sábado, 1 de fevereiro de 2014

Políticas, governos e o eleitorado: perspectivas para 2014


Os partidos não podem ignorar as condições e as demandas dessa faixa da população que, dada a estrutura social brasileira, constitui a maioria. Essas demandas têm canais institucionais de entrada no sistema político.

Argelina Cheibub Figueiredo
A despeito do clamor das ruas, a oposição brasileira encontra-se numa sinuca de bico. E não tem a ver com as posições atuais dos potenciais candidatos nas pesquisas de opinião. Há descontentamento, sabemos, as jornadas de junho foram uma amostra. Mas a bola do governo está protegida. A população apoia suas políticas. E as políticas em curso ainda não esgotaram a agenda social já presente na eleição de 1998 e que, em 2002, tirou o PSDB do governo. Não basta a promessa de melhorar o que está sendo feito. Quem já fez tem crédito, quem propõe melhor do mesmo teria que provar que é mais capaz. O que não é fácil. Alternância no poder requer programas alternativos. A oposição precisa dizer a que veio.
Pensar nas perspectivas para 2014 requer uma breve incursão na história política recente. Cabe lembrar, em primeiro lugar, de onde partimos. Saímos de 20 anos de ditadura que nos legou uma economia com baixo crescimento, inflação crescente e crise fiscal; um sistema político artificialmente bipartidário, extensa legislação autoritária e, por último, mas não menos importante, uma situação social calamitosa: concentração de renda, índices espantosos de desigualdade social e políticas sociais regressivas.
O primeiro governo civil, de José Sarney, assumiu como prioridade o combate à gigantesca e galopante taxa de inflação. A tentativa de domá-la - via controle de preços e salários - obteve amplo apoio popular que se refletiu no resultado das eleições de 1986, a segunda eleição direta de governadores. O eleitorado consagrou o partido no governo concedendo ao PMDB o controle de 22 de 23 Estados. Imediatamente após a eleição, os preços foram liberados e o cruzado desvalorizado. O episódio foi reconhecido como um calote eleitoral. Evaporou-se a efêmera redistribuição resultante do Plano Cruzado.
No plano institucional, cabia a esse governo conduzir o processo que levaria à escolha do arcabouço constitucional da nova democracia. A Constituinte se tornou o desaguadouro das várias formas de manifestação e organização política da sociedade que emergiram no processo de redemocratização. O vigor dos novos partidos políticos, dos movimentos sociais e das diversas organizações e grupos de interesse foi canalizado para o processo de elaboração da nova Carta constitucional num intenso processo de mobilização política.
Resgate da dívida social, participação social e política e descentralização fiscal e política foram as palavras de ordem da Constituinte. A agenda de políticas então definida requeria redistribuição da renda altamente concentrada durante os governos militares e aumento da proteção do Estado, participação e controle social. Boa parte dessa agenda foi incorporada na nova carta. Mas não tardou muito para que o bordão do governo Sarney - "Tudo pelo social" - fosse transformado numa queixa: "com essa constituição o país é ingovernável".
É numa conjuntura de política econômica restritiva da atuação do Estado que ocorreu a primeira eleição direta para presidente. Os candidatos que se enfrentaram no segundo turno representavam forças políticas diversas. O candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva, apoiado pelos partidos de esquerda, pregava mudanças radicais na sociedade e na política brasileira. O partido criado nos primórdios da abertura política, com base no sindicalismo independente e nos movimentos sociais, já completara dez anos. De outro lado, Fernando Collor, o candidato de um partido recém-criado, membro de uma oligarquia regional, com uma plataforma personalista baseada em denúncias e promessas de combate aos altos salários do setor público.
Avesso a partidos, Collor dispensou o Congresso para governar e partiu para sua aventura anti-inflacionária. Novo calote no eleitorado. O choque heterodoxo não conseguiu os efeitos desejados. As radicais medidas deslanchadas no primeiro dia de governo se mostraram inócuas. Denúncias de corrupção em que se afundou o governo e o próprio presidente levaram a uma ação rápida do Congresso iniciando o processo de impeachment do presidente. O povo apoiou e foi às ruas. Collor foi substituído sem um arranhão sequer às regras constitucionais em vigor.
