentos superiores aos
propostos pelos governos, sem contudo propor taxas irresponsáveis. Vale notar
que esses aumentos muitas vezes foram propostos e aprovados em momentos de
grande restrição orçamentária implicando o sacrifício das emendas individuais
dos parlamentares.
No final o balanço é positivo. As realizações
obtidas nesses 25 anos de democracia não são desprezíveis. A inflação foi
vencida apesar de seu espectro de vez em quando rondar com mais ou menos vigor.
Do ponto de vista das políticas sociais básicas, assistimos à universalização
do acesso à educação fundamental e à saúde, ainda que a qualidade dos serviços
prestados deixe a desejar. Mas indicadores comparando os censos de 1980 e 2010
mostram avanços incontestáveis. A mortalidade de crianças de zero a um ano nos
municípios mais pobres caiu de 40,9 crianças em mil para 13,9. O percentual de
pessoas com menos de três anos de estudo caiu de 43% em 1980 para 18% em 2010,
enquanto a faixa da população com 11 anos a 14 anos de estudo passou de 10%
para 32%. A pobreza foi reduzida de forma significativa: entre 1994 e 2009, a
taxa de domicílios em situação de pobreza caiu de 43% para 22%.
A desigualdade também diminuiu. O emprego formal
aumentou assim como o salário e, consequentemente, a participação do trabalho
no PIB. A secular dívida social com a população negra vem sendo resgatada. Para
dar apenas um exemplo, o percentual de negros e pardos cursando o ensino
superior passou de 8% em 1999 a 32% em 2009.
Essas mudanças vêm se dando em um contexto de
liberdade de imprensa, independência entre os poderes, aumento no papel de
diversas instituições de controle político do governo, além de crescente
organização da sociedade e participação no controle das políticas nas instâncias
nacionais e subnacionais de governo. A agenda social não se esgotou. A
exigência de qualidade na prestação de serviços públicos apenas a coloca em um
novo patamar. Até aqui a alternância ocorreu quando a oposição oferecia o que
era mais desejado pela maioria. Em 2014, o desafio da oposição é apresentar um
programa melhor e mais crível. Essa é a sinuca de bico da oposição. Mas o
governo não está na mesma situação que em 2006, quando bastava mais do mesmo. O
seu desafio agora é manter políticas redistributivas com crescimento
sustentável. Que os partidos ponham mãos à obra: o debate deve ser acirrado.
Argelina Cheibub Figueiredo – Professora de ciência política do Instituto de
Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi
visiting fellow do Institute for Social Research, Oslo, Noruega, das
universidades de Paris IX, Chicago, Pensylvannia, New York e do MIT –
19.12.2013
IN Valor Econômico – http://www.valor.com.br/brasil/3376036/politicas-governos-e-o-eleitorado-perspectivas-para-2014#ixzz2nvnrAdk4http://www.valor.com.br/brasil/3376036/politicas-governos-e-o-eleitorado-perspectivas-para-2014#ixzz2nvnLNMy1