A partir de então as disputas presidenciais passam a ter dois contendores de fato. Dois partidos consolidados com propostas de políticas diversas: o PSDB defendendo um Estado enxuto e políticas sociais básicas; o PT, um Estado forte e ampla inclusão social. Nas eleições de 2014, a competição entre o PSDB e o PT que se cristalizou em 1994 ainda ocupará o centro do embate eleitoral, a despeito das tentativas de uma terceira via. O eleitorado parece ter se vacinado contra novas aventuras.
Em 1994, a eleição no primeiro turno de Fernando Henrique Cardoso, o ministro da Fazenda que conduziu o Plano Real mostrou a força do apoio popular ao combate à inflação. O Congresso, termômetro da opinião pública, não negou apoio às medidas vistas como requisitos para sustentar a estabilidade monetária. E não eram medidas de fácil aprovação. No linguajar da ciência política aprovaram-se várias "políticas politicamente inviáveis". Medidas que impunham perdas imediatas e significativas a amplas camadas da população, visando alcançar benefícios incertos e no longo prazo.
A eleição de 1998 produziu a primeira reeleição da história do país, quando o eleitorado reconduziu, novamente no primeiro turno, o presidente que havia garantido a estabilidade e agora prometia um mandato voltado para o emprego e o desenvolvimento econômico. A credibilidade do governo era grande. Nem o candidato de um partido ligado aos trabalhadores foi capaz de convencer o eleitorado de que poderia fazer melhor. Mas um novo calote eleitoral não tardou. Mal as urnas foram fechadas, o real sofreu uma forte desvalorização. Suas consequências, pelas novas perdas impostas à população, marcaram o segundo mandato de FHC. Ao fim do governo estava claro que já não bastava a estabilidade econômica. O eleitorado queria mais.
Nas eleições de 2002, o desenvolvimento econômico, a distribuição de seus benefícios e a ampliação do emprego e da renda foram a tônica da campanha. A estabilidade já não era prioridade; mas sua continuidade se tornou condição para uma candidatura presidencial. Cabia à oposição, apontada, e facilmente identificável, como contrária ao Real, se manifestar. Em fevereiro de 2002, Lula, candidato pela quarta vez, disse que dessa feita não viria para perder. Exigiu do PT a concretização de uma aliança que na verdade já vinha sendo desenhada. O partido se dirigiu para o centro, orientação que se concretizou com a "Carta aos Brasileiros", em que o candidato se comprometia com os pilares da estabilidade econômica. Mas a vitória foi garantida pela sua credibilidade na implementação de uma agenda social.
No primeiro ano de governo, as políticas do governo tornaram crível o compromisso com a estabilidade econômica. As reações foram diversas. A forte reação da esquerda do PT à política econômica do novo governo denotava sua expectativa (ou demanda) de um calote. Mas o calote não veio. A oposição surpresa apoiou propostas legislativas, alardeando e aprovando a continuidade da política do governo anterior. Mas a agenda social passou a ser a prioridade do governo. As políticas do governo foram bem-sucedidas e obtiveram alta aprovação popular. O presidente foi reeleito e terminou o segundo mandato com índices inéditos de popularidade.
Com as eleições de 2010, a democracia brasileira pôde celebrar o fim de quatro mandatos presidenciais consecutivos completos. Mais uma vez, a credibilidade da nova candidata Dilma Rousseff em relação à continuidade das políticas em vigor garantiu ao partido no governo uma nova vitória. A crise internacional, a ainda baixa taxa de competitividade do país e a premência em oferecer uma infraestrutura de sustentação do desenvolvimento do país têm desafiado o governo. A nova agenda para o desenvolvimento sustentável tem exigido do governo o embate com diversos e poderosos interesses econômicos. Mas a política social não só foi mantida, como vem sendo ampliada.
Esta breve retrospectiva revela um eleitorado que parece responder racionalmente às disputas e às políticas dos governos. Não parecem escolhas de um eleitorado volátil e que não sabe votar como em geral se acredita. Ao contrário, essas respostas denotam que os eleitores encontram atalhos para se informar e tomar decisões sobre o seu voto.
Na eleição presidencial de 2010, de um eleitorado potencial de 134 milhões, 99,2% estavam alistados, 82,6% compareceram e 75,4% votaram de forma válida. Isso coloca o Brasil entre as maiores democracias do mundo. E uma democracia em que as camadas mais pobres da sociedade exercem influência política significativa por meio do voto. Aqui as condições institucionais favorecem e facilitam a participação eleitoral das camadas da população mais vulneráveis aos custos do comparecimento e do exercício do direito de voto. Contribuem para isso, o voto obrigatório; o papel da Justiça Eleitoral em garantir e facilitar o acesso à urna e o processo de votação; a mera realização da eleição no domingo, quando o comparecimento ao trabalho não é obrigatório; a credibilidade eleitoral pelo fato de o processo estar nas mãos de uma instituição que não participa diretamente do jogo político (a Justiça Eleitoral) e não nas dos partidos e governos. O mesmo não ocorre em muitas grandes democracias ocidentais.
Esse fato tem consequências. Os partidos não podem ignorar as condições e as demandas dessa faixa da população que, dada a estrutura social brasileira, constitui a maioria. Essas demandas têm canais institucionais de entrada no sistema político. O sistema eleitoral proporcional para as eleições legislativas, ao contrário do majoritário (ou distrital como é conhecido no Brasil), garante que o peso relativo das diversas camadas sociais e correntes de opinião tenham peso correspondente aos votos obtidos. O Congresso, por sua vez, como representante da totalidade da população, e não da soma de maiorias obtida nos distritos eleitorais, pode ser, e tem sido defensor de direitos e políticas que beneficiam essas camadas.
Como essa afirmação gera controvérsia, dou um exemplo. Grande parte do diferencial da curva de salários globais e do salário mínimo deve-se ao Congresso que sempre defendeu aumentos superiores aos propostos pelos governos, sem contudo propor taxas irresponsáveis. Vale notar que esses aumentos muitas vezes foram propostos e aprovados em momentos de grande restrição orçamentária implicando o sacrifício das emendas individuais dos parlamentares.
No final o balanço é positivo. As realizações obtidas nesses 25 anos de democracia não são desprezíveis. A inflação foi vencida apesar de seu espectro de vez em quando rondar com mais ou menos vigor. Do ponto de vista das políticas sociais básicas, assistimos à universalização do acesso à educação fundamental e à saúde, ainda que a qualidade dos serviços prestados deixe a desejar. Mas indicadores comparando os censos de 1980 e 2010 mostram avanços incontestáveis. A mortalidade de crianças de zero a um ano nos municípios mais pobres caiu de 40,9 crianças em mil para 13,9. O percentual de pessoas com menos de três anos de estudo caiu de 43% em 1980 para 18% em 2010, enquanto a faixa da população com 11 anos a 14 anos de estudo passou de 10% para 32%. A pobreza foi reduzida de forma significativa: entre 1994 e 2009, a taxa de domicílios em situação de pobreza caiu de 43% para 22%.
A desigualdade também diminuiu. O emprego formal aumentou assim como o salário e, consequentemente, a participação do trabalho no PIB. A secular dívida social com a população negra vem sendo resgatada. Para dar apenas um exemplo, o percentual de negros e pardos cursando o ensino superior passou de 8% em 1999 a 32% em 2009.
Essas mudanças vêm se dando em um contexto de liberdade de imprensa, independência entre os poderes, aumento no papel de diversas instituições de controle político do governo, além de crescente organização da sociedade e participação no controle das políticas nas instâncias nacionais e subnacionais de governo. A agenda social não se esgotou. A exigência de qualidade na prestação de serviços públicos apenas a coloca em um novo patamar. Até aqui a alternância ocorreu quando a oposição oferecia o que era mais desejado pela maioria. Em 2014, o desafio da oposição é apresentar um programa melhor e mais crível. Essa é a sinuca de bico da oposição. Mas o governo não está na mesma situação que em 2006, quando bastava mais do mesmo. O seu desafio agora é manter políticas redistributivas com crescimento sustentável. Que os partidos ponham mãos à obra: o debate deve ser acirrado.


Argelina Cheibub Figueiredo – Professora de ciência política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi visiting fellow do Institute for Social Research, Oslo, Noruega, das universidades de Paris IX, Chicago, Pensylvannia, New York e do MIT – 19.12.2013